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CAPÍTULO II. SUA ALTEZA REAL EM AÇÃO: O”FICO”

2.3. Memórias a serviço da monarquia

Desde meados do século XVIII, a monarquia portuguesa confrontava-se com a necessidade de rever as bases sobre as quais se assentavam as relações entre Portugal e seus domínios ultramarinos. A transferência da família real para o Brasil, em 1807, chegando o

príncipe regente à Bahia em janeiro de 1808, não foi o resultado de uma idéia nova. Desde o século XVI, pensava-se nesta hipótese devido às dificuldades internas, lutas sucessórias, guerras contra os espanhóis.155. As guerras napoleônicas, desdobramentos da Revolução

Francesa com a afirmação de uma ordem liberal-burguesa, tornaram ainda mais premente a elaboração de medidas práticas que pudessem dar conta de quadro tão conturbado.

155VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. Administração Joanina no Brasil (1808-1821): o processo de criação de um Estado independente. In: Seminário Internacional D. João VI: um rei aclamado na América (1999: Rio de Janeiro. RJ)Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. P. 348-359.

Assim, já ao assumir o governo, em 1792, D. João156 se preocupou em buscar, entre as principais figuras da administração lusitana, contribuições que pudessem amparar uma ação política.

Dentre as diferentes “memórias” apresentadas ao rei, destacou-se Sistema

político que mais convém que a nossa coroa abrace para a conservação dos seus vastos domínios, particularmente dos da América que fazem propriamente a base da grandeza do nosso augusto trono, que incluía importante reflexão sobre os melhoramentos dos Domínios de Sua Majestade na América157 , de autoria de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, datada

provavelmente de 1797/1798. Defendia-se um concerto de medidas que deveriam reajustar as relações das partes dentro do Império, especialmente entre as “províncias da América” e Portugal; era sugerida uma espécie de federação imperial. Em 1801, o mesmo D. Rodrigo reiterou a possibilidade de transferência da Corte, aventada em outros diferentes momentos de

156Não é intenção deste trabalho uma reflexão sobre o período joanino e suas práticas, objeto de competentes estudos, de diferentes estudiosos. Recorro, apenas, à identificação de algumas questões cruciais com que D. João se defrontava e que vieram a afetar, diretamente, a atuação de D. Pedro. Indico a seguir, as referências bibliográficas com que trabalhei. As questões imperiais foram especialmente analisadas por LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da política: 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. Contribuíram também com questionamentos sobre a temática do império português, a partir da administração joanina: VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. Administração Joanina no Brasil (1808- 1821): o processo de criação de um Estado independente. In: Seminário Internacional D. João VI: um rei aclamado na América (1999: Rio de Janeiro. RJ)Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. P. 348-359. WEHLING, Arno. A monarquia Dual Luso-brasileira: crise colonial, inspiração hispânica e criação do Reino Unido. In: Seminário Internacional D. João VI: um rei aclamado na América (1999: Rio de Janeiro. RJ) Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Senado da Câmara do Rio de Janeiro no contexto das cerimônias de aclamação de D. João VI. In: Seminário Internacional D. João VI: um rei aclamado na América (1999: Rio de Janeiro. RJ).Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis. Col. Virando séculos. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a idéia do império luso-brasileiro. In: Chocolate, piratas e outros malandros. Ensaios tropicais.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999; SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). O império luso-brasileiro: 1750-1822. Lisboa: Estampa, 1986. MESGRAVIS, Laima. A instrumentalização política nas festas na Corte de D. João. Estudos de História, Franca, vol. 2, p. 67-82, 1995.

157De acordo com as indicações de Maria de Lourdes Viana Lyra, em A utopia do poderoso império, p. 65, trata- se de discurso que se encontra na Coleção Linhares da Biblioteca Nacional, sem título ou data. Publicado em MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O intendente Câmara. São Paulo: CEN, 1958. P.277.

crise política em Portugal, em função dos problemas com a França e da expansão napoleônica na Península Ibérica.

Intentava-se, portanto, no quadro revolucionário europeu, evitar ou até mesmo se antecipar ao movimento geral, preservando as condições da monarquia bragantina. O movimento de independência na América inglesa158 contribuiu para manter em debate as relações entre as partes do Império português.

