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Integração social do NSGA ao entorno político-institucional Os fluxos econômico-ecológicos estabelecidos entre os agroecos-

TRANSFORMAÇÃO APR

OPRIA ÇÃ O APROPRIAÇÃO APROPRIAÇÃO APROPRIAÇÃO CONSUMO CONSUMO DECOMPOSIÇÃO FOTOSSÍNTESE

Esterqueira Cisterna calçadão

Placa solar

Radiação Nutrientes Água

Cisterna

Irrigação

Biomassa Vegetal BiomassaAnimal

A reciprocidade é o mecanismo pelo qual os fluxos econômicos são estabelecidos entre indivíduos e/ou grupos simétricos. Esses flu- xos são regulados por valores socioculturais compartilhados entre os atores integrados às redes de reciprocidade. Trata-se, portanto, de um sistema econômico enraizado em redes de proximidade20 que estabe- lecem seus próprios mecanismos de regulação dos fluxos de troca.

A redistribuição supõe que fluxos econômicos partam dos atores integrados ao sistema econômico em direção a um núcleo central para em seguida retornarem aos atores segundo regras colocadas em prática pelo núcleo central. O mecanismo de redistribuição supõe a presença de um sistema político central estabelecido. O nível de participação dos atores sociais na definição das regras de redistri- buição varia segundo o grau de democracia no sistema político. Por essa razão, as relações de poder estabelecidas na coletividade exer- cem grande influência nos fluxos de redistribuição da riqueza social. Nas sociedades modernas, os Estados Nacionais são as instituições políticas reguladoras do mecanismo de redistribuição. O sistema tri- butário é o principal organizador dos fluxos de centralização da par- cela da riqueza social que é posteriormente canalizada pelos fluxos de redistribuição por intermédio das políticas públicas.

A troca mercantil é o mecanismo pelo qual os fluxos econômi- cos são livremente estabelecidos entre os atores sociais segundo seus próprios interesses. O funcionamento do sistema econômico baseado nos fundamentos do capitalismo depende da presença de uma ins- tituição reguladora das trocas com base no emprego de medidas de equivalência de valor universalmente reconhecidas e aceitas pelos atores sociais integrados a esse sistema. Essa instituição é o mercado e essa medida de equivalência é a moeda. Nos fluxos econômicos

entre o plantio e a colheita ou a especialização do trabalho são superados por movimentos das colheitas, das manufaturas ou do trabalho, de modo a tornar mais eficaz a sua distribuição (POLANYI, 2012, p. 83).

estabelecidos por meio de trocas mercantis, o mercado atua como um mecanismo institucional formador dos preços, ou seja, definidor dos valores monetários equivalentes aos bens e serviços que circulam na esfera social. Uma vez estabelecidos os preços, os fluxos de troca econômica ocorrem de forma aleatória em função dos acordos mer- cantis estabelecidos entre os atores integrados ao sistema.

O aspecto central na análise de Polanyi refere-se ao fato de que o funcionamento combinado dessas três formas de integração social depende da presença de estruturas institucionais bem estabelecidas. Desse ponto de vista, a transformação histórica dos sistemas econô- mico-ecológicos (como os agroecossistemas) deve ser compreendida também como a evolução de arranjos político-institucionais histori- camente estabelecidos.21

Como unidade econômica singular, o agroecossistema deve ser descrito e analisado a partir de suas formas híbridas de integração social, ou seja, a partir dos diferentes vínculos estabelecidos entre os NSGA com o ambiente político-institucional do entorno. Como veremos na segunda parte deste texto, os modelos propostos para a representação dos fluxos econômico-ecológicos dos agroecossiste- mas, representados por diagramas de fluxos, identificam os vínculos estabelecidos entre o NSGA com três esferas de troca econômica que correspondem aos três processos de integração descritos por Polanyi: a comunidade, concebida como a esfera social na qual são

21 Desse ponto de vista, Polanyi indica que é pertinente classificar as economias de acordo com as formas dominantes

de integração social. Em sua obra seminal A grande transformação: as origens de nossa época, ele interpreta a ascensão histórica do capitalismo como sistema econômico dominante a partir do momento em que terra e trabalho passaram a ser concebidos como mercadorias, ou seja, como bens e serviços passíveis de compra e venda nos mercados por intermédio de relações sociais reguladas por valores monetários. Desde então, a importância relativa dos mercados na organização da vida social depende das políticas econômicas mais ou menos liberais adotadas pelos Estados Nacionais. Na fase mais recente do capitalismo, a da globalização neoliberal, os Estados Nacionais perderam parte importante de sua capacidade de regular os sistemas econômicos, que passam a ser comandados cada vez mais por fluxos mercantis. Segundo a doutrina liberal, os mecanismos de mercado são os mais eficientes para a alocação dos recursos econômicos em benefício do desen- volvimento das sociedades. Nesse caso, o Estado e suas políticas de redistribuição devem limitar-se a corrigir as chamadas

realizadas as trocas por reciprocidade; o Estado, que representa a principal instituição reguladora dos fluxos de redistribuição; o mer- cado, a instituição que regula as trocas mercantis.

