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A REGULAÇÃO DOS FLUXOS ECONÔMICO ECOLÓGICOS NOS AGROECOSSISTEMAS

A estratégia de reprodução do processo de trabalho é o principal fator de distinção entre o típico modo de produção camponês e o tí- pico modo de produção empresarial. Enquanto a gestão empresarial se orienta por estratégias de reprodução fortemente dependentes dos mercados, a gestão camponesa busca construir um afastamento estra- tégico com relação aos mercados a fim de assegurar uma reprodução relativamente autônoma e historicamente garantida.

Os diferentes padrões ou lógicas de gestão orientadas para o afastamento estratégico atuam sobre duas relações centrais na re- gulação dos fluxos metabólicos do agroecossistema (Figura 6). A primeira corresponde ao balanço entre os recursos mobilizados para o processo de trabalho pela via dos mercados e os recursos reprodu- zidos pelo próprio processo de trabalho (relação a). Os primeiros são introduzidos no agroecossistema como mercadorias e os últimos são regenerados localmente, sem a intermediação dos mercados. A se- gunda relação reflete o balanço econômico-financeiro entre os pro- dutos vendidos e os recursos comprados (relação b). Quanto mais próximo de 1 for esse balanço, mais opressiva será a relação entre os agentes dos mercados e o NSGA.

As estratégias de gestão camponesa combinam práticas que assegu- ram aos NSGA maiores níveis de controle sobre o conjunto dos fluxos econômico-ecológicos do agroecossistema. Essas práticas incidem em todas as etapas do metabolismo (da apropriação à excreção) e articu- lam-se entre si de forma coerente no sentido de construir, aprimorar e regenerar continuamente uma base de recursos autocontrolada.8

8 As estratégias para constituição, ampliação e renovação da base de recursos autocontrolada estão apresentadas no Quadro 6, página

Figura 6: Os fluxos metabólicos básicos no agroecossistema (PLOEG, 2013b)

A base de recursos autocontrolada é composta por elementos das esferas natural e social. Da esfera natural, o NSGA procura ampliar quantitativamente e aprimorar qualitativamente a gestão sobre bens ecológicos acionados no processo de trabalho (terra, água e recursos da biodiversidade).9 Da esfera social, procura assegurar o controle, aprimorar e reproduzir dispositivos de ação coletiva que permitem ampliar a força de trabalho em termos quantitativos e qualitativos.

A coordenação entre as esferas natural e social em um padrão metabólico ancorado na gestão de uma base de recursos autocon- trolada fundamenta-se em estratégias técnicas e de interação social

9 Importa frisar que outros bens naturais, como a radiação solar e o ar, são igualmente mobilizados para o processo de

trabalho agrícola. No entanto, em contraste com a terra, a água e os recursos da biodiversidade esses bens ainda não são passíveis de controle institucional por meio de processos de mercantilização da natureza.

Processo de Trabalho

(conversão de produtos em recursos)

Recursos Reproduzidos Recursos Regenerados

Produtos vendidos Mobilização de

recursos nos mercados

Circuitos não mercantilizados Circuitos mercantilizados

relação b

orientadas simultaneamente para a valorização e contínua amplia- ção do capital ecológico e do capital social.10 Essas estratégias requerem grande investimento em trabalho reprodutivo, um trabalho qualifi- cado por excelência, pois é orientado a concatenar de forma precisa múltiplas tarefas operacionais no tempo e no espaço.

Nas estratégias de gestão técnico-econômica mais centradas em trocas mercantis, o capital financeiro assume um papel central na conformação dos fluxos econômico-ecológicos. Para viabilizar es- sas estratégias, a produção é predominantemente orientada a gerar produtos com valor de troca que são convertidos por dinheiro nos mercados. Nessas condições, o trabalho reprodutivo perde relevân- cia, uma vez que muitas das tarefas operacionais do agroecossistema são externalizadas. Esse processo de externalização induz à simpli- ficação operacional do processo de trabalho.

