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3 REFLEXOS NO DIREITO E JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIROS DA

3.2 O Princípio da Temporalidade Eletiva, suas Limitações e Inadequações

3.2.2 A Relação entre Democracia Representativa e Eleições

Um primeiro entrave importante a ser reavaliado se constituiu na vinculação estabelecida entre eleições e democracia representativa, adotada como marca característica de sistemas políticos que colocam o processo eleitoral no ápice do projeto democrático: ponto culminante porque constitutivo da escolha do representante pelo representado.

Uma ênfase dominante nas eleições tem por motivação proteger o bem jurídico considerado mais relevante na democracia representativa: a lisura do pleito e a legitimidade da representação política.

A democracia se realizará, nesta ótica, dotando-se a sociedade de um órgão de certificação da lisura das eleições com poderes necessários para garanti-la: a Justiça Eleitoral. É por esse dever/responsabilidade v. g., que surgirão as importantes iniciativas adotadas pela Justiça, como forma de garantir a mais pura expressão da vontade popular através do voto eletivo.

Aqui se podem referir diversos exemplos, como a urna eletrônica, o cadastramento de eleitores em regime de biometria, e de numerosas outras inovações logísticas incorporadas ao ordenamento jurídico e ao sistema político pela Justiça Eleitoral e o Direito Eleitoral visando garantir o resultado justo do processo eleitoral.

313 BAQUERO, Marcelo. Cultura política e processo eleitoral no Brasil: o que há de novo? Em Debate, Florianópolis, v. 2, n. 7, p. 7, 2010.

É possível, todavia atribuir expectativas positivas e negativas à limitação da competência da Justiça Eleitoral e do campo de atuação e estudo do Direito Eleitoral vigentes no modelo representativo brasileiro.

Um exemplo de expectativa positiva se encontra no intróito do "A Justiça

Eleitoral e sua Competência", de Suzana de Camargo Gomes, ex-desembargadora

do Tribunal Regional Eleitoral da 3ª Região, quando cita de Sermão do Padre Antônio Vieira a seguinte passagem: "que razão há para se elegerem não só os bons, senão os melhores, e ainda dos melhores, os que forem ou o que for melhor? A razão é porque o que elege não só é obrigado a procurar o bem público, senão o maior bem"314.

Ao tempo da primeira edição315 de sua obra (1998), Suzana Gomes citava que o estímulo à escolha dos melhores implicava em melhoria do sistema, numa espécie de elitização desejada da classe política, que de certa forma reproduzia a pouca confiança na democracia como um governo efetivamente do povo.

Com o ceticismo se atendia ao anseio de limitar impulsos populistas e autoritários que tendem a apelar para a legitimação popular - a decisão "dos piores" - a despeito da opinião "dos melhores".

Uma justificativa possível para tal limitação decorreria da crença de que certo isolamento dos representados no processo de condução política e estratégica daria condições mais propícias para que "os melhores entre os melhores", no dizer de Padre Vieira, conduzissem com mais desenvoltura e liberdade os destinos estratégicos da nação, controlando e impedindo os arroubos autoritários e populistas que, tanto no período colonial de Vieira como no passado recente, tanto mal produziram.

O problema aqui está em que eleições gerais e municipais não apenas cumprem a missão da escolha de representantes com a renovação de todos os mandatos políticos, como são também uma oportunidade para a sociedade rever ou reafirmar costumes políticos. Não por outra razão, aliás o "processo eleitoral" tem despertado amplo interesse no meio acadêmico e científico da cultura da política316.

314 GOMES, Suzana de Camargo. A justiça eleitoral e sua competência. São Paulo: RT, 1998;

VIEIRA, Padre. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1957. v. 3, p. 341.

315 A primeira edição da obra foi publicada em 1998, período em que as atuais modernidades

tecnológicas ainda eram incipientes, e não influíram significativamente nos hábitos políticos da comunidade.

316 Segundo Baquero, na área da cultura da política, pesquisas variadas são construídas para estudar

a socialização política, a participação política e partidos políticos, temas que, de maneira geral, centram suas atenções no processo eleitoral. BAQUERO, Marcelo. Cultura política e processo eleitoral no Brasil: o que há de novo? Em Debate, Florianópolis, v. 2, n. 7, p. 7, 2010.

O fato é que modelos que apostam no distanciamento do cidadão de seu representante, necessariamente diminuem a importância de sua participação deliberativa, enfraquecendo indiretamente os princípios tutelares da liberdade plena e da autocontenção.

A baixa responsividade e transparência nas relações entre representante e representado tende a estimular uma conduta política tolerante e passiva, descrença com a classe política e desapreço com as instituições, percepções negativas que partem da incapacidade do indivíduo manifestar com êxito e eficácia sua "verdade moral" e participar dos principais debates políticos nos períodos que estão fora do "processo eleitoral".

Para mostrar-se efetivo, o modelo representativo puro dependeria da realização de uma expectativa moral, de que o cidadão-eleitor317, na expressão consagrada pela Ministra Hellen Gracie ao conceituar "processo eleitoral", "faria justiça" com seu voto a cada quatro anos, reprovando os representantes que fraudaram as expectativas que despertaram e renovando os quadros políticos, mostrando sua insatisfação, e/ou, como se costuma dizer na linguagem coloquial, "dando sua resposta" nas urnas.

Tal expectativa embora ocorra é manifestamente inexpressiva politicamente. No "hiato" que ocorre entre eleições, quanto mais precária for a “troca deliberativa” entre o representante e representado, menos informação terá o indivíduo para exercer sua liberdade deliberativa e realizar o aprendizado necessário da sua autocontenção.

