3 BECOS DA MEMÓRIA: A ORIGEM
3.2 MARIA-NOVA E O REGISTRO DAS HISTÓRIAS
3.2.1 A herança dos ancestrais
O primeiro sinal gráfico de escrita que Conceição Evaristo conheceu foi-lhe
apresentado por sua mãe, que certamente teria herdado aquele ensinamento dos seus
ancestrais. Com um graveto em forma de forquilha, a mãe desenhava no chão úmido um
grande sol, com infinitas pernas. Aquele gesto de movimento-grafia era uma simpatia
para chamar o sol, quando a roupa lavada se acumulava nas tinas, em dias chuvosos.
“E no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para que o astro se engrandecesse no
infinito e se materializasse em nossos dias” (2007, p. 17). Era um ritual solene,
acompanhado pelos olhares cúmplices das filhas, ainda meninas, que percebiam que
naquele desenho a mãe imprimia alegoricamente o seu desespero. Demonstra-se a força
da ancestralidade, das leituras do passado, próximo ou distante, realizadas a partir das
lembranças.
Becos da memória é uma homenagem póstuma aos antigos, ao Bondade, ao
Tião Puxa-Faca, à velha Isolina, à D.Anália, ao Tio Totó, ao Pedro Cândido, Sô Noronha,
à D.Maria, mãe do Aníbal, ao Catarino, à Velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à
Mariinha, à Donana do Padin ... É para contar a história de todos eles que Conceição
Evaristo sente voltar o desejo dolorido de escrever.
E havia o doce amor de Vó Rita. Quando eu soube, outro dia, já grande, depois de tanto tempo, que Vó Rita dormia embolada com ela, foi que me voltou este desejo dolorido de
escrever. Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita [...] aos bêbados, às putas,
aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. Homenagem póstuma às lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do campo aberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. (BM, p. 17)
É conhecida a frase de Evaristo “não nasci rodeada de livros, mas de palavras”.
É sua maneira de reconhecer que as histórias que ouvia ajudaram-na a trabalhar sua
sensibilidade e despertaram nela o desejo insaciável de ouvir mais. Inicialmente, como
no caso de Maria-Nova, era um desejo inconsciente, enquanto que Evaristo, a autora
consagrada, reconhece que ao ouvir tais narrativas de familiares ou amigos, já prepara o
ouvido para o que poderá aproveitar. Indagada se as personagens do livro são pessoas
reais, de sua rede de amizades, Evaristo responde que são pessoas de sua rede de
emoções... “Mãe Joana, Maria Velha, Tio Totó, Tio Tatão são personagens criadas tendo
como inspiração um pouco das histórias de minha família” (Citado em FIGUEIREDO,
2013, p. 165).
Cabe à narradora, Maria-Nova, orquestrar as confidências e histórias que ouve
das personagens. Ela sofre e chora com as narrativas de Tio Totó, que relata passagens
de seu passado de sofrimentos e que não se conforma com a destruição da Favela. A
técnica narrativa do discurso indireto livre reproduz a essência dos pensamentos da
personagem, ao mesmo tempo em que faz ouvir sua fala amarga.
Deus do céu, seria aquilo vida? Por que a gente não podia nascer, crescer, multiplicar- se e morrer numa mesma terra, num mesmo lugar? Se a gente sai por esse mundo de déu em déu e não volta, o que vale o respeito, a fé toda quando se está distante, no que ficou para trás ficou? Para que a crença na volta ao lugar onde se enterra o umbigo. Verdade fosse! ... (BM, p.18)
“Tio Totó andava inconsolável: já velho, mudar de novo, num momento em que
seu corpo pedia terra” (BM, p.18). Permanece a perspectiva da personagem, mas é a voz
da narradora, Maria-Nova, que anuncia: “Tio Totó andava inconsolável”. Todos os
moradores da Favela sofriam com a perda de seu chão, como a própria Conceição
Evaristo, que admite ter criado a personagem inspirada em seu tio Totó da vida real,
Antonio João da Silva, o marido da irmã mais velha de Dona Joana Evaristo. Aos sete
anos a menina vai morar com sua tia Maria Filomena da Silva, que era casada com um
viúvo de outros dois casamentos; o casal não tinha filhos. “Fui morar com eles, para que
a minha mãe tivesse uma boca a menos para alimentar”, recorda Evaristo.
