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A relação entre o currículo e os níveis de envolvimento

Capítulo I – Experiências-Chave em Educação Pré-Escolar

2. A relação entre o currículo e os níveis de envolvimento

Dado o reconhecimento da importância da qualidade na educação de infância, num simpósio organizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OECD) em Estocolmo, em 2003, foram discutidos quatro modelos de boas práticas no campo da educação, HighScope (EUA), Reggio Emilia (Itália), Te Whariki (Nova Zelândia) e Educação Experiencial (Bélgica). Entre estes modelos foram identificadas seis caraterísticas comuns, o respeito pela criança, a abordagem de “estrutura aberta”, a promoção de um ambiente rico, o reconhecimento do processo de representação, a valorização da comunicação, interação e diálogo e ainda a importância da observação (Laevers, 2014).

Centremo-nos por agora na estrutura da abordagem, designada como “aberta”, que em muito se relaciona com aquilo que temos vindo a defender, a visão da educação expressa pelo construtivismo social que se reflete na construção do currículo emergente. Longe de uma situação de laissez faire, não nos podemos esquecer da importância de compreender a forma como o ambiente educativo é percecionado pelas crianças e como as influencia (Laevers, 2014). Com a mesma preocupação, a Educação Experiencial (EXE), modelo educacional desenvolvido em 1970/80 a partir da observação de crianças em contextos de JI na Bélgica, tem como objetivo a avaliação da qualidade de qualquer ambiente educacional a partir da perspetiva da criança, focando-se nos parâmetros como o bem estar e envolvimento

39 Apesar de ambos os conceitos, envolvimento e implicação, se referirem à mesma realidade, no

(Laevers, 2011). Tendo sido “One of the most crucial contributions of the Experiential Education project was undoubtedly the elaboration of the concept of involvement as a parameter for quality in education” (Laevers, 1994, p. 3). Apresenta-se como uma atitude no questionamento tanto do que estamos preparados para observar como do ponto de vista de referência, nesse caso, considerando-o na criança. Carateriza-se pelo “momento em que tentamos entrar em contacto com a experiência do outro e perceber que tipo de ambiente devemos criar para essa pessoa” (Laevers, Santos, & Jau, 2008, pp. 4,5). Este modelo leva ainda a que se questione a ligação entre aquilo que é o contexto e os resultados que se esperam, sugerindo no entanto que os indicadores de qualidade se situam no processo entre tais pontos de partida e chegada, pelo que deve existir uma concentração no bem estar e no envolvimento(Laevers, 2014), à semelhança do que também é descrito pelo Ministério da Educação em Portugal (Bertram & Pascal, 2009)40. Ainda no que diz respeito a essa avaliação na procura da qualidade, caraterizada por um processo- em-progresso, evidencia-se a importância do olhar interior tanto da educadora como da própria criança, que segundo Moss & Pence (1994) necessita de ser escutada no processo de construção da qualidade (Oliveira-Formosinho & Araújo, 2004). Como tal, Ferre Laevers (1994) apresenta um instrumento, The Leuven Involvement Scale

for Young Children (LIS-YC), que permitirá avaliar os níveis de envolvimento das

crianças numa escala de 1 a 5 e consequentemente tomar iniciativas que favoreçam o aumento dos mesmos. Maria Nabuco e Silvério Prates no trabalho desenvolvido com educadores, em Portugal, verificaram que a evolução da qualidade em educação mantém uma estreita ligação com os níveis observados de envolvimento de crianças(Laevers & Heylen, 2003). Posteriormente, Laevers em conjunto com Gabriela Portugal, adaptaram a escala de envolvimento para um Sistema de Acompanhamento das Crianças (SAC) que permite realizar uma avaliação na EPE de acordo com as especificidades da infância, mas respeitando o caráter genérico das orientações oficiais portuguesas, com vista a monitorização dos progressos e fundamentação de posteriores intervenções (Portugal & Laevers, 2010, p. 11).

