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2.1 A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

2.1.1 Ponciá Vicêncio (2003)

São muitas as leituras que se podem fazer de Ponciá Vicêncio. Em resenha de

2006, Eduardo de Assis Duarte denomina o texto de “O Bildungsroman afro-brasileiro de

Conceição Evaristo”. Em dissertação de mestrado intitulada Mito, arquétipos e

estereótipos em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo, Mara Bilke de Athayde (2015)

utiliza-se do percurso padrão da jornada mitológica do herói – separação, iniciação,

retorno – postulado por Joseph Campbell, para estruturar a análise do romance.

As duas abordagens favorecem leituras estimulantes do texto, às quais

acrescentamos o que Toni Morrison julga distintivo nos romances de escritores afro-

americanos: a presença de uma pessoa mais velha, de um ancestral que dá voz à

sabedoria do grupo, o qual lhe devota profundo respeito.

Há sempre neles [nos romances] uma pessoa mais velha. E esses ancestrais não são apenas os pais, mas uma espécie de pessoas imemoriais cujas relações com as personagens são benevolentes, instrutivas e protetoras; e que fornecem uma espécie de sabedoria. (MORRISON, 1984, p. 343)

Em Ponciá Vicêncio, lá está Nêngua Kainda que fornece garrafadas para aqueles

que queriam fazer a despedida e acostumar-se com a ideia da partida, antes da

derradeira viagem. É da velha encarquilhada, mas “de olhar vivo, enxergador de tudo”

que uma Ponciá já madura, de volta ao povoado, ouve a sentença irrevogável que a

espera. Para qualquer lugar que ela fosse, da herança deixada por Vô Vicêncio ela não

fugiria (EVARISTO, 2003, p. 60).

Uma versão da herança de Vô Vicêncio pode ser encontrada no romance Amada

(1987) de Toni Morrison. À semelhança do velho escravo liberto que, desesperado e

cheio de amargura, mata a mulher, Sethe, a personagem principal havia degolado a

filhinha “que já engatinhava” (MORRISON, p. 238); tentara matar os dois filhos mais

velhos e o bebê recém-nascido. Tudo para impedir fossem levados de volta à escravidão.

O retorno da criança morta, 18 anos mais tarde, como a personagem-título, Amada, é o

foco do romance. Sua necessidade de posse exclusiva de Sethe ameaça a sobrevivência

da mãe: “Amada devorava sua vida, sugava-a, inchava com ela, ficava mais alta por

causa dela. E Sethe se entregava sem nenhum murmúrio” (p. 292). Denver, a filha

sobrevivente, busca auxílio junto à comunidade de mulheres, que se unem para exorcizar

o fantasma e partem rumo à 124, a casa mal assombrada. A vista dos rostos amorosos

à sua frente desperta Sethe de sua letargia. Ela deixa cair a mão de Amada, que segurava

com firmeza, para partir em defesa de Denver, cuja vida julga ameaçada por um homem

branco de chapéu, ao fundo da cena, que lhe faz lembrar os caçadores de escravos.

Amada torna-se apenas uma lembrança.

Eles a esqueceram como um pesadelo. Depois de criarem suas histórias, moldá-las e enfeitá-las, os que a viram naquele dia na varanda a esqueceram bem depressa e de propósito. O esquecimento demorou um pouco mais para chegar àqueles que tinham falado com ela, vivido com ela, se apaixonado por ela, até se darem conta de que não conseguiriam mais recordar ou repetir uma única coisa que ela dissera. (MORRISON, 1987, p. 320)

Toni Morrison conclui, porém, que a exemplo da história da diáspora negra, da

passagem média formada por sessenta milhões de corpos ou mais, “Esta não é uma

história para se passar adiante” (p. 321).