Esses três mecanismos de integração combinam-se de diferentes formas nos distintos agroecossistemas, condicionando padrões es- pecíficos de organização dos fluxos de bens e serviços. Como esses padrões de organização são fortemente determinados pelos estilos de gestão econômico-ecológica adotados pelos NSGA, os modelos esquemáticos representados pelos diagramas de fluxo proporcionam uma visão aproximativa das relações mais ou menos autônomas mantidas pelos NSGA com as três esferas de trocas econômicas, expressando distintos graus de campesinidade.

Os modelos que representam estilos mais empresariais (de menor campesinidade) mostram maior densidade de fluxos oriundos dos mer- cados e em direção aos mercados, indicando a entrada e a saída de merca- dorias do agroecossistema. Os fluxos de saída representam a conversão de produtos e serviços em renda monetária e os de entrada expressam a de- manda de insumos e serviços comprados em distintos circuitos mercantis. Nesse tipo de situação, a reprodução socioecológica do agroecossistema é muito dependente da circulação de capital financeiro, evidenciando a lógica empresarial que domina o processo de trabalho do NSGA.

Já os modelos representativos de estilos de maior campesinidade mostram uma maior densidade e diversidade de fluxos, sejam eles re- gulados por mecanismos de reciprocidade (social ou ecológica) ou de troca mercantil. Nessas situações, os fluxos com a comunidade (de en- trada e saída) expressam trocas econômicas realizadas sem a interme- diação de dinheiro como medida de equivalência de valor (trocas não monetarizadas). Nesse sentido, a reciprocidade pode ser compreendida como uma prática social que permite um relativo afastamento estratégico em relação aos mercados (PLOEG, 2008). Embora os vínculos es- truturais com os mercados permaneçam, eles tendem a se concentrar (em intensidade e diversidade) nos fluxos de saída do agroecossistema,

já que o processo de trabalho está ancorado na mobilização de bens e serviços provenientes de uma base de recursos autocontrolada (repre- sentada pelos fluxos com a comunidade e pelos fluxos que expressam a circulação interna no agroecossistema).

Os fluxos econômico-ecológicos baseados na reciprocidade social são regulados por arranjos institucionais criados, mantidos e desenvolvidos pela ação coletiva em um dado contexto territorial. Como mecanismos ativamente construídos voltados para a regulação do comportamento econômico (individual e coletivo), essas instituições podem ser com- preendidas como um elemento-chave do capital social, ou seja, da base de recursos autocontrolada.22

As instituições que regulam as trocas por reciprocidade na comuni- dade são responsáveis por criar, mobilizar e reproduzir bens comuns23 (da esfera natural e da esfera social) para o processo de trabalho nos agroe- cossistemas. Exemplos dessas instituições são abundantes no mundo rural. Dentre eles, citamos: recursos genéticos livremente trocados entre os NSGA; bancos de sementes comunitários regularizam estoques coleti- vos de sementes e contribuem para a conservação da agrobiodiversidade; áreas de uso coletivo são utilizadas segundo regras socialmente definidas em âmbito local; mutirões, ajuda mútua, sistemas de troca-dia e variados mecanismos de cooperação mobilizam força de trabalho em momentos críticos de demanda de mão de obra no agroecossistema ou na realização de tarefas em benefício coletivo; máquinas e animais de tração são em- prestados entre vizinhos e parentes; equipamentos coletivos são geridos por associações; fundos rotativos solidários mobilizam a poupança cole-

22 Os arranjos institucionais desenvolvidos a partir da ação coletiva em uma determinada região regulam os fluxos econô-

mico-ecológicos em função de objetivos estratégicos compartilhados pelos atores locais. Compreendidos como estruturas e mecanismos de cooperação, esses arranjos são objetivados por meio de normas, tradições, regulamentos que condicionam o comportamento econômico individual e coletivo segundo formações culturais específicas.

