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4. GÊNERO TEXTUAL: CHARGE

4.4. Charge: humor e crítica

Minois (2003[1946], p.553) classifica o século XX e XXI como a era da “derrisão8

universal”, ou seja, o riso zombeteiro tomou conta do mundo nos últimos tempos, apesar das catástrofes. O povo encontrou no riso a força para zombar de seus males seja espiritual ou físico como: guerras mundiais, crises econômicas, fome, pobreza, desemprego, terrorismo, corrupção, degradações do meio ambiente etc. O humor tornou-se uma arma para questionar, para contrariar, para escapar às decepções de uma sociedade cheia de imperfeições.

Segundo o autor, o riso moderno, diferentemente da Idade Média, passou a ser um instrumento de resistência, que demonstra a luta contra o poder, um protesto, uma atitude de não conformação e não mais a sublimação da rotina, criando, assim, uma “sociedade humorística” que trouxe um novo estilo de sociedade onde o humor prevalece e domina, e, ao mesmo tempo, um humor descontraído e descompromissado. Minois (ibid. p.620) afirma que o cômico, longe de ser uma festa do povo ou do espírito, tornou-se um “imperativo social generalizado, uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente que o indivíduo suporte até em sua vida cotidiana”.

Schopenhauer, filósofo que mais se aprofundou nos estudos sobre o riso por ser o mais ridente, afirma que quanto mais o mundo parece uma realidade absurda e descolada, mais se deve rir dele.

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8Derrisão: palavra de origem latina “derision” que significa zombaria.

Atualmente, o humor do mundo político nos meios de comunicação mantém o cômico como inevitável. O humor universal, padronizado, midiatizado, comercializado, globalizado, conduz o planeta. Ele foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa contra a imoralidade, o desconhecido e o inexplicável. Para Minois (2003 [1946]) o humor moderno é menos descontraído que o de séculos passados, porque incide não mais sobre este ou aquele aspecto da vida, mas sobre a própria vida e seu sentido, ou sua ausência de sentido. Ainda, segundo o autor, o humor e a ironia generalizam-se no século XX e XXI, revelando condutas que permitem ultrapassar o absurdo do mundo, do homem e da sociedade. Nesse sentido, vivemos um século que ri de tudo.

Segundo Charles Lemert (1992, apud MINOIS 2003[1946]), a ironia é hoje uma atitude necessária para uma teoria social, pois permite usar de artimanhas com a vida. O riso irônico é sempre calculado, intelectualizado e refletido. Portanto, o autor ressalta que o humor torna-se um instrumento de luta contra o poder, ou seja, o humor incorporou-se à cultura popular, provocando uma sensação agradável e uma percepção de liberdade, trazendo um riso zombeteiro, irônico, sarcástico, um riso de protesto, de contestação do poder, dominando espaços públicos e se fazendo presente na imprensa, sobretudo nas charges.

Um outro aspecto a ser comentado refere-se às charges atuarem como agentes políticos e são usadas para expressar uma insatisfação dos fatos veiculados na mídia impressa. Para Minois (2003 [1946]), nas democracias ocidentais o uso do riso zombeteiro em política, beneficiando-se de grande tolerância, não cessa de progredir. É por meio das charges e das caricaturas que a derrisão se situa. Estas só podem agir, indiretamente, com a intervenção da opinião pública, por isso, diante de um fato ou acontecimento político e social, que estejam sendo veiculados na mídia impressa, o humor satírico tem condições de exprimir-se por completo, explorando os desvios cometidos pelos políticos.

Em cada época o riso foi uma reação de autodefesa da sociedade, diante das ameaças potenciais da cultura, mas, em parte, o riso tem por objetivo aliviar essas ameaças e as tensões como uma espécie de psicanálise social, expondo cinicamente todas essas proibições que preocupam a civilização. Dessa forma, o riso existe para desmascarar as insuficiências e os defeitos da humanidade; ele permite suportar o insuportável, disfarçando, zombando e brincando.