Em 1808, a Corte portuguesa deslocou-se para a América, apresentando, como justificativa, a invasão de Portugal pelas tropas francesas.

Após 13 anos, em função da “revolução liberal do Porto”, D. João VI se viu na contingência de retornar a Europa. Ao deixar o Rio de Janeiro, o rei nomeou seu filho regente; a já tensa relação entre grupos estabelecidos nos reinos de Portugal e do Brasil se agravou.

A questão com que me defronto é, especificamente, o desdobrar-se do movimento de reformas, ampliado com a estadia da Corte, no Brasil, uma vez que arranjos arduamente construídos, como, inclusive, a elevação do Brasil a Reino, encontravam-se ameaçados, pelas conseqüências da Revolução Liberal, em Portugal. Para esta situação alertava a Memória, enviada a D. Pedro e que chegou ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1822.

Um primeiro momento, extremamente difícil, havia sido enfrentado com a desocupação do território português, pelas tropas francesas, a partir de 1814. Se a transferência da Corte para o Brasil havia sido justificada pelo próprio governo como uma necessidade para preservar a monarquia, a derrota napoleônica atualizou as discussões em torno das relações entre Lisboa e o Rio de Janeiro. As controvérsias remetiam à continuidade ou não da Corte, no Brasil. A elevação do Brasil à categoria de Reino Unido pode ser entendida, assim, como o amadurecimento de um lento processo de decisão, alimentado, por exemplo, pelas reflexões do Conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira, apresentadas a D. João, em 1814. Importante considerar que Silvestre Pinheiro, em sua correspondência, mostrou que D. João havia solicitado a vários outros colaboradores estudos sobre a reorganização político- administrativa do Império, atestando, assim, a insatisfação do então regente com uma situação

158A luta pela emancipação das colônias inglesas na América, configurada pela constituição americana de 1787 foi entendida, em Portugal, pelo grupo reunido em torno de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, assim como as lutas na França, a partir de 1789, contra a monarquia, como “revolução”, a ser combatida, conforme: VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit. MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a idéia do império luso-brasileiro. In: Chocolate, piratas e outros malandros. Ensaios tropicais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

que se revelava, a cada dia, mais indefensável, em função das modificações, inclusive, do contexto europeu.

A questão do estado, que se agita sobre o regresso da corte de V. A. R. para a Europa, e sobre o qual V. A. R., por efeito de sua alta benevolência, se há dignado de ordenar-me, que diga o meu parecer, é sem dúvida um dos maiores problemas políticos, que jamais soberano algum teve de resolver.159

Na reflexão entregue a D. João, Silvestre Pinheiro foi capaz de expor seu ponto de vista, quanto à reorganização que sugeria, enfatizando a difícil e complexa situação do governo destacando que (...) são precisas grandes e extraordinárias providências, para

assegurar a integridade da monarquia, sustentar a dignidade do trono, e manter o sossego e a felicidade dos povos160.

As ponderações de Silvestre Pinheiro Ferreira em torno da complexidade das relações entre as partes da monarquia portuguesa foram retomadas pela Memória de 1822, ainda que a situação política fosse outra, mas no seu propósito de preservar o Império português, a partir do Reino do Brasil.

A intenção de Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1814, já encaminhava para uma reordenação do Império, através de uma equiparação das partes, para que o todo se conservasse unido. Entre suas propostas destacava-se:

lei pela qual V.A.R. há por bem mandar dividir, tanto o reino de Portugal e suas dependências, como o império do Brasil e domínios da Ásia e África, em províncias, comarcas, distritos e freguesias; a fim de se estabelecerem, em ambos os Estados correspondentemente, os seguintes tribunais ou estações de governo, que compreenderão todas as atuais, simplificando V.A.R. por meio desta redução o expediente dos negócios; abolindo a odiosa distinção de colônias e metrópole, e regulando a promoção e acesso das empresas, tanto

159FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Memórias Políticas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 47, v. 1, p. 1 e ss.

civis e eclesiásticas, como de guerra e marinha, do ultramar para a Europa, e vice-versa, sem distinção alguma de países161.