Analiticamente falando, essa externalização se processa por meio da substituição do capital ecológico e do capital social – que inte- gram a base de recursos autocontrolada – pelo capital financeiro. Essa substituição é uma das expressões mais relevantes da redução do grau de campesinidade do agroecossistema.

No metabolismo do agroecossistema, a função do capital finan- ceiro é mobilizar recursos materiais e sociais escassos ou ausen- tes na base de recursos autocontrolada pelos NSGA. Essa função é exercida no espaço e no tempo. No espaço, o capital financeiro amplia os limites físicos e sociais nos quais o agroecossistema es- tabelece suas trocas econômico-ecológicas, favorecendo assim uma

10 O sentido do termo capital se alargou progressivamente nas ciências sociais com o objetivo de explicar diferenciais entre

regiões que, em tese, tinham a mesma dotação de capital quando mensurado de forma convencional. Com essa expansão conceitual, o capital passou a assumir várias formas: humano, social, econômico, cultural, simbólico e natural (BOURDIEU, 1985 apud VENTURA et al., 2008). Essa extensão de significado é aplicada também à análise microeconômica realizada no âmbito dos agroecossistemas. Nesse sentido, capital não se limita ao significado clássico do pensamento marxista. O capital em um agroecossistema é composto por estoques de recursos materiais e imateriais mobilizados pelo processo de trabalho. Terra, equipamentos, infraestruturas, animais, conhecimentos e habilidades específicas, redes de relação social e outros recursos formam e conformam o patrimônio material e imaterial do NSGA, ou seja, a sua base de recursos autocontrolada.

maior integração do NSGA no conjunto da sociedade. No tempo, ele proporciona a estabilização do acesso a recursos que se tornam

indisponíveis aos NSGA durante determinados períodos.11 Nesse

sentido, o dinheiro atua como importante solvente do metabolismo dos agroecossistemas, na medida em que permite a ampliação, a di- versificação e a estabilização dos fluxos econômico-ecológicos que acionam e são acionados pelo processo de trabalho.

Processos de trabalho agrícola organizados pela lógica empresarial – ou de menor campesinidade – moldam metabolismos cujos fluxos eco- nômico-ecológicos são orientados fundamentalmente à reprodução do capital financeiro. Dada essa prevalência, o capital ecológico e o capital social tornam-se obsoletos ou, no mínimo, secundários na reprodução do processo de trabalho.12

Em síntese, independentemente do estilo de gestão adotado, o pro- cesso de trabalho na agricultura é acionado e aciona fluxos de recursos ecológicos, sociais e financeiros. Esses recursos são mobilizados nos limites internos ao agroecossistema, em que o NSGA tem maior au- tonomia decisória, e nos suprassistemas, nos quais o NSGA estabelece trocas socialmente reguladas por meio de instituições. Estilos de ges- tão contrastantes geram distintos padrões de organização do processo de trabalho (modos de produção) a partir dos quais esses recursos são combinados. Esses padrões (ou perfis metabólicos) podem ser analisa- das como redes sociotécnicas, na medida em que são simultaneamente reguladas por normas de integração social e por tecnologias.13

11 Como o processo de trabalho na agricultura é fortemente condicionado pelos ciclos astrológicos, que definem as estações

climáticas, e por perturbações ambientais que se repetem de forma errática, o estabelecimento de fluxos econômico-ecoló- gicos a distância torna-se uma importante estratégia para estabilizar o acesso a recursos necessários à reprodução.

12 Deixando de ser acionados e reproduzidos pelo processo de trabalho, o capital ecológico e o capital social tendem a ser

destruídos. Essa é a razão pela qual a degradação ambiental e a dissolução de culturas rurais tradicionais costumam ocorrer em paralelo com a crescente financeirização na agricultura.

13 As redes sociotécnicas compreendem elementos sociais, elementos materiais (incluindo da natureza viva) e, sobretudo,