A partir disso, podemos afirmar que o humor é indispensável para a sociedade; sem ele a humanidade não suportaria as grandes transformações sociais, políticas, econômicas etc., que ocorrem num mundo que cresce de forma tão rápida.

Assim, pensar em charge é percorrer os acontecimentos e retratar uma realidade factual e verossímil, por meio de caracteres históricos e culturais de uma sociedade. A charge assume um papel importante na vida social e política de uma sociedade no âmago de suas imperfeições. Ela traz o registro do flagrado, com o intuito de veiculação de informações por meio de um olhar fincado nos interesses de quem as produz. Pesquisá-las, portanto, tem por objetivo identificar os jogos de interesses que entrecruzam a esfera política, indicando perspectivas, possibilidades e intenções de se lidar com a memória e a história, como mostra a imagem 07, abaixo, relativo à charge do rei da França, caracterizado como Gargantua. Esta charge fez com que Honoré Daumier ficasse preso por seis meses no Sainte Pelagie em 1832.

Imagem 07

“Gargantua” (http://pt.wikipedia.org/wiki/honor%C3%A9_Daumier-acesso em 02.07.2013)

Assim, a charge serve como uma espécie de âncora, isto é, uma alavanca que extrai os conceitos de um povo enquanto sociedade, para aguçar a comicidade crítica e a investigação do comportamento humano.

No decorrer da história a partir do século XIX, dentro das calamidades sociais, a charge rompe e contesta desvios sociais e políticos com suas caricaturas burlescas.

Segundo Lauerte (2008, apud MINOIS, 2003), “o poder da charge cria e destrói ícones com seu simbolismo exacerbado”. Os Impérios, o Estado, a Igreja sempre se utilizaram da força para evitar opiniões contrárias, o que não extraiu do seio social o anseio de manifestar e tornar real as conclamações de protesto. Assim, a charge se transforma

num poder fiscalizador e opinativo perante as injustiças sociais, políticas e históricas vigentes no país.

A função do humor na charge é questionar o poder a todo o momento, por isso, ela é altamente renovadora. Quando Chaplin fazia de bobo um guarda de rua, em seus filmes, sabia que ridicularizar o poder descontrai o ser humano e o fazia rir. Desse modo, o humor veio para contrapor regras sociais, questioná-las e descontrair o ambiente social e político. O chargista é uma espécie de termômetro do que a população pensa e reclama. Ao mesmo tempo, com sua competência e com sua habilidade em utilizar os recursos verbais e não verbais, influencia um povo a olhar o mundo de forma crítica.

Segundo Bakhtin (1987), numa sociedade estratificada, as formas cômicas adquirem um caráter não oficial, seu sentido modifica-se, aprofunda-se, para transformar finalmente nas formas fundamentais de expressão da cultura de um povo.

Além do mais, numa organização social, os recursos humorísticos, em caráter não oficial, são apropriados para suprir as dificuldades do povo, estabelecendo uma relação pertinente entre o homem, a sociedade e o mundo. Um gênero textual o qual nos permite essa sensação é o gênero charge, que com seus recursos expressivos vê o mundo sob a ótica de um narrador personagem, identificando o fato social ou político que a cerca, e ainda permite em sua composição, com a intenção de fazer crítica, produzir humor e denunciar atuações e comportamentos de elementos da sociedade.

A partir disso, podemos observar a publicação da primeira “Revista Illustrada”, em 1876, por Angelo Agostini, artista italiano, imigrante, caricaturista, ilustrador, desenhista, crítico de arte e pintor, que exerceu forte influência na opinião pública da época por meio das charges. Essa revista fora um marco na imprensa brasileira por seu engajamento político e a conclamação da arte por meio da charge (SALIBA, 2002).

