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CAPÍTULO II. SUA ALTEZA REAL EM AÇÃO: O”FICO”

2.5. A sustentação nas redes de negócios

A partir da segunda metade do século XVIII, intensificaram-se os investimentos nas atividades agro-pecuárias, especialmente na região centro-sul do Brasil,

voltadas para o abastecimento de uma população em crescimento. Assim, grupos familiares oriundos especialmente de São Paulo, em função dos desdobramentos da atividade mineradora, voltou-se para produção e circulação de mercadorias na região sul de Minas, com destaque para a Comarca do Rio das Mortes e, daí, em direção ao Vale do Paraíba e entorno da baía da Guanabara, onde o Rio de Janeiro, centro urbano em expansão, demandava o fornecimento de víveres e serviços240.

A dificuldade da vida, pelo preço exorbitante porque eram vendidos os alimentos, principalmente a carne das boiadas que vinham tocadas das cabeceiras do S. Francisco e do Piumbí, a escassez do ouro e os impostos que gravaram a sua produção, fizeram com que grande parte da população mineira se viesse infiltrando pelo caminho aberto por Garcia Pais, buscando nas regiões litorâneas da baixada ou nos altiplanos fluminenses as terras férteis onde se pudesse dedicar à lavoura.241

O povoamento e a ocupação desta importante e fértil região deram-se de forma progressiva e intensa. Primeiramente, cuidou-se da concessão de sesmarias e, visando garantir

240Este movimento foi mapeado pelo estudo de Mafalda Zemella, O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII. D’Araújo Guimarães, em 1936, ao descrever a Corte joanina, apontou para “figuras” que interagiram com o governo e puderam expandir seus negócios e participar da administração. Na década de 80, Alcir Lenharo, para o sul de Minas, e Riva Gorenstein, para a Corte e Província do Rio de Janeiro, contribuíram de forma significativa para uma reavaliação da importância das atividades abastecedoras, no âmbito da economia colonial. O desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, na passagem do século XVIII para o XIX, foi abordado por Fernanda Bicalho e a situação da economia da cidade estudada por Cecília Helena de Salles Oliveira. Ilana Blaj deu especial atenção aos “clãs” paulistas que atuaram como sustentação para a expansão das atividades de comércio e produção, nas rotas que interligavam São Paulo, Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Ver: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte, na formação política do Brasil, 1808- 1842.São Paulo: Símbolo, 1979. GORENSTEIN, Riva e MARTINHO, Lenira M. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência.Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal/Secretaria da Cultura, Turismo e Esportes, 1993. BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 1.; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Astúcia liberal. Op. cit. BLAJ, Ilana. Agricultores e comerciantes em São Paulo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, p. 281-296, 1998.

maior peso e influência político-administrativos para produtores que nela se estabeleciam, da organização de freguesias e vilas.

A organização da produção, a abertura dos caminhos e a segurança para a circulação de tropas e fazendas exigiu o controle, confinamento, submissão e incorporação ou expulsão dos indígenas. Assim, procedeu-se ao aldeamento dos índios – especialmente coroados e puris. Ainda no governo do vice-rei D. Luiz de Vasconcelos, por volta de 1779-86, o capitão de infantaria Joaquim Xavier Curado242 foi designado para “pacificar” a região e afastar os botocudos que ameaçavam proprietários da atual cidade de Resende. Posteriormente, Curado participou do processo de aldeamento dos puris; em recompensa por seus serviços, recebeu sesmaria no vale do Paraíba fluminense e foi nomeado, em 1810, comandante da Real Academia por decreto do então regente, D. João.

A fixação da Corte, no Rio de Janeiro, a partir de 1808, implicou em um estreitamento de laços, em função de mútuos interesses, entre a administração joanina e proprietários envolvidos com a produção agrícola e o comércio, já estabelecidos no Brasil, na região configurada a oeste, pelo Rio Preto e a norte e sul, pelos “caminhos do ouro”, envolvendo parte do Vale do Paraíba paulista e o fluminense.

A importância do desenvolvimento da agricultura no vale do Paraíba fluminense, movimento intimamente ligado às oportunidades concretizadas pela presença da Corte, pode ser constatado, por exemplo, na formação de uma rede de comunicações, através de estradas, construção de pontes que permitiram a circulação mais eficiente de mercadorias e o escoamento de produção. Comerciantes de grosso trato, como a família Carneiro Leão, Velho da Silva, Avelar, Pereira da Silva e Pereira de Faro, estabelecidos na Corte, valiam-se

242Joaquim Xavier Curado nasceu em Goiás. Sua família estava ligada às atividades de abastecimento na região. Cedo entrou para o Exército, onde se destacou e mereceu a confiança do vice-rei, D. Luiz de Vasconcelos. A seguir, prestou notáveis serviços nas lutas na região do Prata, para a corte joanina. No Rio de Janeiro, em janeiro de 1822, foi nomeado Governador-de-armas da Corte e Província, desempenhando importante papel no comando de tropas e milícias que apoiaram D. Pedro contra as forças comandadas por Jorge de Avilez. Como referência, indico AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Dom Joaquim Xavier Curado e a política bragantina para as províncias platinas (1800-1808). Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p.161-183, dez. 2002. LAGO, Laurêncio. Brigadeiros e generais de D. João VI e D. Pedro I no Brasil. Dados biográficos, 1800-1831.Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1941. SILVA, A. Pretextato Maciel da. Os generais do exército Brasileiro de 1822-1898. Rio de Janeiro: T.I., 1906. P. 192.

das possibilidades criadas pela presença do governo joanino não só para ampliar suas redes de comércio, mas, também, para se tornarem proprietários de sesmarias, especialmente na região do Vale do Paraíba Por laços de casamento, constituíram importantes redes de parentesco e negócios, associando-se a famílias mineiras, como os Nogueira, e paulistas, como os Leme, envolvidas com agricultura e pecuária. Interessante observar o entrelaçamento familiar entre os Gomes Ribeiro, os Souza Werneck, os Leite Ribeiro, os Resende Costa, com negociantes de grosso trato estabelecidos na Corte, que buscavam terras na região243.