40Vide in Anexo 3 – Quadro Teórico para o Desenvolvimento da Qualidade nos Estabelecimentos de

Segundo Laevers e Van Sanden (1997) “ao atender-se à experiência interna das crianças (considerando o bem estar emocional e a implicação), protagoniza-se uma atitude experiencial” e, assim, “numa abordagem que pretende ter em consideração as necessidades e interesses das crianças, a focalização do educador na própria corrente de experiências e na criança é a base da atitude experiencial” (Portugal & Laevers, Avaliação em Educação Pré-Escolar - Sistema de Acompanhamento das Crianças (SAC), 2010, p. 14).

Como refere Laevers (2003, p.14), citado por Portugal e Laevers(2010, p. 20), “quando queremos saber como cada criança está num contexto, primeiro temos de explorar o grau em que as crianças se sentem à vontade, agem espontaneamente, mostram vitalidade e autoconfiança. Tudo isso indica que o bem estar emocional está OK e que as suas necessidades físicas, necessidade de ternura e afeto, a necessidade de segurança e clareza, a necessidade de reconhecimento social, a necessidade de se sentir competente e a necessidade de significado e de valores na vida estão satisfeitas. O segundo critério está relacionado com o processo de desenvolvimento e leva o adulto a criar um ambiente estimulante e que favorece o envolvimento”

Tal como indicam Bertram e Pascal (2009), muito dificilmente existe o envolvimento das crianças sem que estas se sintam emocionalmente seguras. No entanto, e apesar do bem estar ser uma condição para o envolvimento, Laevers refere-se ao envolvimento como um forte potenciador de um maior nível de bem- estar, uma vez que nos faz sentir que temos capacidade para fazer algo que nos fascína, alterando a perceção que cada um tem de si(Laevers, Santos, & Jau, 2008), então, importa caraterizar tanto o envolvimento como o bem estar. Segundo Portugal e Laevers(2010), o bem estar está associado ao prazer, à satisfação das necessidades acima mencionadas, o que deixa a criança “acessível e aberta ao que a rodeia” (p. 20). Assim, para que se consiga determinar o nível de bem estar emocional de cada criança é necessário ter em consideração indicadores41 como a abertura e

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recetividade ao contexto, a flexibilidade perante novas situações, a autoconfiança e autoestima, a assertividade, a vitalidade, a tranquilidade, a alegria e a ligação consigo própria (op. cit.). Em suma, o bem estar é um estado especial da vida interior que se reconhece por sinais de satisfação que indicam se a criança se desenvole bem social e emocionalmente (Pfeffer, 2007).

O bem-estar emocional da criança é relevante para o desenvolvimento, porém no entanto, não é uma garantia de que de facto exista, assim como acontece com as aprendizagens significativas, pois para tal é necessário também haver envolvimento. Laevers (1997) identifica o “The key concept of involvement in a sense guarantees that something very valuable is going on in the child, here and now, something that inevitably must lead to deep level learning, within the area of competences addressed in the activity at stake”(Woods, 2016, p. 22). Laevers refere-se ao envolvimento como um estado especial em que se encontra uma pessoa quando realiza uma atividade (Pfeffer, 2007, p. 61), quando essa “qualidade da atividade humana pode ser reconhecida pela concentração e persistência, caraterizando-se por motivação, interesse e fascínio, abertura aos estímulos, satisfação e um intenso fluxo de energia” (Portugal & Laevers, 2010, p. 25). Assim é importante esclarecer que o envolvimento não se encontra ligado a tipos específicos de comportamento nem a níveis de desenvolvimento(Laevers, 2004). O envolvimento tem origem na necessidade profunda em descobrir, conhecer, compreender o mundo e saber como nele atuar, tal como refere Laevers (2006, p. 24) “the need to get a better grip on reality, the intrinsic interest in how things and people are, the urge to experience and figure out”(Woods, 2016). Assim, apenas acontece um envolvimento intrínseco quando existe sucesso em ativar este mecanismo interno de exploração, todos os outros deverão ser designados de envolvimento do tipo emocional ou funcional(Laevers, 2014). No entanto, para que exista um continum de envolvimento torna-se ainda relevante a harmonia entre as atividades desenvolvidas relativas ao interesse e as capacidades das crianças, pois ao contrário do que se poderia imaginar não ocorre envolvimento quando as atividades são demasiado fáceis ou exigentes. Portanto, Laevers basea-se em Vygotsky (1995), para indicar a existência de envolvimento apenas quando a criança funciona no limite superior das suas capacidades, na zona de desenvolvimento próximo (ZDP)(Oliveira-Formosinho &

