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A palavra reflexividade é algo extremamente presente nos discursos sociais contemporâneos. No curso dos aconte- cimentos que tiveram lugar a partir da segunda metade do século XX, os quais contribuíram consideravelmente para observações contemporâneas sobre comunicações de risco, a sociedade passou a conviver enormemente com situações que podem ser observadas incondicionalmente na forma de pro- cessos sistêmicos altamente reflexivos.

O risco é um evento complexo e dotado, contemporane- amente, de características particulares, como a globalidade,

invisibilidade e transtemporalidade.30 Não obstante, tem-se

o risco como produto de processos decisórios autônomos e al- tamente complexos, os quais ocupam lugar de destaque no contexto organizacional. De posse de tais argumentos, o ris- co biotecnológico pode ser observado como uma comunicação que é desencadeada pela sociedade na própria sociedade, por intermédio constantes processos decisório-organizacionais.

29 LUHMANN, Sociología del riesgo, p. 63. 30 Cf. BECK, La sociedad del riesgo, p. 25 et. seq.

A sociedade é um incansável sistema de produção de ris- cos, entretanto, tais riscos passam a ser suportados por essa mesma sociedade, que possui todas as condições para determi- nar o indeterminável e, paradoxalmente, não cessa a produção

de indeterminações.31 Quando fala dos processos decisórios

jurídicos, Luhmann32 explica a reflexividade como processos

que são aplicados a si próprios ou a processos do mesmo tipo, utilizados apenas posteriormente em termos definitivos. Em outros termos, processos reflexivos são aqueles capazes de te- matizar a si próprios por meio de operações de auto-observa- ção. Isso evidencia a capacidade dos sistemas sociais em pro- blematizar suas comunicações específicas por si próprias.

Giddens aponta para o fato de que em determinado sen- tido a reflexividade é uma característica que define a ação humana. Isso ocorreria pelo fato de que todos os seres hu- manos se mantém em contato com as bases fundamentais de suas ações justamente como parte integrante dessas ações. Nesse sentido, não seria possível a assimilação de complexas cadeias de eventos, mas tão somente uma (auto)monitoração

do próprio comportamento.33

31 ROCHA, Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico, p. 36. 32 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

v. II. p. 13-14: “os mecanismos reflexivos são uma forma generalizada, muito antiga, do processamento de sentidos. [...] Ao longo do desenvolvimento social esse significado aumenta de forma reciprocamente entrelaçada. Por exemplo: falar sobre as palavras; a troca de possibilidades de troca na forma do dinheiro; a produção de meios de produção; a aplicação do poder sobre os detentores de poder; o aprendizado do aprender e o ensino de ensinar na forma da pedagogia; a confiança na confiança dos outros; a pesquisa sobre a pesquisa (metodolo- gia); a representação de representações [...]; a decisão sobre o decidir ou não na burocracia; o sentir (desfrutante ou sofridamente) os sentimentos próprios ou dos outros; a valorização de valores na forma da ideologia e na de caso [...] da normatização do estabelecimento de normas”.

33 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp,

Sob tal contexto, a supracitada explicação de Luhmann toma uma forma mais palpável, sendo possível atribuir esse caráter reflexivo ao próprio processo cognitivo da comunica- ção sistêmica, que passa a conhecer o conhecer, a observar

a observação.34 Essa evidente forma de (auto)monitoramento

aponta para o fato de que tradição e cultura são dois contex- tos altamente evolutivos, o que, em última análise contribui decisivamente para os processos reflexivos do sistema social.

Os processos autorreferenciais (reflexivos) da sociedade viabilizam que o risco seja tematizado pelo próprio risco, o que apenas pode ocorrer no âmbito interno de sistemas co- municativos autorreferentes. Com isso, argumenta-se que a percepção da redução da complexidade do risco biotecnológico torna possível que risco minimize risco e, paradoxalmente,

risco produza risco.35 Vale dizer que tal característica espelha

(reflete!) sua capacidade em (auto)observar-se. A partir daí, torna-se possível construir questões relacionadas ao risco do

risco biotecnológico,36 sendo tal possibilidade de extrema uti-

lidade para observações jurídicas capazes de assimilação do risco sob formas específicas.

A comunicação particular (biotecnologia) reflete riscos de uma ordem específica, ou seja, aqueles gerados pelo emprego

34 Sobre a reflexividade da comunicação vide igualmente LUHMANN. La sociedad

de la sociedad, p. 54-55.

35 SCHWARTZ, O tratamento jurídico do risco no direito à saúde, p. 179.

36 Sobre tal aspecto, são interessantes as inquietações trazidas por De Giorgi,

quando questiona sobre “o que é representado como risco na sociedade de ris- co? O que está em risco nesta sociedade: o direito, a política ou a própria socie- dade? A que se contrapõe o risco? Qual o outro lado da distinção em que um dos lados é a sociedade do risco? Segurança? Estabilidade? Compaixão? Ordem? Ou ainda: racionalidade, crítica, reflexão? O risco da sociedade do risco é uma questão que interessa às operações da estrutura da sociedade ou uma questão relativa ao caráter das descrições da semântica, por meio das quais a sociedade se observa?” DE GIORGI, Direito, tempo e memória, p. 227.

de biotécnicas, que diferem de outros tipos de riscos, como o risco nuclear, o risco econômico ou o risco jurídico. Apesar des- sa diferenciação, cada sistema particular o observa de uma forma própria. Há, pois, uma diferenciação na diferenciação, ou seja, a evidente distinção entre determinados tipos de ris- co e a ulterior forma que adquirem pela sua operacionaliza- ção sistêmica. Isso significa que há um duplo risco: primeiro, no sentido da própria diferenciação entre risco biotecnológico e riscos de outras ordens (por exemplo, risco nuclear, risco nanotecnológico, etc.); segundo, observa-se que o próprio risco sofre ulteriores diferenciações, amoldando-se a formas especí- ficas relacionadas à realidade de cada observador particular.

