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3 REFLEXOS NO DIREITO E JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIROS DA

3.1 Considerações Introdutórias sobre o Impacto Renovador da Democracia

3.1.5 Insuficiências do Direito Eleitoral Frente à Democracia Deliberativa de Liberdade

Um dado está suficientemente claro: não basta ao Constituinte declarar que o poder emana do povo e será exercido por meio de representantes eleitos, para que a ação dos representantes seja a expressão legítima do exercício do poder na formação de uma verdadeira cultura democrática.

Democracia não se realiza com declarações normativas e orações bem acabadas; assim como para sua consolidação são insuficientes a obediência formal ao rito eletivo e a certificação da lisura e legitimidade para o exercício do mandato.

Na qualidade de projeto cultural em construção, são as práticas cotidianas de participação ativa do indivíduo nos debates políticos que realizarão a construção da democracia deliberativa. Para tanto, ao indivíduo é necessário garantir a plena liberdade para participar do processo político, ambiente onde vai compartilhar seus valores, ideais, informações, juízos, opiniões e expectativas.

No convívio de liberdades plenas, o insucesso e a resistência de seu particular "auditório de debates" em aceitar suas reflexões detém o potencial para fazê-lo repensar, avaliar suas convicções, modificar a si mesmo e adaptar-se.

É nessa reflexão íntima que se materializa a autonomia do indivíduo, e a autocontenção do aprendizado pedagógico com tais experiências.

Essa cultura se fortalece numa espécie de "mercado de ideias", uma "assembleia sem fronteiras" para a deliberação que hoje se apresenta em contínua expansão e, face ao acesso cada vez mais facilitado à informação propiciada pela universalização das novas tecnologias.

Esse é um ambiente que concede ao indivíduo uma atuação muito mais ativa, um dado empírico do mundo real que não pode ser recusado. Ainda que esse ambiente dilatado de comunicação política também esteja contaminado por distorções, é ele hoje um instrumento de controle social e moral sobre temas políticos mais eficiente do que o modelo de controle social praticado até então pelo sistema representativo.

Temas que até então estavam protegidos pelo anonimato dos plenários, fatos políticos que não eram noticiados pela "seleção natural" entre informações que disputavam os reduzidos espaços de divulgação existentes, hoje não se perdem, e circulam com rapidez espantosa.

A realidade social comunicativa e participatória dos espaços deliberativos se impõe de tal forma que não há razões para acreditar que a ação política proveniente do lado-input corresponda adequadamente às pretensões políticas que advêm do lado-output. Logicamente, não são apenas os hábitos deliberativos que são modificados com o acesso ampliado à informação, mas a própria representatividade, com o incremento de novas ferramentas de responsabilização e controle social.

Alguns atritos e fissuras proporcionadas nessa transição são autoevidentes. Um deles é justamente o regime eletivo e suas peculiaridades. Vale lembrar que no sistema representativo atual, à luz do art. 22 da Constituição Federal, compete aos próprios representantes eleitos estabelecerem as regras que irão reger as futuras eleições. E é o que fazem com certa frequência, muito mais premidos por pressões populares fundadas em escândalos políticos, do que movidos pelo interesse em aperfeiçoar o sistema como um todo.

Basta tomar como paradigma a Lei Geral das Eleições - Lei nº 9.504/97 - para perceber que foi alterada pelas leis, 9.840/99, 10.408/02, 10.740/03, 11.300/06, 12.034/09, 12.350/10, 12.891/13, 12.976/14, 13.165/15 e, mais recentemente, pela Lei 13.488/17. Ao total, são dez diplomas e 598 alterações, dados que impressionam para um dispositivo que possui 107 artigos, alguns dos quais já na quarta redação diferente.

Não apenas a Lei Geral das Eleições é objeto de alterações voltadas a "corrigir" o sistema representativo.

Durante os governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foram aprovadas a instituição de cláusula de barreira, voltada a diminuir a proliferação de partidos políticos (que seria posteriormente declarada inconstitucional); e a reeleição

por um mandato, aprovada em 1997, através da Emenda Constitucional 16.

