1.3 RESISTÊNCIA
1.3.2 A reinvenção de um passado sagrado na [literatura] afro-brasileira
No capítulo intitulado “O mito de um passado africano” de seu livro sobre a África
na filosofia da cultura, Anthony Appiah discute a relação de escritores afrodescendentes
anglófonos com a África e sua busca por uma identidade africana. Nos Estados Unidos,
tais escritores respondem à questão da identidade africana por meio do conceito
intermediário de raça, conceito este que adquiriram de uma matriz cultural europeia
romântica, que foi central para os nacionalismos europeu e estadunidense dos últimos
dois séculos. Se quisermos nos voltar para uma reformulação atual do que significa “ser
africano”, devemos procurá-la na perspectiva não de teóricos, mas dos ficcionistas mais
vigorosos, que representam verdadeiras forças literárias, como Chinua Achebe. Para
Achebe, escritor nigeriano, de origem banto, não existe uma identidade final que seja
africana. Os escritores podem ser achantis, iorubas, bantos, kikuyus, mas, que significa
isso? São ganeses, nigerianos ou quenianos, mas será que isso quer dizer alguma coisa?
São negros, e qual é o valor da pessoa negra, pergunta-se Appiah, que conclui: não
existe um reservatório comum do saber cultural. “A África, menos o norte saariano ainda
é um imenso continente, povoado por uma miríade de raças e culturas (1997, p 121). Não
existe, mesmo num nível de abstração bastante elevado, uma única visão de mundo
africana (1997, p.123). Tomando Chinua Achebe como exemplo, afirma que lhe cabe
divulgar aquilo que conhece: as tradições ancestrais de sua tribo banto, e sua própria
visão de mundo como escritor nigeriano, contemporâneo das reformulações de uma
Nigéria pós-colonial e que escreve sua ficção em língua inglesa.
No contexto da literatura de escritores negros no Brasil, a busca de raízes
africanas vem assumindo caráter diverso. Steven White
7, professor de Literatura
Hispano-Americana nos EUA , observa no ensaio, cujo título é o caput deste item, que
em anos recentes certos poetas afro-brasileiros como Estevão Maya-Maya, Oliveira
7 Steven F. White é Ph.D. pela University of Oregon. Editou antologias de poetas da Nicarágua, Chile e Brasil. Traduziu o roteiro de Cruz e Sousa / Poeta do Desterro, longa-metragem do cineasta Sylvio Back (PEREIRA, 2010, p. 748).
Silveira, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo e Lepê Correia “têm lutado contra
a corrente para publicar livros de poesia que buscam reinventar um passado sagrado por
meio de referências diretas a religiões brasileiras de origem africana fundadas nas
tradições iorubá e banto, a exemplo do Candomblé e da Umbanda” (WHITE, 2010, p.
396).
White procura evitar no ensaio a falácia de considerar tais laços históricos do
Brasil com a África simplesmente como exotismo, que é o ponto de vista das elites, que
descartam a importância intrínseca da recuperação das raízes, como forma de afirmação.
Para seu estudo White seleciona poemas que reinventam as divindades associadas a
diversos grupos religiosos do Brasil, cujos fundamentos são africanos, e que refletem o
intenso interesse atual em relação aos deuses africanos, pelo menos da parte dos
referidos poetas, cujas obras relacionamos a seguir.
Regresso triunfal de Cruz e Sousa e Os segredos de ‘seu’ Bita Dá-nó-em-pingo-d’água
de Estevão Maya-Maya (1982), Orixás (1995) de Oliveira Silveira em associação com o artista plástico Pedro Homero, o Livro de falas, de Edimilson de Almeida Pereira (1987) , A roda do mundo (1996) do mesmo autor, co-autoria de Ricardo Aleixo, e Caxinguelê ( 1993) de Lepê Correia. (WHITE, 2010, p. 398)
Os mitos cosmogônicos negros têm traços comuns com os de outros povos e
culturas: a existência de um ser único, Olorum, que cria todas as coisas; primeiramente
os orixás, que são encarregados de fazer todo o resto. “O homem e a mulher foram feitos
depois, feitos do jeito dos orixás” (PEREIRA, 2008, p. 5).
Em Livro de falas, Edimilson de Almeida Pereira reinventa mitos da cultura
tradicional afro-brasileira, mediante a justaposição de imagens criadas ´às imagens dos
mitos originais. Segundo Steven White “Pereira reinventa um passado sagrado com
grande amplitude de expressão em termos de pluralismo religioso afro-brasileiro” (2008,
p. 405)
No artigo “Invenção e liberdade na poesia brasileira contemporânea”, Edimilson
de Almeida Pereira destaca a visão de mundo que considera específica dos
afrodescendentes: o desejo de reverter a ideologia escravista que apagava todos os
traços da história e da cultura dos povos africanos. A evocação das origens, como no
poema “Vento” de Cuti remete a uma visão telúrica da África, que se pode interpretar
também como evocação à luta pela liberdade.