O desenlace do romance afro-brasileiro é igualmente perturbador. O instrumento

da recomposição da família é o filho homem de Maria Vicêncio, Luandi José Vicêncio,

que reencontra primeiramente a mãe. Em sua busca, o rapaz segue a pista de esculturas

de barro, que lhe chamam a atenção em lugares diversos, nas quais reconhece o trabalho

que Maria e Ponciá costumavam fazer.

Havia os objetos de uso: panelas, potes, bilhas, jarros e os de enfeites, em tamanho menor, pequeníssimos. Pessoas, animais, utensílios de casa, tudo coisas de faz-de- conta, objetos de enfeitar, de brincar. Criações feitas, como se as duas quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos, em qualquer lugar (p. 106-107) ...trabalhos que contavam partes de uma história. A história dos negros talvez (p. 130).

Uma tarjeta identificava as autoras das estatuetas: “Maria Vicêncio filha Ponciá

Vicêncio.” Região: Vila Vicêncio. Proprietário: Dr. Aristeu Pena Forte Soares Vicêncio. A

revelação faz Luandi chorar, mas, ao mesmo tempo sentir-se feliz, por ver os nomes da

mãe e da irmã apontados como autoras. Em outras mesas estavam expostos trabalhos

de “autor desconhecido”. O desconhecido para Luandi era o nome Aristeu Vicêncio.

Quem seria aquele? “Também eram tantos os brancos parentes e mandantes das terras

do povoado. Todos donos” (p. 107). Donos das terras e dos corpos dos escravizados a

ela, como se a Abolição não tivesse acontecido.

O reencontro de Luandi e Maria Vicêncio com Ponciá acontece na estação de

trem da cidade grande, onde enxergam a distância a silhueta de uma mulher que

“andava, chorava e ria, dizendo que queria voltar ao rio” (p. 126). Mãe e filha novamente

juntas, Maria Vicêncio contempla a sua menina.

A menina continuava bela; no rosto sofrente, feições de mulher. Por alguns momentos, outras faces, não só a de Vô Vicêncio, visitaram o rosto de Ponciá. A mãe reconheceu todas, mesmo aquelas que chegavam de um outro tempo-espaço. Lá estava a sua menina única e múltipla. Maria Vicêncio se alegrou, o tempo de reconduzir a filha a casa, à beira do rio estava acontecendo. Ponciá voltaria ao lugar das águas e lá encontraria a sustância, o húmus para o seu viver. (EVARISTO, 2003, p. 129)

As águas e o húmus, indispensáveis para o viver, nos referem aos elementos

clássicos – terra, água, ar, fogo ˗˗ propostos pelos antigos para explicar a natureza e a

complexidade da matéria. Assim como Conceição Evaristo, Toni Morrison associa sua

personagem ao elemento líquido e ao barro, onde “suas pegadas aparecem e

desaparecem.”

Perto do riacho que corre nos fundos da 124, suas pegadas aparecem e desaparecem, aparecem e desaparecem. São muito conhecidas. Quando uma criança ou um adulto colocam os pés nelas, ficam do tamanho exato. Quando os pés são tirados elas desaparecem de novo, e é como se ninguém jamais tivesse estado ali. (MORRISON, 1987, p. 321)

Para que pegadas do homem negro não desapareçam, como se nunca tivessem

existido, é que escritoras como Toni Morrison dedicam a sua arte. A influência dos negros

na música é primordial no Brasil, como nos Estados Unidos. Temos aqui o samba, o

chorinho e as formas populares derivadas. Os afro-americanos encontraram válvulas de

escape na música, os maravilhosos e impressionantes cantos de trabalho, negro spiritual,

e, reconhecidamente, o jazz. Mas as formas musicais foram encampadas pela população

como um todo. Deixaram de ser formas de manifestação exclusivas dos negros. A tarefa

de dar voz ao seu grupo étnico está agora nas mãos do/da romancista. Personagens

como Nêngua Kainda e Vô Vicêncio são ligadas à memória coletiva do grupo, que vai

muito além do passado próximo, na recuperação de suas origens primeiras.