É diante desse "espaço que se abre", em parte resultante da fragilidade comunicativa e responsividade do mandato, que se levanta a doutrina ao criticar a dominação de oligarquias no modelo de representação partidária318, a ausência de articulação entre o voto parlamentar e a doutrina do partido entre outros aspectos fartamente referidos nos debates e análises políticas.

Assim, o principal motivo para a "representatividade" isolada da "eleição dos

317 Voto Min. Ellen Gracie, ADI 3.685/CF. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade 3.685-8 Distrito Federal. Requerentes: Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil. Requerido: Congresso Nacional. Relatora: Ellen Gracie. Brasília, DF, 22 de março de 2006. p. 214. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp? docTP=AC&docID=363397>. Acesso em: 14 set. 2017.

318 Citando Michels, Ana Claudia Santano refere que a democracia moderna é dominada por oligarquias

partidárias, e que um partido para se destacar necessitaria de "um bom caixa". SANTANO, Ana Claudia. Uma introdução ao estudo da corrupção política nas sociedades democráticas dentro do paradigma do estado de direito. Paraná Eleitoral, Curitiba, v. 4, n.1, p. 123-138, 2015.

melhores" se desvanece. Na prática, o sistema político tende a ser dominado por grupos políticos consolidados ('il giri', de Zagrebelsky). Estes, na condição de representantes eleitos, beneficiados inclusive pelas fragilidades do modelo jurídico de controle, determinam as regras que vão reger os pleitos.

Assim é que, isolados dos anseios sentidos nos estratos sociais mais distantes, o modelo representativo do processo eleitoral termina por se assemelhar a um modelo "delegativo" de poder.

A provocação tem sentido de ser.

Constituindo-se o voto no principal instrumento de controle da qualidade da representatividade do mandato - para não dizer único - o caráter temporal do "processo eleitoral" termina por estimular uma espécie de círculo vicioso.

A partir do exaurimento da competência material da Justiça Eleitoral com a diplomação dos eleitos, a representatividade passa a ser objeto de um controle constitucional e administrativo não eleitoral. Apesar de numerosas ferramentas de controle, tais como CPIs, Impeachment, Processo Ético Disciplinar, Improbidade Administrativa dentre outros, a existência de privilégios acoplados ao exercício do mandato tornam a representação política fortemente irresponsiva, podendo tornar-se perigosamente irresponsável.

Além disso, acaso a liberdade política reconhecida aos representantes não se faça acompanhar do hábito de controle pelo representado, uma área de discricionariedade consideravelmente ampla resulta concedida.

Assim, sendo-lhes desnecessário prestar contas das decisões políticas tomadas, ou deliberar tais decisões com seus representados, o mandatário está dispensado de pressões políticas externas no hiato entre eleições.

Ele somente tornará a sentir a necessidade de um contato mais próximo e participativo quando lhe for indispensável convencer os eleitores a mais uma recondução, justamente no período do "processo eleitoral" formal, quando o ciclo vicioso reinicia-se.

Ocorre que, na medida em que nenhum novo elemento seja capaz de reverter este quadro, o resultado é o distanciamento cada vez mais acentuado entre representante e representado, viciando e contaminando as rotinas, expectativas, autoconfiança e a própria cultura política.

Alijado do conhecimento necessário a uma escolha mais virtuosa e consciente, o cidadão tende a ficar mais apático, descrente e cético, e o político a

sentir-se menos responsável por prestar contas de seus atos.

É dispensável reiterar que esse formato de controle dos atos políticos reproduz com precisão o modelo de democracia do elitismo competitivo.

É possível perceber por que se chega ao ponto de inflexão do atual modelo democrático. Como as ferramentas tecnológicas incentivam uma participação ativa, e por vezes intrusiva do representado, um novo elemento surge com capacidade para romper o ciclo vicioso que converte "representatividade" em "delegatividade".

Parece haver um esgotamento da viabilidade institucional desse modelo representativo irresponsivo, na medida em que os modernos procedimentos de participação diminuíram muito o distanciamento do mandatário de seu eleitor e da comunidade em geral. Hoje, ao contrário do que até então ocorria, o mandatário parece muito mais submetido ao risco de deixar de ser representante para tornar-se um mero ‘porta voz’ daqueles que o ameaçam com o castigo político da não reeleição.

Sem a prevalência das bases que facilitam tal isolamento - no sentido de que o representado pouco participava efetivamente do processo decisório - (vício da exclusão) e, sem a introjeção dos valores de uma cultura política autenticamente democrática pela cidadania (virtude da inclusão qualificada), muito dificilmente uma democracia conseguirá superar os desafios da sua instabilidade.

É neste espaço social e teórico que a ideia de uma democracia deliberativa de plena liberdade e autocontenção deve se inserir.

Assim, quando se fala neste trabalho da necessidade de uma cultura política democrática, construída pela liberdade plena (nos marcos constitucionais do estado de direito) e autocontenção, o que se propõe é transformar a representatividade decorrente do que se chamou de "vício da exclusão" numa representatividade virtuosa que promova a “inclusão qualificada” do cidadão.

Para o presente estudo, os efeitos que esses novos hábitos, costumes, comportamentos que sustentam uma cultura política democrática são prioritários e ressignificados, porquanto é a partir do ideal de representação que se modelava todo o aparato normativo do sistema eleitoral.

A indagação que se coloca, então, passa a ser: qual normatividade que se espera seja desempenhada pelo Direito Eleitoral e a Justiça Eleitoral no advento de uma democracia deliberativa de plena liberdade e autocontenção?