Vem da África
soprando a gente por todos os poros do mundo Vem de lá Vem do chão do vulcão na maré esse vento de fé Vem
Vem do calor uterino da terra ... estufa a vela negra...
Não há calmaria.
(CUTI, citado em PEREIRA, 2010, p. 361)
A criação poética de Edimilson de Almeida Pereira é exemplar das características
discutidas: apropriação e recriação da linguagem, reinvenção de mitos e perpetuação de
tradições. Os mitos são palavras que se juntam em falas, que os antigos negros iorubás
passavam oralmente de uma geração para outra e que chegaram até seus descendentes
brasileiros. Mas, como diz Reginaldo Prandi, na apresentação do Livro de falas de
Edimilson: “Nós brasileiros herdamos os mitos dos orixás de antigos africanos e os
guardamos para nós, desejosos de entender [...] os mistérios guardados em suas
palavras”, mas sem o conseguir.
Então vem o afiador de palavras e revela o mito em versos refeitos, que raspam a palavra antiga para ver o que há sob a casca, para mostrar o que está escondido. O poeta sabe fazer isso, é a sua profissão, é o afiador de palavras. No afiar das falas embotadas do mito, ele tira a brilhante lâmina do rosto humano do orixá que ainda corta o tempo. (PRANDI, citado em PEREIRA, 2008, p. 7)
Monique Augras PRINCÍPIO
Oxalá “é o grande deus da brancura ... Dele dependem todos os seres do céu e da aterra. Ele é a brancura do indeterminado, o deus de todos os começos e de todas as realizações. A vida e a morte abrigam-se debaixo de seu pálio.”
(In: PEREIRA, 2008, p. 46)
As árvores presenciam a criação do mundo. Sendo eu a respiração das aves, serei novamente água e árvore. Nascerei após o fogo, arderei antes de mim mesmo. Um raio espera em meus pensamentos, sei a morte e a vida razão porque silencio e canto. Sou a face que não possuo, renasço sem mesmo desaparecer.
(PEREIRA, 2008. p. 46)
O poema de Edimilson Pereira faz a releitura de um excerto da obra O duplo e a
metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô, da psicóloga da cultura,
Monique Augras, pesquisadora na área da cultura brasileira. O estilo do hipotexto afasta-
se da linguagem essencialmente técnica para descrever em termos poéticos o significado
de Oxalá para os nagô. A releitura feita pelo poeta, porém, vai mais a fundo, revela a
beleza das camadas ocultas imperceptíveis aos olhos do leitor, em linguagem que foge
ao significado lógico e ao sentido pragmático a que a cultura ocidental acostumou esse
leitor. Conceição Evaristo reforça essa visão:
A literatura negra brasileira, ao apresentar um discurso outro que pretende uma autoapresentação do negro ˗˗ discordante de um discurso de representação do negro produzido pela literatura dominante – vale-se da paródia como maneira de inverter, de subverter um discurso que, muitas vezes, ainda consagra o negro como res, coisa “ex- ótica” e que não cabe no campo de visão de um olhar viciado, limitado, que não compreende a alteridade, a não ser por um juízo de valor. (EVARISTO, 2010, p. 137)
Veremos na obra de Evaristo, que será examinada na sequência, um amálgama
dos traços relativos a identidade, memória e resistência desenvolvidos neste capítulo
inicial.
2 A OBRA DE EVARISTO: O PRESENTE COMO DESDOBRAMENTO DO PASSADO
O desejo de toda pessoa que chega a publicar um livro
é que seja lido, caso contrário não passará de matéria inerte, juntando pó nas estantes. É o leitor quem lhe concede status. quem se apropria do texto e cria outros textos a partir dele, quem, enfim, incorpora o texto em sua vivência.
Conceição Evaristo
Criar vivência a partir de sua própria escrevivência é o objetivo que Conceição
Evaristo atribui a sua obra, como declara em eventos acadêmicos nacionais e
internacionais, a entrevistadores em periódicos e revistas, e, mais recentemente, por
meios digitais.
O termo cunhado pela escritora para se referir ao conjunto de sua obra como
resultado de sua escrevivência, isto é, como reflexo do que viveu ou testemunhou, aplica-
se a outros campos do conhecimento, fundamentados na memória e no testemunho dos
que viveram os fatos. Esses testemunhos, a seu turno, podem transformar-se em
histórias, que se transmitem de geração para geração, e que constituem o substrato da
herança que aflora nos escritores negros de hoje.
Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência. (EVARISTO, 2016, p. 7)