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CAPÍTULO I. A CONFIGURAÇÃO DA MEMÓRIA E O DEBATE

1.3. A Regência e o debate historiográfico

70 Seguindo a cronologia apresentada por Silva Lisboa e adotada, também, por Pereira da Silva, Varnhagen considerou como “primeiro passo” a chegada da Corte, no Rio de Janeiro, em 1808.

71VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit., p. 17.

72Sobre a contribuição de Varnhagen para a historiografia da Independência, ver: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Astúcia Liberal. Bragança Paulista: EDUSF/Ícone, 1999. Cap. 1; COSTA, Wilma Peres. A Independência na historiografia Brasil. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005. P. 53-118.

O centenário da Independência, em 1922, estimulou novas reflexões sobre o processo de formação da nação, destacando-se a produção de Manoel de Oliveira Lima73que publicou, em 1909, D. João VI no Brasil e, em 1922, O movimento da independência. Diplomata de carreira, amigo pessoal de Joaquim Nabuco, acusado de monarquista por Pinheiro Machado, com muita erudição, participou, com suas obras, para a consolidação de uma “memória” sobre a formação da monarquia brasileira.

É bastante conhecida a abertura de Oliveira Lima para sua obra O Movimento da Independência:

Tem-se dito da independência do Brasil que foi um desquite amigável entre os reinos unidos. Não há, porém, desquite perfeitamente amigável: precedem-no sempre incompatibilidades, rusgas, desavenças. Pode não ocorrer propriamente violência. Foi o que se deu nesse caso: a separação só teve que arcar com a resistência do General Madeira na Bahia, depressa vencida. O mais consistiu em amuos, ameaças e ajustes de interesses. Sobreviveu, entretanto, um como que ressentimento entre as duas partes que, querendo simular indiferença, de fato caíram num alheamento, o qual, após durar bastante tempo, se foi progressivamente desvanecendo, já nos nossos dias, para dar lugar a uma cordialidade necessária e possivelmente fecunda”.74

Despindo o episódio de rupturas, Oliveira Lima preferiu explicar o “nascimento da nação” a partir de um maior “constitucionalismo” dos brasileiros.

(...)Os brasileiros estavam pois inconscientemente mais preparados para uma monarquia constitucional, ao passo que não faltavam entre os portugueses os que por seus sentimentos e interesses tinham que se

73Sobre o autor consultar, entre outros, MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade. Bauru: Edusc/FAPESP, 2001.

74 LIMA, Oliveira. O movimento da Independência: o Império Brasileiro (1821-1889). São Paulo: Melhoramentos, 1962. P. 11.

manter instintivamente aferrados à monarquia absoluta. E na verdade, quando se deu o movimento geral e impetuoso de adesão do reino ultramarino ao programa revolucionário de Lisboa, encarnado legal e ordeiramente nas Cortes de 1820, muitos eram os brasileiros arrastados pela quimera liberal e muitos eram os portugueses instigados pelo ideal da recolonização”.75

Na defesa da continuidade, nos moldes propostos por Varnhagen, Oliveira Lima partiu de uma interpretação da separação como resultado do embate entre o constitucionalismo dos brasileiros e o absolutismo das Cortes. Assim, a “independência” teria sido uma reação, decorrência das atitudes recolonizadoras das Cortes; não há um confronto entre portugueses e brasileiros porque os representantes da Casa de Bragança haviam se imbuído da dupla identidade:

“Há de se destacar que o príncipe herdeiro, cheio de ardor político, andava de coração com os constitucionais, mesmo porque era a esse tempo Dom Pedro português na alma, da mesma forma que Dom João VI se tornara brasileiro”76

A força, mais uma vez, das referências estabelecidas pelas palavras de D. Pedro em 1823, se apresenta, especialmente, no reconhecimento da importância da condição de Reino, estabelecida pelo governo joanino e nos desdobramentos do movimento constitucionalista do Porto, no Brasil. A cisão estava operada com a organização da colônia

em reino: faltava tão somente legalizá-la, criando o Império.77

A cronologia estabelecida pelo Imperador em sua fala à nação, representada por seus deputados em assembléia, é retomada, em seus principais marcos. A chegada da Corte, em 1808, a elevação a Reino Unido, em 1815, a Revolução de 1820, a partida de D. João VI para Portugal e a ascensão, através do decreto de 22 de abril, de D. Pedro à condição de Regente constituem balizas a indicar um processo de afirmação da soberania do Brasil. O

75Idem, ibidem,p. 19. 76Idem, ibidem,p. 13. 77Idem, ibidem,p. 63.

