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Poemas da recordação e outros movimentos (2008)

2.1 A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

2.1.3 Poemas da recordação e outros movimentos (2008)

Poemas da recordação e outros movimentos foi lançado pela editora Nandyala,

em 2008 e reeditado pela carioca Malê, em 2017.A nova edição traz vinte e um poemas

a mais e agrupa o conjunto por temática, que é introduzida por um trecho em prosa. O

primeiro desses trechos remete à capa do livro: recupera a cena da mãe lavando roupa

sob o sol e alude às recordações de infância da voz que narra “gotículas de água

aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento” (p. 9).

O segundo bloco de poemas é precedido por trecho voltado para a imagem da

mulher, para o feminino, tema intrínseco à obra poética e ficcional de Conceição. e que

permeia todo o livro. Nesse bloco, no entanto, o eu lírico grita com mais força “a sensação

de que cada mulher comporta em si a calma e o desespero” (p. 21). Incluem-se ali os

conhecidos poemas “Eu mulher” e “Vozes-mulheres”, ambos publicados pela primeira

vez no número 13 dos Cadernos Negros, em 1990.

Conceição Evaristo, a autora em carne e osso, partilha intimamente das

características físicas, a cor da pele, e socioculturais de seu grupo étnico, bem como da

história da diáspora involuntária de seus ancestrais escravizados. Assume, então,

diferentes máscaras como autor implícito. Transmuda-se na mãe que pede “que as balas

perdidas percam o nosso rumo e não façam do corpo nosso, os nossos filhos, o alvo”, e

que expressa o desejo primevo de “recolher para/ o seu útero-terra/ as sementes/ que o

vento espalhou/ pelas ruas (p. 16). No poema “Para a menina”, a voz do eu lírico observa

as “marcas-lembranças / de um chicote traiçoeiro” no corpo da menina, cuja veste “se

confunde / com o sangue que escorre /do corpo -solo de um povo” (p. 36). No poema

final do bloco “Na mulher, o tempo”, Evaristo expressa a função primordial da mulher

negra de preservar para gerações futuras as tradições e a sabedoria ancestral que as

mantêm vivas:

E só,

só ela a mulher,

alisou aas rugas dos dias e sapiente adivinhou:

não, o tempo não lhe fugiu entre os dedos, ele se guardou de uma mulher

a outra ... E só,

não mais só recolheu o só

da outra, da outra, da outra ... fazendo solidificar uma rede de infinitas jovens linhas cosidas por mãos ancestrais e rejubilou-se com o tempo guardado no templo

No terceiro bloco de poemas, o povo em procissão “carregado de fé, calmo” (p.

41) segue o andor do sagrado, ainda à espera do milagre, sempre adiado pelo santo.

Nas contas do “Meu rosário” o eu-lírico canta “Mamãe Oxum” e fala “padres-nossos e

ave-marias”, recorda as rezas da infância, tece esperanças, mas vê “rostos escondidos

por visíveis e invisíveis grades” (p. 43). O conjunto de 16 poemas retoma visões da favela:

das brincadeiras que acabam em dor: serra, serra / serra/ a dor; “de uma páscoa em que

a passagem / era da fome para a fome” (p. 48).O eco de vozes silenciadas “o silêncio

mordido, rebela e revela, nossos ais e são tantos os gritos”; torna-se paulatinamente mais

doloroso.

Aos poemas clássicos da autora, em obra já consolidada e reconhecida, juntam-

se outros, a exemplo de “A menina e a pipa-borboleta”, particularmente expressivo da

fragilidade, da submissão e da impotência do negro. Num grupo étnico já de si

inferiorizado, dentro do qual a mulher é alvo de violência, a menina negra ocupa o nível

mais baixo, o de um animal sem valor. O rompimento da “tênue linha / da pipa-borboleta

de [uma] menina” por “um barbante áspero/ másculo cerol, cruel” como metáfora de uma

criança negra estuprada atinge picos de dolorosa emoção:

E quando o papel, seda esgarçada, da menina, estilhaçou-se

entre as pedras da calçada, a menina rolou

entre a dor e o abandono E depois, sempre dilacerada, a menina expulsou de si uma boneca ensanguentada que afundou num banheiro público qualquer.

O poema “Na esperança, o homem”, de acordo com o título, é arauto de sinais

de que “a vida ressurge fértil, / úmida / alimentada pelo hálito do homem” [...] “que sonha

e faz,” “que faz e sonha”. Apesar de toda as secas, “o homem esperançoso há de vencer”.

O tom celebratório continua em “Dias de kizomba” exaltação do povo), escrito em

homenagem ao intelectual e artista negro Abdias Nascimento.

9

“Um homem como

Abdias, / estrela incandescente, / não morre.”

A sua luz

cor negra zagaia

Feriu a branca consciência De uma democracia racial Nula e vil.

Um homem como Abdias, estrela Nascimento, Zumbi eternizado, não morre. A sua luta Ziguezagueia D’África à diáspora

Espalhando sementes baobás Em cada uma/um de nós.

“Recordar é preciso”, o poema que abre o livro, traz à tona outra narrativa

histórica, uma outra memória: a memória dos quilombos, a memória de um protagonismo,

de uma resistência, ao invés de uma memória de impotência. E, dentro dessa perspectiva

literária, a poesia de Evaristo é uma espécie de oração, de um ritual transmuta(dor).

Conceição Evaristo havia escrito um conto, “Macabéa, Flor de Mulungu”, em que

dialogava com o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Nos textos de Poemas

9 Abdias Nascimento, considerado um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos humanos no Brasil e no mundo, foi oficialmente indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2010. Fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi um idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado (MNU) e atuou em movimentos nacionais e internacionais como a Frente Negra Brasileira, a Negritude e o Pan-Africanismo

da recordação, esse diálogo reaparece em “Carolina na hora da estrela”, “Clarice no

quarto de despejo”, dois dos poemas situados no quinto bloco, o penúltimo do livro. Neles,

a autora nos coloca diante de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector, revisitando

duas escritoras contemporâneas, mas tão diferentes em suas singularidades biográficas

e literárias. Uma perpassa a outra em cada poema a elas dedicados, como nos trechos:

“Carolina na hora da estrela” “Clarice no quarto de despejo” No meio da noite

Carolina corta a hora da estrela. Nos laços de sua família um nó -- a fome

[...]

E lá se vai Carolina com os olhos fundos

macabeando todas as dores do mundo. (p. 93).

No meio do dia

Clarice entreabre o quarto de despejo

[...]

E ajustando o seu par de luvas claríssimas

Clarice futuca um imaginário lixo E anseia ser Bitita inventando um diário

Páginas de jejum e de saciedade sobejam

A fome nem em pedaços alimenta a escrita clariceana”. (p. 94-95).