Obtendo cargos na administração joanina, puderam atender suas necessidades de crescimento, especialmente quanto à posse da terra e à circulação de mercadorias.

Em 1819 e 1820, graças à orientação da Junta do Comércio do Rio de Janeiro, uma nova estrada, conhecida pelo nome de caminho do comércio, foi traçada no noroeste fluminense, facilitando o escoamento da próspera região, e que saindo do caminho novo em Iguassú, atravessava a Serra da Estrada Nova, indo dar à povoação das Vassouras e dali, mais ou menos margeando o Paraíba, ia terminar quase na confluência do rio Ubá com aquele rio fluminense. (...) Assim, a região hoje compreendida nos municípios de Vassouras e Valença, tinha os seus escoamentos garantidos pelo caminho novo, pelo caminho aberto pela Junta do Comércio e pela variante traçada por Bernardo Soares Proença, que saindo pouco abaixo de Pati-do- Alferes, vinha desembocar no porto de Estrela, onde então fervilhava nos seus entrepostos de café e nos seus celeiros uma grande atividade comercial, e onde era armazenada a produção fluminense e a mineira, que do interior vinha, no lombo de mulas, em tropas inumeráveis, levando semanas, sob o sol causticante, atravessando a região que floria já na alvorada de sua grandeza.244[grifo meu]

243 Ver FRAGOSO, João L. Homens de grossa aventura. Op. cit. Em tabela, p. 363, Fragoso identifica a presença de comerciantes do Rio de Janeiro na agricultura. Em seguida, p. 364-366, recompõe relações de parentesco entre comerciantes do Rio de Janeiro e produtores agrícolas, especialmente no vale do Paraíba fluminense. Indico, também, MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema. São Paulo Hucitec, 2004. P. 45-91. 244 D’ARAUJO GUIMARÃES, A. C. Op. cit., p. 206.

Configurava-se um expressivo movimento de acumulação entre homens estabelecidos no Rio de Janeiro que, por suas atividades, podiam ser considerados

“empresários cariocas”245, atuando em diferentes setores como a arrematação de contratos da

Coroa, companhias de seguro, comércio de abastecimento e cabotagem e tráfico de escravos. A administração pública teve, muitas vezes, de se apoiar em recursos disponibilizados pelo grupo, através de seus parentes estabelecidos na Corte. Sérgio Buarque de Holanda destacou a

afinidade de interesses e a intimidade de relações com alguns municípios fluminenses e mineiros vizinhos, onde todos os fazendeiros formavam como uma só família246.

Estas famílias puderam configurar sua influência ao participarem, ainda que em posições subalternas, das estruturas administrativas do governo joanino, colocando a serviço do então regente seus conhecimentos e recursos financeiros. A elevação do Brasil a Reino, em dezembro de 1815 e a coroação de D. João, em fevereiro de 1818, representaram momentos de fortalecimento da presença delas, junto à administração. Foi possível a nobilitação247, a lhes facultar postos mais destacados, na cena pública. Com seus negócios em expansão, perceberam o potencial de crescimento representado por uma maior participação política e foram, paulatinamente, afirmando seus interesses, ousando buscar uma nova ordem, onde suas necessidades pudessem ser concebidas como direitos, questões que serão retomadas nos próximos capítulos.

Durante o governo joanino, Xavier Curado esteve no sul, comandando as forças “brasileiras” que se uniram com a Divisão dos Voluntários Reais, nas lutas pela Banda Oriental. Em 1820, retornou à Corte, onde foi nomeado Conselheiro de Guerra. Convenientemente, estava à disposição de D. Pedro um comandante militar dos mais

245GORENSTEIN, Riva e Martinho, Lenira M. Op. cit., p. 150. Indico, ainda, passagem na página 151, onde a autora comenta a importância das ligações junto à administração da Corte e o desenvolvimento das grandes propriedades cafeeiras, na baixada fluminense. Para proteger seus interesses, Joaquim Pereira do Faro e seu vizinho, Manuel Jacintho Nogueira da Gama, por exemplo, conseguiram barrar a passagem por estrada e ponte de demais moradores do termo de Valença, garantindo maior facilidade para o escoamento de suas propriedades. 246HOLANDA, Sérgio Buarque de. Livro dos Prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. P. 268. 247SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser nobre na Colônia. São Paulo: UNESP, 2005. P.261-323.

experientes, comprometido com uma rede mercantil de negócios248 que integrava a Corte e se articulava com Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Rio Grande de São Pedro.

Quando Paulo Barbosa da Silva e Pedro Dias Paes Leme deixaram o Rio de Janeiro, em dezembro de 1821, sabiam a quem deveriam procurar – a rede familiar de negócios – para articular as condições a sustentar a permanência de D. Pedro, no Rio de Janeiro, em troca da garantia da ordem constitucional e da expansão das atividades econômicas.

Era importante, por outro lado, que D. Pedro pudesse sinalizar sua condição de assumir os riscos de tomar a iniciativa, no âmbito das lutas políticas que se desenvolviam, em torno da organização do governo, no Rio de Janeiro e parecer a possíveis aliados capaz de assegurar os interesses deles. Num jogo de duas mãos, grupos nas Províncias se comprometiam com o Príncipe enquanto caberia a ele, defender a condição de capital para o Rio de Janeiro, a segurança para o desenvolvimento dos negócios no centro-sul e a defesa das fronteiras, no Prata.