Araújo, 2004, p. 86), tal como se verificou em contexto de estágio, quando foi necessário um andaimar por parte de outras crianças, para que o nível de envolvimento se mantivesse ou aumentasse.

Existem alguns sinais de envolvimento42, para os quais devemos estar despertos e consequentemente conseguir atuar na ZDP da criança. Como é o caso da concentração da criança na atividade que se encontra a realizar, da energia/esforço, da complexidade e criatividade com que encara a atividade, da expressão facial e postura, da persistência, da precisão, do tempo de reação, da expressão verbal e da satisfação(Portugal & Laevers, 2010, p. 27). Não significa que encontremos todos estes sinais em simultâneo, mas existirão certamente alguns que traduzirão o envolvimento da criança, como aconteceu, por exemplo, no momento em que as crianças descobriram as sardinhas de Bordalo Pinheiro. Durante este momento evidenciou-se o envolvimento das crianças aquando da execução cuidadosa da pintura,concretizada com muita precisão tendo em conta os detalhes realizados, bem como da satisfação demonstrada quando concluída a tarefa, no modo como o resultado foi apreciado, tocado e acariciado.

Laevers (2006) carateriza ainda o momento de envolvimento a partir da teoria de fluxo, elaborada porCsilcszentrnihalyi (1979) onde se define a concentração como uma das características predominante deste estado de fluxo à semelhança do que acontece num momento de envolvimento intrínseco.O facto de não existir distância entre a pessoa ea atividade,leva a que a pessoa envolvida restrinja a sua atenção num círculo limitado, fora do qual nada mais parece importar. Cskiszentmihalyi (1990) refere-se às atividades de fluxo como uma prestação de experiências agradáveis, que levam a um estado ordenado da mente, o que é altamente agradável. São ainda destacadas pelo autor, Csikszentmihilyi (2002), oito componentes principais desta teoria de fluxo que refletem o envolvimento das pessoas, distorcendo por exemplo a perceção do tempo (o tempo passa mais rapidamente). De acordo com esse envolvimento a atividade torna-se espontânea e as pessoas deixam de estar conscientes das suas ações(Woods, 2016). Tal como refere Dewey (1910), existe

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uma ordem consecutiva em que a ação anterior determina a seguinte, formando-se uma corrente, um fio único de pensamento.

Quando a criança se envolve tem uma experiência de aprendizagem profunda, motivada, intensa e duradoura (Laevers, 1994, citado por Oliveira-Formosinho & Araújo, 2004). Inerente a estes processos de aprendizagem profunda, Laevers (2006, p. 21)destaca também a intuição como “the faculty to mentally represent reality, making use of one's imagination, by which meanings are reconstructed, enabling one to get the feel of the real thing”(Woods, 2016) e a criatividade como a disposição para a produção de ideias originais adequadas à resolução de um problema, o que facilitará associações entre elementos distantes e o consequente aumento de sinapses. Portanto, segundo Laevers (1998), e uma vez que significa que o processo desenvolvimental é dinâmico, este mobiliza estruturas fundamentais de base do pensamento, conduzindo a uma mudança nessa estrutura, “acrescentando-se algo aos esquemas mentais já existentes”(Figueiredo, 2015, p. 92), pois o facto de aumentar as funções percetivas e cognitivas envolve uma elevada atribuição de significado das palavras e das ideias e consequentemente a realização de uma aprendizagem profunda e significativa(Laevers, 2014, pp. 159-160), tal como defende Rogers citado por Laevers (1983, p. 20), (Woods, 2016)