Imagem 08

Charge de Agostini (1882), em que D.Pedro II é “derrubado do trono”- RevistaIlustrada http://almadanoach.blogs

pot.com.br/2008/11/monarquia-e-republica- nas-caricaturas-de.html-acesso em

Na figura 8, charge em que D. Pedro II, o imperador, é “derrubado do trono”, enuncia a queda não só do imperador, mas a queda de um sistema organizacional de poder, a ser consumado tempos depois, especificamente em 1889, com a Proclamação da República. Sendo assim, a charge traz teores satíricos e provocativos, os quais antecipam os interesses da editoria da “Revista Illustrada”, que ganha apelo público por seu caráter crítico, contudo humorístico.

Segundo Possenti (1998, p.109), “o discurso humorístico é sempre crítico e os chistes são formas de veicular discursos conservadores ou mesmo reacionários”, ou seja, além do campo da sexualidade e do racismo, o humor político é sem dúvida, na maior parte de suas manifestações, o mais crítico.

Além disso, o autor afirma que o humor político explora determinadas características do político ou das etapas da história pelas quais o país ou governo passa, e quanto a sua compreensão, depende de fatores pragmáticos e discursivos. O autor ilustra, preferencialmente, exemplos cuja compreensão depende de fatores mais pragmáticos do que discursivos. Há piadas que criticam a própria política, ou, melhor dizendo, a classe dos políticos como um todo.

FHC vai consultar uma vidente. A bruxa lhe diz:

- Aqui vejo muito claro. Tu vais morrer num dia de festa Pátria.

- Bom, mas que dia?

- Não sei, mas qualquer que seja o dia em que morras vai ser Uma verdadeira festa.

Há aquelas que criticam determinada concepção de política, talvez atribuída a um povo. A piada revela um conceito segundo o qual o político é o responsável pela solução dos nossos problemas.

O candidato está fazendo um discurso e, lá pelas tantas diz: - Se eu for eleito, prometo que haverá trabalho para todo mundo O bêbado comenta:

Há aquelas mais comuns no mundo político que é a do político corrupto:

Dois turistas encontram um cemitério brasileiro (argentino etc.). Veem uma lápide na qual se lê: “Aqui jaz um político e um homem honesto”. E um dos turistas comenta:

- Que estranho. Os brasileiros (argentinos etc.) enterram duas pessoas no mesmo túmulo.

Nessa piada, os elementos linguísticos explorados deixam subentendido que há um morto que foi político e honesto, mas também pode se tratar de um político e de um homem honesto.

A partir desses exemplos podemos observar que a compreensão dos chistes depende de fatores pragmáticos e cujo tema possibilita uma variedade de construção textual. Além disso, o autor afirma que a maior parte das charges veiculadas nas segundas páginas dos jornais são políticas, porque são, em geral, produzidas em função da notícia.

Possenti (1998, p.117) divide o humor na imprensa em dois critérios que medem sua ligação maior ou menor com as notícias em destaque. O primeiro tipo está relacionado com o humor dos chargistas de plantão que têm o compromisso de retomar a matéria de capa ou de primeira página; o segundo tipo, denomina “humor de autor”, tem autonomia maior e publica, de certa forma, o que querem, como, por exemplo, Millôr Fernandes, Jô Soares e Luís Fernando Veríssimo que atuam em diversos veículos de comunicação, diários ou semanais. Esses autores, consagrados, produzem material que não estão necessariamente relacionados com a primeira página ou com a matéria da capa, mas, eventualmente, guardam relação com os fatos mais destacados na imprensa. Tudo indica que os autores não têm a obrigação de utilizar esta temática como sua matéria.

As charges relativas às matérias de primeira página parecem ser, muitas vezes, exatamente a mesma voz do editor do jornal, apenas em outro registro. Por isso, afirmamos que esses tipos de charges despertam um interesse maior na análise do corpus deste trabalho, pois trazem a opinião pública a respeito de fatos e acontecimentos veiculados no dia a dia.

Em suma, um dos objetivos básicos do humor é a crítica social, desejando a modificação da sociedade e quase sempre mostra o absurdo e o ridículo de comportamentos do homem, para que este veja a necessidade de contestar e romper com a estrutura social vigente.