“Fico” foi também mencionado como referência decisiva, e a Regência configurava-se, assim, em dois momentos, antes e depois da decisão de D. Pedro de permanecer no Brasil, representando um passo decisivo em direção à afirmação de seu governo e da separação.

O ano de 1821 pode, contudo, denominar-se no Brasil o do constitucionalismo português: o de 1822 é que seria o do constitucionalismo brasileiro. A regência na fase em que seu inspirador o conde dos Arcos, como na fase imediata que se prolongou até o Fico, foi um governo bem intencionado, mas nada apreciado, quase impopular.78[grifo meu]

Ao participar, como outros intelectuais de sua época do debate em torno das origens nacionais e da República79, Oliveira Lima contribuiu para uma interpretação do regime monárquico brasileiro de um ângulo diferente de Varnhagen. O autor parece considerar e buscar as proposições de Pereira da Silva, que haviam sido praticamente relegadas a segundo plano, frente, especialmente a Varnhagen. É muito reveladora a forma de traçar o perfil das lideranças, especialmente no tocante às figuras de D. João VI e D. Pedro I:

(...) Não escapava à perspicácia, que era grande, de Dom João VI, o que se passava no íntimo do filho, e isto contribuía para que mais hesitasse em mandá-lo para Portugal na qualidade de seu lugar-tenente, segundo lhe aconselhavam tantos, no número o ministro inglês Thornton, ao urgir pela centésima vez o rei a adotar resoluções decisivas que impedissem a dissolução iminente da monarquia portuguesa. Enciumava-o aquilo que Dom Pedro poderia ultimar em Lisboa e redundasse em fama do herdeiro da Coroa, receando também concessões que fossem de natureza a deslustrar o poder real e a ofuscar sua autoridade soberana, da qual era mui cioso”80.

78

Idem, ibidem,p. 75.

79Sobre o período e a discussão em torno do centenário da Independência, consultar, entre outros, LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo: UNESP, 1999; e MOTTA, Marly. A nação faz cem anos. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992.

Oliveira Lima consagrou D. João VI como uma figura matreira, político ardiloso e monarca sagaz que apenas pecava pela fraqueza de vontade81, enquanto D. Pedro era apresentado como “estouvado”, imaturo e ambicioso.

(...) o Brasil - acreditava ou, antes, fingia acreditar o astuto monarca- já se achava afeito ao seu paternalismo: deixá-lo entregue ao herdeiro da Coroa, moço ambicioso e estouvado como ao próprio pai se afigurava, era facultar uma transformação radical como a que se verificou”.82

Diplomata de carreira, Oliveira Lima reconheceu implicações da luta pela independência das colônias espanholas na América, no contexto político em que D. Pedro atuava. Incorporando argumentos sugeridos pelo Imperador, no discurso de abertura da Constituinte, em maio de 1823, distinguiu a aclamação popular como força a referendar a autoridade de Sua Alteza Real, que entendeu como aprovação do poder do rei pela nação.

Buscando sustentar suas argumentações especialmente nos trabalho de Silva Lisboa, Armitage83, Pereira da Silva, mas sem esquecer também de Varnhagen, Oliveira Lima reforçou uma interpretação da Regência de D. Pedro como uma transição, o desenvolver de uma ação política que tinha um fim antevisto – a separação de Portugal e a formação de uma nova Nação que, especificamente, representava uma fusão das heranças portuguesas com as especificidades brasileiras, resultando num regime “mestiço”-a monarquia constitucional do Brasil. Era preservado, desta forma, um caráter inovador e modernizante para a Monarquia, enfrentando, Oliveira Lima, pressupostos que procuravam

81Idem, ibidem,p.13.

82Idem, ibidem,p.13.

