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Estratégias técnicas de gestão do agroecossistema

Os processos de apropriação, transformação, circulação e excreção de bens ecológicos no agroecossistema são diretamente condiciona- dos pelas estratégias técnicas adotadas no processo de trabalho. Essas estratégias materializam-se em um conjunto de práticas de manejo (ou sistema técnico) e podem variar no tempo e no espaço em função de decisões dos NSGA em resposta a mudanças (positivas e/ou negativas) no contexto em que o agroecossistema opera.

Dois enfoques técnicos contrastantes correspondentes a lógicas dis- tintas de apropriação dos bens ecológicos combinam-se na definição das estratégias técnicas adotadas: 1) convivência com os ecossistemas

(ou coprodução); 2) redução de limitações ambientais.14

No primeiro caso – a convivência com os agroecossistemas – o enfoque está orientado para valorizar o capital ecológico por meio da dinamização de processos ecológicos locais para que eles intera- jam positivamente com os processos produtivos do agroecossistema. Dada a natureza sistêmica do enfoque da convivência, as práticas de manejo técnico exercem múltiplas funções na regulação do metabo- lismo socioecológico, contribuindo para fechar ciclos ecológicos na escala da paisagem. Por essa razão, os sistemas técnicos desenvolvi- dos segundo esse enfoque articulam organicamente as funções de produção econômica com as de reprodução ecológica.

14 O contraste entre as práticas de convivência e as práticas de redução foi apresentado a um de nós (PP) pelo professor

Mauro Resende, nas aulas de Ecologia Agrícola, disciplina optativa do curso de Agronomia na Universidade Federal de Viçosa realizado na década de 1980. Em certo sentido, a noção de convivência (viver com) coincide com a de coprodução (produzir com) proposta pelo biólogo mexicano Victor Toledo. Sendo a agricultura camponesa entendida como um modo de vida e um modo de produção, as duas noções podem ser assimiladas como equivalentes, sendo que cada uma delas realça uma das facetas indissociáveis que distingue o modus operandi camponês com relação à lógica capitalista de orga- nizar a produção e o modo de vida nas sociedades. A perspectiva da redução das limitações ambientais pode ser assimilada a uma ruptura com as práticas de convivência e de coprodução. Nesse caso, a natureza é compreendida como uma fonte inesgotável de recursos a serem apropriados para o processo econômico e não como um organismo vivo, com metabo- lismo próprio. Por essa razão, as práticas de redução geram o fenômeno que os economistas ecológicos convencionaram denominar de ruptura metabólica.

Já o enfoque da redução de limitações ambientais está orien- tado para restringir o efeito de fatores ecológicos pontuais que limitam o desempenho produtivo do agroecossistema por meio de práticas de manejo dependentes da importação de recursos externos (fertilizantes, agrotóxicos, irrigação intensiva, etc.). Com isso, o capital ecológico torna-se obsoleto, tendendo a ser degradado com o tempo. Trata-se, portanto, de um enfoque téc- nico reducionista, cujas práticas exercem funções específicas na regulação de um metabolismo caracterizado pelos ciclos ecoló- gicos abertos, ou seja, por fluxos lineares de matéria e energia no agroecossistema.

Nas situações reais, os sistemas técnicos distinguem-se entre si por exercitarem diferentes combinações entre práticas de convi- vência e práticas de redução. Por essa razão, geralmente os agroe- cossistemas são moldados por estratégias híbridas que combinam em diferentes proporções os dois enfoques de manejo.

Tomando como base os conceitos relacionados ao processo de trabalho agrícola, as estratégias técnicas são descritas e analisadas, a seguir, em suas expressões mais contrastantes.

1) Estratégia de convivência com o ecossistema

As estratégias de convivência são orientadas à criação, ampliação e contínua renovação da base de recursos autocontrolada, a partir da qual são estabelecidos fluxos de coprodução entre o mundo social e o mundo natural. Ao se apropriarem de recursos do capital ecológico que compõem a base de recursos autocontrolada, os NSGA geram perfis metabólicos baseados em uma contínua circularidade entre a produção econômica e a reprodução ecológica do agroecossistema. Por meio dessa circularidade, a energia e a matéria mobilizadas do capital ecológico transitam internamente no agroecossistema através de fluxos econômico-ecológicos coordenados e, até certo ponto, con- trolados pelo processo de trabalho.

O capital ecológico é primariamente formado pela dotação de bens naturais presente nos limites do agroecossistema.15 Na agricul- tura familiar, esse capital primitivo é constituído essencialmente por meio de processos hereditários e pode ser ampliado pelo matrimô- nio ou pela aquisição de terras. Políticas de reforma agrária também figuram como importantes mecanismos de redistribuição do capital ecológico. Nos territórios de povos indígenas e comunidades tradi- cionais, regulados por direitos consuetudinários, o capital ecológico é tipicamente gerido na qualidade de bens comuns.16

Analiticamente falando, as estratégias de convivência buscam mobilizar os recursos abióticos que configuram o trio ambiental básico (nutrientes, água e radiação solar) para convertê-los em recursos bióticos (biomassa). Nessa conversão, os recursos abióticos são combinados entre si pelo processo de fotossíntese para a produ- ção de biomassa de plantas, os organismos produtores nos ecossiste- mas. A biomassa vegetal pode gerar valores de uso e de troca – sendo consumida ou vendida pelo NSGA – ou circular internamente no agroecossistema como insumos de subsistemas de produção animal (organismos consumidores) ou como insumos para a regeneração da biota do solo (organismos consumidores e decompositores). De forma equivalente, a biomassa animal produzida pode gerar valores de uso e valores de troca ou circular no agroecossistema, articulando os subsistemas dos pontos de vista econômico e ecológico.