Em outras palavras, o risco biotecnológico é assimilado diferentemente por cada sistema funcional da sociedade; isso faz com que diferentes discursos sociais o observem de uma maneira específica. Com isso, o sistema jurídico passa a ob- servar o risco biotecnológico e, ao mesmo tempo, o risco do risco biotecnológico, potencializado por sua operacionalização por outros sistemas, o que se torna um evidente problema para o sistema jurídico quando essa passa a (auto)refletir so- bre o risco jurídico do risco biotecnológico, conforme será ob- servado no último item deste trabalho.

Tais constatações (o risco do risco, a diferenciação na di- ferenciação), apontam para determinadas questões: 1) o risco biotecnológico é gerado na sociedade que, ao mesmo tempo, submete-se aos resultados desses riscos; 2) por meio de pro- cessos de auto-observação, a avaliação dos riscos é desloca- da de observações de primeira para observações de segunda ordem; 3) o risco biotecnológico, assim observado, é recons- truído no interior dos sistemas funcionais da sociedade sob

formas específicas, possibilitando uma agir seletivos dos sis- temas funcionais.

Sob outra observação, a palavra reflexividade aqui em- pregada não significa nada mais do que a designação dos pro- cessos de (auto)descrição do risco biotecnológico, o que apenas é possível pela capacidade autopoiética da sociedade em per- manentemente reinventar a comunicação que a caracteriza. No mesmo sentido da comunicação latu sensu, o risco biotec- nológico tematiza a si próprio, evidenciando o fato de que co- municações de risco ocorrem na sociedade e cujo destinatário de tal comunicação não é outro senão essa mesma sociedade.

A reflexividade é uma consequência fundamental da pró- pria realidade autopoiética na qual é inserida a sociedade. Para Luhmann, os problemas de racionalidade da sociedade não podem ser observados sob aspectos de reflexividade da razão, mas, sim, a partir do deslocamento para o âmbito de

sistemas sociais autopoiéticos.37 A racionalidade da socieda-

de, dessa maneira, não pode ser atribuída à perseguida ine- quivocidade da razão humana, tampouco aos improváveis consensos intersubjetivos, mas tão somente à possibilidade dessa mesma sociedade reacionar frente a novos problemas que reiteradamente surgem, o que é possível apenas sob uma forma de sistema social que opere sob condições autorreferen- tes (reflexivas).

Beck38 fala em modernização reflexiva, apontando para o

fato de que essa modernização significaria uma autoconfron-

37 LUHMANN, Niklas. Ecological communication. Chicago: The University of Chica-

go Press, 1989. p. 136.

38 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização refle-

xiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1997. p. 16-17.

tação entre os efeitos de uma, por ele denominada, sociedade de risco e a realidade de formas industriais. Logo, os efeitos apontados por situações de risco não seriam passíveis de as- similação por um modelo industrial de sociedade, na qual a premência de produção de bens é o aspecto central. Nesse aspecto, a recursividade de comunicações de risco obscure- ce discussões anteriormente presentes, deslocando o centro gravitacional dos problemas sociais da distribuição de bens (sociedade industrial) para a distribuição de riscos (sociedade diferenciada).

Os riscos, por isso, não podem ser observados apenas como consequência lógica de processos decisórios, mas, igual- mente, como comunicações que liberam decisões. Essa pers- pectiva circular é plenamente observável quando se visualiza o risco como um processo reflexivo. Tal fato desencadeia níti- das consequências para uma teoria jurídica com pretensão de observar a problemática do risco biotecnológico. Os problemas enfrentados pela sociedade diferenciada, notadamente os re- lacionados ao risco, não são passíveis de transformação em

questões de ordem,39 ou de gestão mediante critérios jurídi-

cos baseados na dicotomia permitido/proibido. Não é possível

proibir o risco.40 Aliás, salienta-se que o risco, em sua forma

atual, é um evento intrinsecamente relacionado a processos democráticos. Quanto maiores os níveis de democracia, maio-

res os riscos aos quais a sociedade é submetida.41

Comunicações de risco, dessa maneira, requerem uma teoria jurídica que leve em consideração toda a complexidade

39 BECK, A reinvenção da política, p. 21. 40 DE GIORGI, Direito, tempo e memória, p. 235.

e o pluralismo que caracterizam a sociedade contemporânea, bem como, que observe os processos sociais reflexivos que ge- ram/amplificam o risco biotecnológico. É possível observar, pois, que “el concepto moderno de cultura implica tanto re- flexividad en el sentido de autoanálisis como constatación de la existencia de otras culturas, es decir, la contingencia de que determinados ítems sean específicos de formas de vida

concretas”42 no âmbito da sociedade. Com isso, a possibilidade

de análise do risco biotecnológico escapa do alcance de uma teoria jurídica positivista, com pretensão de universalidade, para centrar-se justamente nos processos auto-organizatórios da sociedade, bem como considerando toda sua complexidade. A partir de tal constatação, abrem-se possibilidades para a gestão do risco biotecnológico com base em um Direito plural, capaz de (auto)observar-se seletivamente, bem como de dialo- gar com outras instâncias comunicativas.