23 Ao funcionar como mecanismos conectores na esfera social por meio de relações de reciprocidade, essas instituições de

tiva para a realização de investimentos nos estabelecimentos familiares ou nas comunidades.

As instituições reguladoras da reciprocidade ancoram-se na confian- ça mútua e são baseadas em formações culturais específicas que pos- sibilitam a existência de fluxos econômico-ecológicos geridos por fora da esfera dos mercados. No entanto, a reciprocidade também pode ser acionada para organizar relações mercantis, favorecendo o escoamento da produção por meio de canais comerciais ativamente desenvolvidos e mantidos com importante contribuição de trabalho não remunerado e pela existência de uma rede sociotécnica estruturada com base na con- fiança mútua.

Desse ponto de vista, os mercados socialmente regulados pelos atores locais podem ser compreendidos como instituições híbridas, uma vez que articulam a reciprocidade com as trocas mercantis para viabilizar o escoamento da produção até o consumo (SABOURIN, 2011). Ao contrário do mercado convencional/capitalista, estruturado por conven- ções abstratas e relações impessoais moldadas por regras de poder hege- mônicas, os mercados socialmente regulados – também denominados mercados aninhados (HEBINCK et al., 2015) – ou mercados imersos (CASSOL et al., 2016) – são estruturados a partir da interação direta entre os agentes econômicos envolvidos.

Como alertam Cassol et al. (2016), essa distinção conceitual não deve ocultar o fato de que o mercado convencional/capitalista é também uma construção socialmente regulada. O aspecto ressaltado nessa distinção refere-se ao fato de que, como instituições também reguladas por mecanismos de reciprocidade, os mercados imersos asseguram maior autonomia e capacidade de controle sobre as transações mercantis por parte dos atores sociais envolvidos. Além disso, o conceito ressalta o fato de as instituições, normas e atores coleti- vos que estruturam esses mercados emergirem e operarem em um contexto de hegemonia dos mercados convencionais, configuran- do uma situação de conflito latente ou expresso de interesses.

Assim, ao mesmo tempo em que proporcionam a manutenção e/ ou ampliação de uma autonomia relativa, os mercados social- mente regulados podem ser pressionados, incorporados ou mesmo inviabilizados pelos mercados convencionais. Nesse sentido, con- figuram-se como uma expressão de luta em defesa de autonomia.

Para representar os diferentes mecanismos de vinculação dos NSGA aos mercados, a metodologia proposta para a modelização do agroecos- sistema estabelece uma subdivisão das trocas mercantis em duas catego- rias: mercados socialmente regulados (no território) e mercado conven- cional (fora do território).

Com essa representação, o modelo busca explicitar essencial- mente as distintas relações de poder envolvidas nas transações mercantis. Em que pese o fato de mercados imersos poderem ser construídos a partir da interação entre atores situados fisicamen- te à distância, a maior parte das transações econômicas realizadas nesses mercados vinculam o NSGA com outros atores presentes no território (daí a denominação proposta por este método). Por outro lado, as regras que regulam os mercados convencionais são invariavelmente definidas e controladas por atores de fora dos territórios. Por essa razão, mesmo que as transações econômicas sejam efetuadas por intermédio de estabelecimentos comerciais situados no território, os mercados convencionais são assumidos e representados como mercados fora no território.

As transações econômicas realizadas nos mercados socialmen- te regulados são coordenadas por estratégias de governança híbri- da (que combinam reciprocidade com trocas mercantis). Portanto, acionam o capital social (ou capacidade de ação coletiva) para que transações econômicas específicas sejam realizadas entre NSGA específicos com consumidores específicos, gerando vantagens econômicas24 e outros valores em benefício dos dois grupos.

Além de regular o intercâmbio de bens materiais e serviços, a reciprocidade é acionada nos processos de construção de co- nhecimentos vinculados às dinâmicas de inovação técnica e sócio-organizativa dos agroecossistemas. O acionamento da re- ciprocidade nesse campo da gestão do conhecimento é um ele- mento-chave nas estratégias econômico-ecológicas de maior campesinidade, nas quais conhecimentos e saberes locais são concebidos e intercambiados como bens comuns (essa ideia será desenvolvida na próxima seção).