Com grande habilidade, Silvestre Pinheiro procurou apresentar seu projeto como um conjunto de medidas administrativas que beneficiaria uma comunidade ideal, a “nação portuguesa”, quando, possivelmente, suas propostas atendiam a importantes interesses que se desenvolviam dos dois lados do Atlântico.

O decreto de 16 de dezembro de 1815, pretendendo uma composição com as nações européias que negociavam a reconstrução da Europa após a derrota de Napoleão, elevou o Brasil à condição de Reino Unido, ratificando a importância do Rio de Janeiro, no âmbito do Império e favorecendo um processo de crescimento das atividades econômicas na América portuguesa. Os termos do decreto incorporaram parte das sugestões de Silvestre Pinheiro, especialmente quanto à intenção de equiparar instrumentos de administração, entre as partes da Monarquia. Por outro lado, o decreto de 1815, deixou questões em aberto como a divisão dos Reinos do Brasil e Portugal e dos domínios na África e Ásia.162

A permanência da Corte, no Rio de Janeiro, foi motivo de intenso debate e muitas negociações. Enquanto, por um lado, representou um fortalecimento do Rio de Janeiro, foi, também, vista como um entrave ou peso para outras regiões do Império português, tanto em Portugal como na América.

Em 1817163, os descontentamentos dos dois lados do Atlântico explodiram em movimentos revolucionários. Em Portugal, os sacrifícios exigidos da população, durante as guerras napoleônicas pareciam negligenciados e esquecidos. A permanência da Corte no Rio de Janeiro e a equiparação política entre Portugal e Brasil, representada pela elevação do Brasil à condição de Reino a estabelecer a emancipação da América portuguesa frente à

161

Idem, ibidem.

162Ver verbetes: Reino Unido e Províncias. In: VAINFAS, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Respectivamente p. 628-629 e 597-599.

163 Cf.: MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972. QUINTAS, Amaro. A agitação republicana no Nordeste. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. 3ª. ed. São Paulo: DIFEL, 1970. T. II, v. 1, p.207-226.

antiga metrópole, conflagrou Portugal164. Na interpretação dos “revolucionários” de 1820, a presença de uma regência em Portugal, sustentada pelas tropas inglesas, sugeria uma nova ocupação; as dificuldades para produtores, a perda de espaço no mercado do Brasil, a desvalorização da moeda, a carga tributária e a permanência da Corte no Rio de Janeiro pareciam sugerir um descaso do monarca para com seus súditos.

Maria de Fátima Silva Gouvêa, ao estudar as cerimônias de aclamação de D. João, no Rio de Janeiro, em 1818, afirmou:

fica bastante evidente nessa conjuntura ... a reafirmação da centralidade do Rio de Janeiro no interior de uma lógica tipicamente de Antigo Regime, integrada por cerimônias de corte e de relações de pacto informadas por uma dada economia de prestígio social. Se por um lado, a vinda da família real para a América portuguesa havia reafirmado tal lógica em termos institucionais, culminando inclusive com a elevação do vice-reino à condição de Reino Unido, por outro, ficava fortalecida uma dada noção de pacto a configurar as relações de poder no campo político do Rio de Janeiro, vinculando os indivíduos à uma certa economia de troca de favores já tão bem estudada em termos das exigências materiais postas pela presença da família real no Rio de Janeiro.165

A autora evidenciou a importância do Rio de Janeiro e as complexas relações sócio-econômicas estabelecidas pela presença da Corte. Nos dois lados do Atlântico, atuavam forças políticas dispostas a enfrentar o governo joanino e a não se submeter às orientações que emanavam do Rio de Janeiro. No Brasil, o relacionamento da Corte com as demais províncias também era problemático. Havia grande descontentamento com a carga tributária muito

164Cf.: ALEXANDRE, Valentim. Op. cit. Especialmente parte III, cap. 4, p. 328-369 e parte IV, cap. 1, p. 420- 440. Ver, também: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Movimento constitucional e separatismo no Brasil, 1821- 1823.Lisboa: Livros Horizonte, 1988.

165GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Senado da Câmara do Rio de Janeiro no contexto das cerimônias de aclamação de D. João VI.In: Seminário Internacional D. João VI: um rei aclamado na América (1999: Rio de Janeiro. RJ)Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. P.253.

elevada e sempre crescente, enquanto as lideranças regionais questionavam a dependência administrativa e jurídica, em relação ao Rio de Janeiro166.

Mesmo na Corte e província do Rio de Janeiro, a política joanina fomentou conflitos; práticas do Antigo Regime quanto a isenções e monopólios agudizavam disputas pelo controle do comércio de abastecimento e de cabotagem. D. João e seus ministros haviam facilitado de forma expressiva o enriquecimento de algumas famílias, através de distribuição de títulos e terras. A concessão de sesmarias167, prática recorrente do governo joanino como forma de não só recompensar por serviços prestados como estimular o desenvolvimento de práticas agrícolas ligadas tanto ao abastecimento da Corte quanto à exportação, negligenciou e descontentou posseiros e meeiros, enquanto concentrava a riqueza nas mãos de poucos apaniguados pela monarquia. Artesãos, médios e pequenos comerciantes urbanos, trabalhadores livres ressentiam-se das altas de preços, desregulamentação das atividades econômicas e dos tributos, enquanto atacadistas defendiam uma maior liberdade nas práticas comerciais168.

O desenvolvimento de diferentes projetos políticos, especialmente quanto às relações entre as partes que compunham o Império, sustentados por atividades de uma imprensa nascente e novas formas de organização da sociedade, como a maçonaria, contribuiu para sustentar a luta política que expressava o conflito de interesses, dentro da nação portuguesa. Entre 1817 e 1820, a administração joanina viveu momentos difíceis; os debates entre os conselheiros do rei169 apontavam soluções antagônicas que, em vez de resolver pendências, estimulavam a luta política.

166OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A Independência e a construção do Império: 1750-1824. São Paulo: Atual, 1995.

167Segundo Saint-Hilaire, todos os grandes fidalgos da corte de D. João VI possuíam grandes extensões de terras na antiga capitania do Rio de Janeiro. Fundaram então grandes fazendas.Apud: TAUNAY, Affonso de E. História do café no Brasil. Rio de Janeiro: 1939. V. 5, p. 180.

168Ver: GORENSTEIN, Riva e MARTINHO, Lenira. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal/Secretaria da Cultura, Turismo e Esportes, 1993.

169MONTEIRO, Tobias. Op. cit. Especialmente cap. 10, p. 242-286. As divergências entre os conselheiros e os diferentes projetos políticos que defendiam, a partir da Revolução Liberal de 1820, podem ser acompanhados, também, em FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Cartas sobre a revolução do Brasil pelo conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 51, 1888.

Assim, o movimento que se iniciou na cidade do Porto, em 20 de agosto de 1820, efetivamente exprimiu, como um “detonador” a convulsionar a sociedade portuguesa, a necessidade de um re-ordenamento político-institucional. D. João VI, no Rio de Janeiro, se viu “forçado” a retornar para Portugal e, aparentemente, a ceder ao movimento constitucionalista. No entanto, deputados reunidos em Cortes que se pretendiam constitucionais entraram em conflito, frente aos desafios de construir uma pauta comum que atendesse, ao mesmo tempo, as diferentes partes do Império, mais especificamente, o Reino do Brasil e Portugal170, pois se buscava instituir relações liberais, tanto do ponto de vista econômico como social, entre segmentos ainda marcados por relações favorecidas por regulamentações que remanesciam do Antigo Regime e garantiam privilégios e proteção.