16A partir da
dupla viuvez do tio de carne e osso, a autora desenvolve a saga da personagem: a perda
da primeira esposa, Miquelina, e da filha pequena, na tentativa de atravessar um rio
caudaloso. Depois de muito andar de déu em déu, veio ter à Favela, já casado com a
Nega Tuína. Ali nasceram os filhos gêmeos, que custaram a vida da mãe e que viveram
pouco, “morreram antes do tempo cumprido”, deixando para Tio Totó o cuidado dos
netos, que ele partilhava com Maria-Velha. Era um sobrevivente desesperançado, que
“envelhecera não pelos anos passados, mas pelo tempo contado em dores que a vida
oferecera para ele” (BM, p.87).
O cansaço de Tio Totó, que vinha “tentando viver” há grande tempo, traduz-se
no bordão “Os sonhos dão para o almoço, para o jantar, nunca” (BM, p. 49) que repete
incansavelmente. Confessa a Maria-Nova que só depois de muitos anos descobrira a
verdade do dizer daquele ditado, que copiara de um almanaque:
Hoje descobri a verdade do dizer daquele ditado. Sonho só se alimenta até à hora do almoço, na janta, a gente precisa de ver o sonho acontecer. Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome, a desesperança. (BM. p. 51)
Tio Totó, cada vez mais, tornava-se íntimo da morte, despojava-se da esperança.
Revivia o que passara, coisas tristes, tristes mesmo! Algumas alegres num tempo de
esperanças. Foi justamente a esperança que ele procurou. Procurou a esperança bem lá
no fundo do coração e só escutou a batida seca e dura do órgão. Eta coração velho!
Quando iria terminar tudo aquilo? Seria agora? (BM. p.75).
Mas a morte, às vezes, chega traiçoeira, reflete a voz onisciente “[...] ela faz uma
festa no dia anterior. Canta, brinca e sonha no meio do seu ou dos seus escolhidos, e
depois os leva traiçoeiramente (BM, p.76). Quem morre, de modo inexplicável, “morreu
de não viver”, pensa Maria-Nova, é Cidinha-Cidoca, a mulher fogosa que provocava
disputas sangrentas entre os homens. O corpo é levado para necrópsia e Cidinha-Cidoca
enterrada como indigente. Para outros a morte prepara uma lenta agonia, povoada de
lembranças tenebrosas.
São lembranças amargas, parte da vivência da escritora, que faz de Maria-Nova
porta voz do que havia testemunhado. Tio Totó envelhecia a olhos vistos. Deixava o
cachimbo apagado no canto da boca e ficava horas e horas a contemplar o vazio, com
lágrimas nos olhos. Quando respondia às tentativas de Maria Velha, “ia fundo até lá na
infância, cutucando, remexendo, buscando as pedras pontiagudas, sangrando tudo.” A
tudo Maria-Nova escutava. Era tudo muito doloroso! “E daí? O que os vivos podem fazer?
Chorar, viver, cantar, viver, padecer, viver, blasfemar, viver, rezar, viver, viver, viver, viver”
(BM, p. 76).
A sabedoria ancestral adquire contornos míticos no conto “Macabéa, Flor de
Mulungu”, que figurou na antologia de reescrituras de personagens de Clarice Lispector,
organizada por Mayara Guimarães e Luís Maffei, em 2012. A Macabéa de Evaristo tinha
desde o berço o dom da sapiência. “Sabedoria que tirava de seus bons antecedentes.
Sapiência ancestral.” Na árvore genealógica de Macabéa, Evaristo traça toda a trajetória
que vai desembocar em Maria-Nova e nos moradores da Favela Pindura Saia.
As ramagens se embaralhavam. Procelas, invasões, travessias, exílios, batismos forçados, aldeias queimadas, tutela da igreja, muita água, quase mar, canoas sobre o Xingu. Às vezes, Macabéa confundia as histórias de um passado remoto, longínquo, com as do passado presente. Confundia também em si povos espalhados pelo mundo. Africanos e seus descendentes, árabes, ciganos, indianos, judeus, povos nativos das terras das Américas e outros e outros. Porém em meio a estas embaralhadas lembranças três imagens sobressaíam em sua memória. Uma trindade feminina. Uma jovem índia modelando uma jarra de barro. Uma mulher negra de pé, olhando as águas do mar, ao lado dela, um cesto coberto por uma toalha branca descansava. E uma velha portuguesa ocupada em servir o marido e os filhos. Nesses momentos, Macabéa impregnada pelo efeito das três imagens experimentava o ápice da potência feminina. E se fortalecia na certeza de que não estava sozinha. (2012, p. 17)