2.1 A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
2.1.6 Histórias de leves enganos e parecenças (2016)
Doze contos e uma novela estão registrados em Histórias de leves enganos e
parecenças, em que Conceição Evaristo, como indica o título, apõe a marca já conhecida por
seus antigos trabalhos, mas inova com o imprevisível narrativo. A protagonista do conto que
abre a coletânea, “Rosa Maria Rosa”, por exemplo, vive uma espécie de “trancamento do
corpo”. Nunca correspondia a quem se aproximava dela: reagia às mãos estendidas para
tocá-la, mantendo os braços cruzados como grades de ferro sobre o próprio corpo. A beleza
de seu corpo era objeto de imaginação: “Seria ela a legendária rosa negra?” Homens e
mulheres queriam apenas entender o motivo do trancamento do corpo da moça. Até que
certo dia de calor intenso, por descuido, Rosa Maria Rosa levanta os braços e quem estava
por perto viu que “a cada gota de suor que pingava das axilas de Rosa, pétalas de flores
voavam ao vento. Foi descoberto o seu segredo” (Evaristo, 2016, p. 20).
A inserção do estranho acontece igualmente na história de Inguitinha,
personagem que dá título ao conto, que “parecia caber no fragmento ‘inha’ em tudo o que
fazia” (2016, p. 21). Inguitinha não era apelido, mas o primeiro nome de Inguitinha
Minuzinha Paredes. Completa era assim a sua graça, expressão dos antigos como
sinônimo de nome. Alguns conhecedores do significado do termo atormentavam
incansavelmente Inguitinha com a pergunta: Moça qual é sua graça? Até o dia em que,
cansada de tanta zombaria, Inguitinha resolveu reagir. Mal um dos zombeteiros de
costume acabara de fazer a pergunta irritante, quando se viu derrubado no chão, em
meio a “espantos, tijolos e poeiras” (p. 21). Uma parede imensa desabara entre os dois.
Inguitinha Minuzinha Paredes caminhou, a partir desse dia, sempre em paz. O
sobrenome Paredes teria alguma coisa a ver com o desabamento?
O afastamento do real causa estranheza, mas está de acordo com a
ancestralidade negra de Evaristo, das estórias tradicionais narradas pelo griot da tribo.
Allan da Rosa
11, autor da apresentação do livro com o texto intitulado “Pilares e silhuetas
do texto negro de Conceição Evaristo”, argumenta que muitos enredos da escritora não
cabem na “gaveta de um realismo temperado a raciocínio gelado, descarnado e
desencantado, e nem de uma fantasia apta a agradar negociatas de estereótipos em
prateleiras imperiais” (p.6).
As “histórias de leves enganos e parecenças” têm muito a ver com a reinvenção
de um passado sagrado, discutido acima,
12que constitui a tônica da coletânea.
Apropriadamente o conto “A moça de vestido amarelo” transforma a cerimônia da
primeira comunhão de Dóris da Conceição Aparecida em um ritual de homenagem a uma
moça de vestido amarelo, que aparecia em sonhos para a menina. A família tinha várias
explicações: tratava- se de uma amiga imaginária; só poderia ser a Nossa Senhora dos
Católicos que viera cuidar do sono e dos sonhos da menina-comunicante. Só a pessoa
mais velha da família, a avó, sabia de que moça “a Sãozinha estava falando” (2016, p.
23). A surpresa ocorre durante o ritual da primeira comunhão, quando “ruídos de água
desenhavam rios caudalosos e mansos a correr pelo corredor central do templo.”
Na hora da comunhão o rosto de Dóris se iluminou. Uma intensa luz amarela brilhava sobre ela. E a menina se revestiu de tamanha graça, que a Senhora lá do altar sorriu. [...] E a menina em vez de rezar a Ave-Maria, oração ensaiada por tanto tempo, cantou outro cumprimento. Cantou e dançou como se tocasse suavemente as águas serenas de um rio. (2016, p. 25)
11 Allan da Rosa é escritor, integrante do movimento de Literatura Periférica de São Paulo, e angoleiro, isto é, praticante da capoeira Angola, sua vertente mais tradicional e ritualística.
As referências claras a Iemanjá, a rainha das águas, representam o retorno ao
passado mítico africano, uma das maneiras de garantir ao indivíduo negro uma tradição
própria, identificadora de suas raízes étnicas.
Outras manifestações do imprevisível acontecem na novela “Sabela”, na qual a
personagem-título é detentora de sabedoria incomum sobre os mistérios da natureza –
tanto os do mundo material, como os da natureza humana e da natureza divina. Seu
corpo sinaliza o estado da natureza indomável, que prenuncia o dilúvio, e suas previsões
e visões são confirmadas pela tormenta que se abate sobre a população.
Quando no céu retumbaram trovões, gritos rasgados da boca do tempo, as vozes do alto foram repetidas desde lá de dentro das entranhas da terra. Os buracos terrestres, mesmo os bem-bem pequenos, como os minúsculos orifícios por onde penetram as menores formigas, até as crateras de onde jorram os vômitos dos vulcões, todos copiaram os gritos celestes. Todas as inimagináveis frinchas do chão manifestaram-se com um longo e profundo som. Todas as fendas do solo bradaram violentamente, inclusive maior, a guardadora de imensas águas, o mar. Repito. Todos os buracos terrestres devolveram aos céus, em forma de eco, os brados roucos e lancinantes que se despendiam das nuvens. (2016, p. 59)