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Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)

2.1 A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

2.1.4 Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)

A coletânea Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) foi publicada em segunda

edição pela carioca Malê, em 2016, e compõe-se de 13 contos que narram histórias das

dores, dos anseios e dos temores de suas protagonistas negras. Acima de tudo, porém,

revelam a imensa capacidade das personagens de se retirarem do lugar do sofrimento e

inventarem modos de resistência. A intima fusão entre as personagens e a voz narrativa

acentua o desenvolvimento do processo criativo de Evaristo bem como do seu projeto

literário: a representação de sua escrevivência.

Eu queria escrever histórias de mulheres, mas não deixando mais minhas parentas sucumbirem à morte. Não as deixaria se degradarem na fome e no desamparo. Passariam por tudo, mas recuperariam a vida. Queria escrever sobre as dores mais profundas dessas mulheres. Queria falar de um sofrimento e de uma carência que não significassem somente a falta do pão, de água ou de teto. Queria escrever sobre mulheres vitoriosas, insubmissas ao destino ... (EVARISTO, citado em PEREIRA e OLIVA, 2019, p. 253)

Quando se considera que Insubmissas lágrimas de mulheres se baseia em

entrevistas reais de Conceição Evaristo com mulheres negras de todas as idades, torna-

se mais perceptível a sensibilidade da autora e a empatia com suas parentas, a quem

concede nos contos a vitória sobre o destino cruel que sempre lhes coube. A autora

confessa que gosta de ouvir e “Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E no

quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta” (2016, p. 7).

O modo de iniciar as treze narrativas deixa claro seu caráter de registro de

testemunhos: “Quando cheguei à casa de Aramides Florença, a minha igual estava

assentada em uma pequena cadeira de balanço” (p. 9). “Adelha Santana Limoeiro me

causou a sensação de que já nos tínhamos encontrado um dia” (p. 35). Assim que ouve

o nome Regina Anastácia e contempla o porte altivo da mulher, a narradora é tomada

por enorme emoção: “Agradeci à vida por me oferecer momentos tão raros, como o de

contemplar uma pessoa dona de uma beleza que caminhava para um encanto quase

secular” (p. 127). As histórias de vidas marcadas pelo sofrimento e pela coragem das

mulheres se repetem em todos os encontros, a ponto de as lembranças se confundirem,

na mente da narradora.

Enquanto Lia Gabriel me narrava a história dela, a lembrança de Aramides Florença se intrometeu entre nós duas. Não só a de Aramides, mas as de várias outras mulheres que se confundiram em minha mente. Por breves instantes, me veio também a imagem da Mater Dolorosa e do filho de Deus pregado na cruz ficções bíblicas, a significar a fé de muitos. Outras deusas, mulheres salvadoras, procurando se desvencilhar da cruz, avultaram em minha memória. Aramides, Líbia, Shirley, Isaltina, Da Luz, e mais outras que desfiavam as contas de um infinito rosário de dor. (EVARISTO, 2016, p. 95)

Os contos “Aramides Florença”, “Lia Gabriel” e “Shirley Paixão” abordam o

mesmo tema, a violência contra a mulher. No último deles, num processo de reversão

inusitado, a personagem agredida transmuda-se em agressora, a fim de proteger as

filhas. A história de Shirley Paixão, como as demais é um relato, ou melhor, um

testemunho do que já aconteceu, mas o parágrafo inicial do conto agride o leitor com a

violência dos sentimentos da personagem.

Foi assim ˗˗ me contou Shirley Paixão ˗˗ quando vi caído o corpo ensanguentado daquele que tinha sido meu homem, nenhuma compaixão tive. E, se não fosse uma vizinha, eu continuaria meu insano ato. Queria matá-lo, queria acabar com aquele malacafento, mas ele é tão ruim que não morreu! Não adianta me perguntar se me arrependi. Arrependi não. Confessei à polícia o meu desejo, a minha intenção. (EVARISTO, 2016, p. 27)

Aramides e Lia tinham tentado inutilmente enfrentar a violência masculina

gratuita contra elas próprias e os filhos com a submissão e a fuga. Shirley Paixão é

testemunha do ato ignóbil de um pai que tenta estuprar a própria filha, menina de apenas

10 anos, vítima de assédio sexual desde tenra idade. A indignação supera o medo e a

tradicional submissão feminina, que adquire contornos contundentes no caso da mulher

negra, vítima secular da escravização sexual. “Só quando vi o maldito estendido no chão,

foi que corri para proteger Seni – a minha menina nua, desamparada, envergonhada – e

a sensação que experimentei foi a de que pegava um bebê estrangulado no meu colo”

(p. 33).

Fiel a seu propósito, Conceição Evaristo concede à personagem a redenção de

seus atos. Em liberdade condicional, depois de três anos de prisão, ela reconstitui sua

família de mulheres: as três enteadas as duas filhas e ela própria. Passados trinta anos,

Seni vem conseguindo “suplantar as dores do passado”, graças ao seu dom de proteger

e cuidar das pessoas. “É uma excelente médica. Escolheu o ramo da pediatria” (p. 34).

Líbia Moirã, das mulheres com quem a narradora conversou foi a mais reticente

em lhe contar algo de sua vida.

Primeiro, quis saber o porquê de meu interesse em escrever histórias de mulheres e, em seguida, me sugeriu se não seria mais fácil eu inventar as minhas histórias, do que sair pelo mundo afora, provocando a fala das pessoas para escrever tudo depois. (EVARISTO, 2016, p. 87)

A resposta da narradora à provocação da personagem traz o leitor de volta à

pergunta central quando se trata das narrativas de memória de Conceição Evaristo: até

que ponto seus relatos são verdadeiros? “˗˗ Eu invento, Líbia, eu invento!” responde.

“Fale-me algo de você, me dê um mote, que eu invento uma história como sendo a sua

...” (p. 87)