83ARMITAGE, John. Historia do Brasil: desde o período da chegada da família real de Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831, compilada à vista dos documentos públicos e outras fontes originais formando uma continuação da história do Brasil de SOUTHEY. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. Sobre a obra de Armitage, consultar: MARSON, Izabel A. O Império da Revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monárquica. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva.São Paulo: Contexto; Bragança Paulista: USF, 1998; e OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Astúcia liberal. Bragança Paulista: Edusf/Ícone, 1999, cap. 1.

ligar a monarquia e a figura de D. Pedro II a atraso e “farsa política”, especificamente, quanto às práticas parlamentaristas do II Reinado84.

Outra importante referência para a compreensão da Regência do Príncipe e questões colocadas sobre as negociações que envolvem a afirmação da autoridade de D. Pedro é a obra de Tobias Monteiro, História do Império: a elaboração da Independência85. Preocupado em reconstituir a construção política do processo de ruptura86, conferindo a elas um caráter de “elaboração”, expresso inclusive no próprio título de sua obra, o autor acompanhou a atuação do rei D. João, e do príncipe D. Pedro, num diálogo tenso, nem sempre transparente, com conselheiros e assessores. Das incertezas e disputas geradas pelo exercício do poder, ia emergindo um arcabouço institucional concretizado na monarquia constitucional. No entanto, ao detalhar o delineamento das instituições, Tobias Monteiro apontou os conflitos, mapeou circunstâncias e discutiu intenções que sustentavam a ação política. A passagem do poder de D. João VI para D. Pedro transcendia a simples questão do retorno de um ou outro para Portugal. O quadro apresentado é tenso, ficando claras as articulações que envolviam o aparecimento da figura do Príncipe, no cenário político. Como Pereira da Silva, Tobias Monteiro procurou dar conta da emergência do Príncipe, no complexo e intrincado panorama de disputas políticas, no interior da Corte joanina, dividida entre propostas de permanência ou retirada de D. João VI ou de D. Pedro. Inserir-se no contexto da luta política também havia sido uma das preocupações de D. Pedro, na fala de 1823. Assim, Silva Lisboa, Varnhagen, Oliveira Lima e Tobias Monteiro contribuíram para uma interpretação onde a figura do Príncipe necessariamente teria que ser reconhecida e vai ganhando força e se afirmando na liderança da nação. Ainda que não haja coincidência entre essas visões sobre os acontecimentos e a personalidade de D. Pedro, o argumento da legitimidade dinástica, tão celebrado por Lisboa, é tomado como fundamental para a

84Ver, especialmente, FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. rev. São Paulo: Globo, 2001. Cap. 10: Daí, das eleições inautênticas, dos partidos formados pelos grupos sem raízes populares, estamentalmente autônomos, projeta-se sobre o país a vontade augusta, o imperialismo, refugiado constitucionalmente no Poder Moderador, tenazmente vivo. P. 392.

85MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da Independência. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1927.

86 Cf. COSTA, Wilma Peres. A Independência na historiografia Brasil. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e Historiografia.São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005. P. 73.

afirmação da monarquia constitucional brasileira, a diluir confrontos e projetar o “consenso”, seja entre protagonistas seja no conjunto da sociedade.

Desta forma, interrogações que sejam colocadas em relação à “construção” da autoridade do Príncipe encontram, em Tobias Monteiro, indicações estimulantes, especialmente quanto ao início da Regência, ou seja, o Episódio de 26 de fevereiro (juramento das bases da Constituição) e a repressão aos confrontos na Praça do Comércio, em 21 de abril de 1821. Apoiando-se, como também o fizeram Varnhagen e Oliveira Lima, na leitura das cartas do Conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira87, Tobias Monteiro considerava, quanto ao 26 de fevereiro:

Havia cerca de dois meses o Príncipe era de fato o soberano, pois este, na frase de Silvestre Pinheiro apenas conservava “aparência de autoridade”. Desde que o rei não soubera dar-lhe ordens, obrigá-lo a partir e ficara oscilando num vai-vem de vacilações, entre a larga visão de Palmella e o emperramento pétreo de Thomás Antônio; desde o dia em que vira o Rei, quase desfalecer ao contato da multidão, deixar-se levar aos boléus, meio desacordado, até as portas do paço; desde que foi a sua voz a voz ouvida pelo povo, porque a do Rei lhe morria na garganta presa do terror; desde então D. Pedro teve de certo, clara como nunca, a compreensão do seu destino e entreviu a missão que os acontecimentos lhe impunham no Brasil. Era fácil prever quanto seriam vários, nas mãos trêmulas de D. João, a sorte do novo Reino, o futuro de tão grande Império.88