[significant or experiential learning] has a quality of personal

involvement - the whole person in both feeling and cognitive aspects being in the learning event. (...) Its essence is meaning. When such learning

takes place, the elements of meaning to the learner is built into the whole experience

Assim, o desenvolvimento do ímpeto exploratório, previsto nas OCEPE, permitirá garantir a aprendizagem significativa ao longo da vida, uma vez que a atitude exploratória é definida pela recetividade a uma variedade de estímulos que formam o nosso ambiente, o que consequentemente levará à concentração e envolvimento na descoberta do mesmo(Woods, 2016). Este torna-se um dos maiores argumentos que marca a prática da equipa educativa do JI43, onde foi realizada a

43 Excerto oral de comunicação de educadora: “as crianças daqui levam vontade de aprender, acima de

prática de estágio, uma vez que se levava em consideração a estreita ligação do envolvimento com as teorias da motivação intrínseca e o conceito de interesse (Laevers & Heylen, 2003). Os autores Laevers & Heylen (2003) refereciam Ulrich e Mar para mencionar que o possível aumento do envolvimento numa atividade dirigida por professores, deve-se à transformação realizada pela criança da atividade num evento pessoalmente significativo e interessante, portanto, “a pesquisa demonstra que quanto mais as crianças têm oportunidade de escolher as próprias atividades mais altos serão os níveis de envolvimento”(Laevers, 2004, p. 63). Em suma, Laevers denota que “se houver envolvimento em qualquer que seja a atividade que estamos a realizar há sempre desenvolvimento”(Laevers, Santos, & Jau, 2008, p. 1).

Tendo em conta esta valorização do envolvimento, torna-se urgente avaliar os níveis de envolvimento da criança para que posteriormente se possa intervir na perspetiva de melhorar a qualidade na educação de infância com vista ao desenvolvimento da criança. Apesar de parecer uma caraterística subjetiva, tal como refere Laevers (2004, p. 60), é possível avaliar-se o envolvimento, de acordo com a “Escala de Envolvimento de Leuven” (LIS). Esta é uma escala com 5 níveis, em que no nível 1 não existe qualquer atividade; no nível 2 existem algumas ações com interrupções constantes; no nível 3 já existe atividade mas sem concentração ou motivação, ao contrário do que acontece nos níveis subsequentes, em que existe; no nível 4 verificam-se atividades mentais intensas e no nível 5 um envolvimento total com atividades em pleno fluxo (op. cit.: p. 61). Para além da avaliação com base na LIS, Laevers & Moons (1997) consideram um inventário de 10 tipos de iniciativas que favorecem o bem-estar e envolvimento das crianças(Laevers, 2014, p. 162). Estes 10 pontos de ações encontram-se a par daqueles que deverão ser os pilares associados ao papel do educador, a sensibilidade numa relação autêntica com as crianças, a autonomia aquando da estruturação das regras e limites e a estimulação quanto à oferta de materiais e atividades que vão ao encontro das necessidades das crianças, introduzindo-se em simultâneo fascínio(Laevers, 2004, p. 64).

Assim, partindo de uma atitude experiencial erguem-se os três pilares da prática que levarão ao bem-estar emocional e envolvimento das crianças, permitindo estabelecer a ligação entre a experiência e a finalidade da educação: o

desenvolvimento pessoal e social de cada criança. “Incrementar níveis elevados de implicação e de bem-estar nas crianças configura-se, assim, como finalidade do trabalho em educação de infância, enquanto via para aceder ao máximo Desenvolvimento Pessoal e Social das crianças (DPS)” (Portugal & Laevers, 2010, p. 14), tal como consta no edifício pedagógico que fundamenta a abordagem EXE.