O diálogo entre Lisboa e o Rio de Janeiro tornou-se cada vez mais tenso. Observamos como na Memória enviada a D. Pedro, o debate em torno da organização administrativa do Reino do Brasil, expressa nos decretos 124 e 125, poderia, na argumentação do autor, comprometer a liderança política do Príncipe e os destinos da monarquia, fazendo com que incentivasse o Príncipe a não anuir ao insidioso chamamento que lhe tem feito a

“facção” que retém o Seu Augusto pai no cativeiro. Sua orientação era para que o Príncipe

permanecesse no Brasil; para tanto era necessário consolidar alianças e combater inimigos, tanto no Rio de Janeiro como em Portugal. Como considerou Valentim Alexandre,

reconhecidas as juntas provinciais, diretamente ligadas ao governo e

às Cortes de Lisboa, ficava comprometida a regência de D. Pedro no Brasil. Sobre esse ponto, a comissão [de Constituição] era peremptória: considerando “desnecessária e até indecorosa a demora de Sua Alteza o Príncipe Real no Rio de Janeiro”, o parecer tinha por “conveniente aos interesses da Nação, e conforme aos princípios do sistema, que ela abraçou”, que D. Pedro se retirasse de imediato para a Europa, visitando “como viajante as Cortes, e Reinos de Espanha, França e Inglaterra” ao mesmo tempo em que

170ALEXANDRE, Valentim. Op. cit. BERBEL, Márcia. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas (1821/1822).São Paulo: Hucitec/FAPESP, 1999. Ver, ainda, verbetes: Liberalismo e Vintismo, In: SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1965. Respectivamente, v. 2 e v. 4.

preconizava igual destino para D. Miguel, o que revelava a vontade de dispersar a família real, isolando D. João VI.171

É importante destacar a essencialidade de se reconhecer certo descompasso cronológico entre a movimentação política, dos dois lados do Atlântico, e sua oficialização, através da publicação de decretos e instruções de governo.

Neste contexto, ganham grande importância os decretos números 124 e 125, anteriormente citados. Assinados em 29 de setembro e publicados em 1º. de outubro, eram objetos de intensa discussão nas Cortes portuguesas desde os meses de julho-agosto de 1821; estes debates eram acompanhados através de meios de circulação de notícias mais informais, como correspondências pessoais, relatórios de representantes comerciais, contatos entre parentes e amigos, pelos diferentes grupos sócio-econômicos em intensa atividade política, especialmente nas províncias do Reino do Brasil. A chegada dos deputados brasileiros às Cortes, em agosto de 1821172, favoreceu a circulação de notícias. Deste intervalo temporal emergiam condições, destacadas inclusive na Memória, já apresentada, para que, nas Províncias do Brasil, proprietários, negociantes, funcionários da administração, comerciantes e artesãos participassem do debate político173, encaminhando reivindicações. O teor dos decretos não agradava a diferentes interesses firmemente enraizados nas Províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, uma vez que a determinação para eleições nas Províncias podia acirrar confrontos e ameaçar aqueles que estavam no poder, através das Juntas Provisórias174. As Cortes, na intenção de firmar vínculos com o movimento de formação de Juntas de Governo, nas diferentes Províncias no Brasil, reconheciam esta forma de administração

171ALEXANDRE, Valentim. Op. cit., p. 580. 172BERBEL, Márcia. Op. cit., p. 83 e ss.

173Inflamados debates foram encaminhados por periódicos, especialmente o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, o Espelho e o Revérbero Constitucional Fluminense, conforme LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência. (1821/1822).São Paulo: Cia. das Letras, 2000. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: cultura e política, 1820/1823. Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ, 2003. OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Na querela dos folhetos: o anonimato e a supressão de questões sociais. Revista de História, São Paulo, n. 116, p. 55-65, 1984.

174As repercussões do decreto 124, nas Províncias, serão abordadas com mais detalhamento, para Minas Gerais, no capítulo III e para São Paulo, no capítulo IV deste trabalho.

pública, atribuindo a elas ampla jurisdição e propunham uma vinculação direta das autoridades assim constituídas com Lisboa. A relação direta com Lisboa e não com o Rio de Janeiro poderia significar maior liberdade e autonomia; mas, as determinações para que os governos constituídos no momento do Juramento das Bases da Constituição preparassem eleições, não era bem recebida. Por outro lado, as Juntas deveriam dialogar com Governadores-de-Armas, diretamente subordinados às Cortes, perdendo ou dividindo parte de seu poder, o que provocava inquietações. Ou seja, as Juntas não disporiam de força de coerção autônoma para fazer valer suas decisões e estariam em condição de permanente