Os fluxos de redistribuição coordenados pelo Estado incidem de forma diferencial nos agroecossistemas em função de seus estilos de gestão. Políticas concebidas segundo o paradigma da modernização agrícola guardam maior coerência com as estraté- gias empresariais já que os recursos públicos por elas canalizados favorecem a externalização das atividades de reprodução socioe- cológica dos agroecossistemas. O crédito rural subsidiado para a compra de insumos produtivos e os serviços de Ater baseados na perspectiva difusionista são clássicos instrumentos de políticas indutoras de processos de externalização e de mercantilização do processo de trabalho agrícola.

Já os programas de reforma agrária e de demarcação e defe- sa de territórios tradicionais, os instrumentos públicos de apoio à construção de mercados locais e de financiamento de infraestrutu- ras produtivas, as iniciativas de educação contextualizada e outras políticas que contribuem para a ampliação da base de recursos au- tocontrolada proporcionam melhores condições para o desenvolvi- mento de agroecossistemas segundo a lógica de gestão camponesa.

reduzidos para consumidores e para produtores. Sendo mercados fortemente ancorados na confiança interpessoal e na fidelidade entre produtores e consumidores, os fluxos comerciais são mais estáveis. Dessa forma, os riscos dos produtores não venderem suas produções são menores. Além disso, não necessitam investir recursos na promoção comercial de seus produtos. Já os consumidores não precisam dedicar tempo em busca de produtos específicos e/ou com qualidades especí- ficas. Além disso, os riscos de frustração com relação a produtos de má qualidade são minimizados.

Como as políticas para o desenvolvimento rural podem ser mais ou menos alinhadas com as perspectivas estratégicas de diferentes segmentos sociais, a definição da orientação dos re- cursos redistribuídos pelo Estado nessa área costuma ensejar acirradas disputas. Seja pelo domínio do paradigma da moder- nização sobre as instituições públicas e parte importante das organizações sociais, seja pela hegemonia política dos grupos do agronegócio nos processos decisórios, a maior parte dos recursos públicos redistribuídos permanece sendo canalizada para promover e sustentar a reprodução de estilos empresariais de gestão dos agroecossistemas.

Ao orientar os fluxos de redistribuição no sentido do apro- fundamento das relações de mercantilização nos agroecossiste- mas, as políticas de modernização agrícola destroem ou tornam obsoletos os arranjos institucionais que regulam os mecanismos de reciprocidade. Dessa forma, os recursos naturais e sociais tra- dicionalmente acionados na qualidade de bens comuns são aos poucos imobilizados e/ou destruídos.25

No entanto, as políticas públicas não condicionam unilinear- mente o processo de trabalho agrícola. As trajetórias de desenvol- vimento dos agroecossistemas resultam da permanente confron- tação entre um conjunto amplo de variáveis naturais e sociais, internas ou externas, com os projetos estratégicos dos NSGA.

Essa confrontação influencia as margens de manobra26 para que

25 A adoção da prática do trabalho remunerado em lugar do acionamento das formas tradicionais de ajuda mútua configura um

típico exemplo de imobilização de recursos sociais localmente disponíveis. Nesse caso, a força de trabalho disponível em uma coletividade não é plenamente valorizada porque sua mobilização para o processo de trabalho depende da disponibilidade de capital financeiro. Nesse sentido, a mercantilização do trabalho destrói o capital social. A imobilização de bens comuns ocorre também com os elementos da natureza. A substituição de sementes crioulas livremente intercambiadas entre famílias e comu- nidades por sementes comerciais é um exemplo corriqueiro da mercantilização de elementos da natureza.

26 A noção de margem de manobra é essencial para a compreensão das dinâmicas evolutivas dos agroecossistemas. Ela se

refere a um reservatório de possibilidades comportamentais em um dado contexto histórico e geográfico (LONG; PLOEG, 2011). Esse reservatório pode ser ampliado ou reduzido em função da maior ou menor base de recursos autocontrolada

os NSGA definam o curso da ação segundo suas perspectivas de vida e objetivos econômicos.

Dentre essas variáveis, as políticas públicas – isto é, os fluxos de redistribuição – certamente desempenham um papel relevan- te, mas não exclusivo. Isso significa que os NSGA não abrem mão facilmente de suas estratégias de reprodução em razão das prescrições técnicas e econômicas que lhes são apresentadas como mais racionais ou superiores pelos agentes do Estado ou dos mercados.

pelo NSGA. Um NSGA que empregue um estilo empresarial tende a limitar suas margens de manobra com a sua crescente dependência estrutural em relação ao capital financeiro.

TRAJETÓRIAS DE DESENVOLVIMENTO