O manejo da biodiversidade figura como elemento-chave nas es- tratégias técnicas de convivência. Além de produzir biomassa a partir da mobilização de recursos abióticos em diferentes nichos ecológicos do ecossistema, a biodiversidade (planejada ou associada) atua na re-

15 O acesso seguro à terra e ao território constitui o pilar central para a reprodução dos meios e modos de vida camponeses.

Daí a centralidade atribuída a esses recursos nas lutas camponesas no decorrer da história.

16 Bens comuns são recursos cuja apropriação é compartilhada pelos membros de uma determinada comunidade de

gulação de processos ecológicos na escala da paisagem agrícola (AL- TIERI, 2002). Dessa forma, o processo de trabalho e os serviços ecológicos da biodiversidade canalizam matéria e energia incorpo- radas na biomassa entre os diferentes subsistemas e organismos do agroecossistema, conformando uma densa rede conectiva responsá- vel pela contínua renovação da fertilidade sistêmica.17

O processo de trabalho agrícola orientado pelo princípio da con- vivência com os ecossistemas corresponde tipicamente ao modo cam- ponês de produção. O trabalho com funções produtivas e o trabalho com funções reprodutivas articulam-se de forma orgânica, atendendo simultaneamente a necessidades de consumo do NSGA e renovando o capital ecológico que será acionado nos ciclos produtivos subsequentes. O trabalho reprodutivo dedicado à renovação do capital ecológico consiste essencialmente à implantação e à manutenção da infraestru- tura ecológica do agroecossistema. Essa infraestrutura é determinante na regulação do metabolismo do agroecossistema pois exerce função de mediar os fluxos de água, de nutrientes e de radiação no agroe- cossistema. Por essa razão, os elementos da infraestrutura ecológica são denominados mediadores de fertilidade. Desse ponto de vista, os mediadores de fertilidade contribuem para aumentar a densidade co- nectiva entre os subsistemas.

A infraestrutura ecológica é composta por elementos naturais (solo, adubos verdes e plantas de cobertura, cobertura morta, cercas vivas, árvores multifuncionais, capineiras etc.) e por elementos artificiais in- tegrantes do agroecossistema. Estes últimos correspondem aos instru- mentos de trabalho, ou seja, às infraestruturas e equipamentos que direta ou indiretamente influenciam os fluxos de água, nutrientes e radiação no agroecossistema. Esses mediadores de fertilidade correspondem às

17 Um princípio básico das estratégias de reprodução baseadas na convivência é a manutenção de analogias estruturais e

funcionais entre os agroecossistemas e os ecossistemas naturais (GLIESSMAN, 2000). Estratégias técnicas que asseguram a manutenção nos agroecossistemas de processos ecológicos existentes nos ecossistemas locais favorecem a contínua regeneração do capital ecológico (da fertilidade sistêmica).

estruturas utilizadas para captar, armazenar, transportar e processar os insumos utilizados no processo produtivo. São exemplos de mediadores de captação e/ou armazenamento: reservatórios de água, esterqueiras, silos, placas solares, bancos de semente etc. São mediadores de transporte: animal de tração, carroça, trator, sistema de irrigação, etc. São mediado- res de processamento: ensilagem, composteira, biodigestor (Figura 7).

2) Estratégia de redução das limitações ecológicas

As estratégias de redução das limitações ecológicas não se baseiam na coprodução (reciprocidade ecológica). A dotação de recursos na- turais do agroecossistema não é concebida como um capital ecológico a ser continuamente regenerado e aprimorado pelo processo de tra- balho. É assimilada como uma reserva de recursos a serem extraídos e/ou como um suporte físico sobre o qual as atividades produtivas são realizadas. Contrastando com a perspectiva de convivência com os ecossistemas com vistas a valorizar os potenciais ecológicos locais, as estratégias de redução são orientadas pelo objetivo de compensar fatores ecológicos críticos que limitam a produção econômica.

Agroecossistemas manejados segundo essas estratégias dependem da contínua (e crescente) importação de matéria e energia sob a forma de insumos e trabalho mecânico. Seus subsistemas (quando existe mais de um) são ecologicamente desarticulados entre si. Essa grande depen- dência de recursos mobilizados nos suprassistemas e a baixa densidade conectiva entre os subsistemas conformam perfis metabólicos molda- dos por fluxos lineares de conversão de insumos em produtos.

As estratégias técnicas adotadas para a redução de fatores limitan- tes são coerentes com a lógica de gestão empresarial. Nessas condi- ções, o trabalho com funções reprodutivas é largamente externaliza- do, fazendo com que o atendimento das necessidades de consumo do NSGA bem como a reprodução técnica do agroecossistema dependa fundamentalmente de fluxos econômico-ecológicos regulados por trocas mercantis.

Integração social do NSGA ao entorno político-institucional