No entanto, esta figura “predestinada” que emergia do 26 de fevereiro, iria envolver-se na repressão às manifestações da praça do Comércio como um conspirador que, ligado às tropas, lutava para impor sua autoridade, uma vez que era necessário opor-se a qualquer possibilidade de que D. João VI pudesse evitar sua partida. Logo, D. Pedro “queria”

87 Silvestre Pinheiro Ferreira, conselheiro de D. João VI, nomeado para o ministério da guerra durante o conturbado período de 1821, deixou importante “testemunho” dos confrontos políticos vivenciados no Rio de Janeiro. FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Cartas sobre a Revolução do Brasil pelo Conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 51, p. 306, 2º trim./1888. 88MONTEIRO, Tobias. Op. cit., p. 348.

a partida do rei. Sua liderança estava em “elaboração”, em contraposição à figura “talhada para governar” ou do “herói”, que Silva Lisboa e Varnhagen procuraram apresentar. Mais uma vez, Tobias Monteiro foi buscar em Silvestre Pinheiro as referências para entender os meandros da política e assim considerou:

Concorre Silvestre Pinheiro para confirmar-se a opinião de caber a D. Pedro a responsabilidade desses acontecimentos. Quando ele chegou à Quinta, de manhã, ouvindo a muitas pessoas ali reunidas, concluiu que ‘estava decidida a vitória do segundo dos três partidos’, o do Príncipe herdeiro e do Conde dos Arcos. Então verificou-se ter-se querido ‘de propósito estorvar todo o acesso do Ministério a Sua Majestade, para que ficasse ao partido vencedor o campo livre’”.89

Tobias Monteiro contribuiu com a interpretação que consagrou um caráter vacilante a D. João e de impetuosidade ao Príncipe - para ele, fundamental para defender e consolidar a monarquia constitucional, defensora da “ordem” e construtora da “civilização”. No entanto, sua dedicação à pesquisa preservou ricos indícios documentais, que sugerem as dificuldades vividas pelos protagonistas políticos. Portanto, o autor incluiu fontes e documentos que foram negligenciados, por exemplo, por Pereira da Silva e Varnhagen, ampliando as possibilidades de interpretação sobre a Regência, mostrando ambigüidades e matizações que nos demais historiadores citados aparecem muitas vezes aprisionadas no entrelaçamento entre a biografia da nação e a biografia do Príncipe.

O estudo historiográfico até aqui apresentado, e que não se pretende conclusivo ou extensivo, sobre o momento da Regência de D. Pedro, sugere um quadro bastante específico, em que a figura de D. Pedro teria emergido, já no momento do retorno de D. João para Portugal, investida de uma autoridade reconhecida que, representando os interesses “brasileiros”, enfrentava as “medidas recolonizadoras” das Cortes que não aceitavam o papel primordial do Reino do Brasil no seio da nação portuguesa e precipitaram a separação. Preocupados em legitimar a autoridade do Príncipe como construtora da unidade nacional, os autores mencionados explicaram o movimento pela independência conduzido a partir das lideranças estabelecidas no Rio de Janeiro e qualquer resistência apresentada nas

89Idem, ibidem, p. 353.

demais províncias era tratada como atuação de elementos “externos” à sociedade brasileira, “portugueses” ligados às Cortes. As balizas cronológicas, definidas já no trabalho de Silva Lisboa, referenciando o processo de separação numa autonomia pré-conquistada a partir da transferência da Corte em 1808 e da elevação a Reino Unido em 1815, que se define no Fico, em 9 de janeiro de 1822 e na aclamação de 12 de outubro do mesmo ano, são consideradas marcos comuns. Neste contexto, a liderança do Príncipe é consensual e providencial tomando, como fato, a versão que D. Pedro conferiu à sua própria atuação e que ficou registrada especialmente no discurso de 3 de maio de 1823, com o qual abrimos este capítulo. Entretanto, a publicação, em 1933, de Evolução Política do Brasil90, renovou os debates em torno da independência. O estudo de Caio Prado Júnior atribuiu ao movimento de emancipação política o caráter de revolução, um confronto entre forças sócio-econômicas, onde a nacionalização do governo prolongou-se até a abdicação de D. Pedro, em 1831. Em seu estudo, a Regência de D. Pedro, ou seja, o período entre abril de 1821 e 12 de outubro de 1822, é assim mencionado:

É do entrechoque dessas forças, [ref; partido português e partido

brasileiro] procurando cada qual fazer prevalecer suas reivindicações,

que resultam os diferentes fatos que constituem o agitado período que se estende de 1821 em diante. Não entraremos em pormenores, mas assinalemos sua resultante geral. No desenvolvimento da revolução constitucional no Brasil é o segundo grupo de forças citadas – isto é, o “partido brasileiro” como já então era chamado e que representava as classes superiores da colônia, grandes proprietários rurais e seus aliados – que ganhará a supremacia. (...) Este partido, divisando no príncipe herdeiro D. Pedro (que ficara como regente depois da partida do rei se pai) um hábil instrumento de suas reivindicações, soube dele se utilizar, atirando-o talvez sem que ele mesmo a princípio o sentisse, na luta contra as cortes portuguesas e os projetos de recolonização do Brasil. Desta manobra, coroada de pleno êxito, resultaria a Independência. (...)91[grifos meus]

90PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil: colônia e império. São Paulo: Brasiliense, 1999. 91Idem, ibidem,p. 50-51.

Nesse sentido, o Príncipe aparece como “hábil instrumento” na luta entre grupos sociais. Ou seja, se marcos cronológicos, como os de 1808 e 1821, e a legitimidade dinástica do príncipe herdeiro ainda permaneciam como balizamentos, a figura de Sua Alteza Real ganhou nova dimensão – instrumento - e a Regência não trouxe a ordem ou o consenso, mas foi momento de preparação de movimento revolucionário,cujo desfecho seria 1831. Para Prado Jr., a transferência da Corte constituiu praticamente a realização da nossa Independência 92,

muito embora a nação não tivesse “nascido” a 7 de setembro de 1822.

Outro efeito da forma pela qual se operou a emancipação do Brasil é o caráter de “arranjo político”, se assim nos podemos exprimir, de que se revestiu. Os meses que medeiam da partida de D. João à proclamação da Independência, período final em que os acontecimentos se precipitam, resultou num ambiente de manobras de bastidores, em que a luta se desenrola exclusivamente em torno do príncipe regente, num trabalho intenso de o afastar das influências das cortes portuguesas e trazê-lo para o seio dos autonomistas. Resulta daí que a Independência se fez por uma simples transferência política de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro. E na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas neste processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia, naturalmente as únicas em contato direto com o regente e sua política. Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto.93[grifos meus]

Estavam definidos novos parâmetros sobre a separação de Portugal. O Príncipe não era mais herói e nem mesmo protagonista de primeira plana. A Regência fora um “intervalo de tempo” e a Independência uma “arranjo político”, acordo de bastidores, do qual o

92Idem, ibidem,p. 46. 93Idem, ibidem,p. 52-53.

povo não participara. A movimentação política da Regência deveria ceder lugar para outras interrogações, centradas nas relações econômicas e sociais, em movimento dialético a configurar a história. Mas, permanecia, ainda que para ser contestada ou combatida, a força de narrativas construídas a partir da memória que o Príncipe configurou, no “solene” dia 3 de maio de 1823.

A formulação de interpretações centradas na longa duração teceram nexos mais abrangentes, alongando o movimento emancipatório, indicando a permanência de uma “herança”, a condicionar o presente e a embaraçar a construção do futuro nacional. Assim, Sérgio Buarque de Holanda, na década de 60, contribuiu para novos questionamentos sobre o processo de independência brasileira94. Alguns aspectos ganharam maior destaque, a partir das considerações desse historiador, ressaltando-se a “continuidade” referenciada nos traços das estruturas econômicas e sociais desenvolvidas no período colonial.

A circunstância de se terem mantido aqui e nacionalizado, depois da Independência, as velhas ordens honoríficas, denuncia bem como, ainda neste capítulo, os fundadores do Império do Brasil andaram longe, com poucas exceções, de querer fazer tábua rasa de todas as instituições herdadas da metrópole.95

O estudo de Sérgio Buarque, de certa forma, privilegiou uma análise marcada