E vale também referir a promulgação da Emenda Constitucional nº 53, de 2001, que viria a modificar o regime da imunidade parlamentar, superando o entrave da redação primeira segundo a qual crimes comuns cometidos por parlamentares não poderiam ser julgados sem prévia autorização para processamento, pela Mesa da Casa (o que deixava impune os crimes cruéis cometidos, por exemplo, pelo então deputado Hildebrando Pascoal contra trabalhadores - autorização que a casa reiteradamente recusava ao STF).

Talvez nenhuma outra informação seja mais reveladora da insuficiência do atual modelo democrático representativo que o apelo político por reformas jurídicas.

Desde o primeiro governo do ex-presidente Lula, estão sempre em debate pontos cardeais da legislação, tais como: o sistema eleitoral proporcional em lista aberta e a supressão da obrigatoriedade do voto. Também temas de relevância menor insistem em ser trazidos à possibilidade de alteração, tais como supressão do mandato de suplente de Senador; a redução do prazo de filiação partidária e domicílio eleitoral de um ano para seis meses; o fim das coligações em eleições proporcionais, a instituição da federação de partidos e da candidatura avulsa.

Apesar das inúmeras propostas de reforma política, não é demasia afirmar que nenhuma alteração normativa terá suficiente alcance moral para satisfazer o desejo de mudança que a motiva. Muito provavelmente, a persistência de um clamor popular por reformas políticas seja antes a manifesta insatisfação com o modelo de representatividade partidária na democracia brasileira, do que o anseio por alterações pontuais da legislação eleitoral.

Não fosse por isso e talvez as contínuas e reiteradas investidas do legislador e do Poder Judiciário para alterar a lei eleitoral e o sistema político já teriam arrefecido esse ímpeto reformador.

Todavia, não é o que ocorre de fato.

Na medida em que os escândalos políticos alimentam a insatisfação com a classe política dirigente e com o sistema representativo como um todo e, considerando que as reformas são promovidas e conduzidas muitas vezes pelos mesmos representantes que foram denunciados por cometerem ilegalidades, uma maior aposta no ativismo judicial tende a aumentar.

Não por outra razão, assuntos políticos até então relegados à autonomia do Parlamento têm sido objeto de constantes medidas judiciais, como se verificam nos

julgamentos históricos envolvendo a declaração da fidelidade partidária, delimitação judicial do número de vereadores por município, verticalização das coligações e inconstitucionalidade do financiamento privado de campanha, todas decididas no âmbito do TSE e STF.

A vicissitudes do sistema político estimulam a confiança no ativismo judicial. Como refere Toffoli, "mudam-se as leis, mas com essas, mudam-se também os métodos fraudulentos"299, e por isso defende que a atuação judicial combativa deva promover um enfrentamento diuturno às fraudes que se adaptam às alterações normativas.

Toffoli cita diversos exemplos.

Das mais antigas fraudes cometidas no processo eleitoral, v.g., o acréscimo artificial do número de votantes tornou-se teoricamente impossibilitado com a tecnologia associada ao registro do eleitorado. Ainda assim, a migração artificial de eleitores entre municípios segue sendo uma fraude bastante praticada, expediente voltado a permitir a eleição dos vereadores "que migram eleitores" de cidades vizinhas, beneficiando até mesmo prefeitos, dependendo do tamanho do município.

Outra fraude bastante conhecida, a falsificação na identificação presencial do eleitor, que votou então com título de terceiros, prática que foi atenuada com a instituição da urna eletrônica, mas que ainda é em parte viabilizada pela inexistência de fotografia no título de eleitor.

A simulação de ruptura do casamento, para violar a regra da perenização de grupos familiares no poder, é outro exemplo de fraude, que pode ser associada ao chamado "prefeito itinerante", que é aquele que migra para um município vizinho para concorrer a um terceiro mandato.

Ainda se pode citar o abuso do poder político na revogação de decretos legislativos, para contornar o impedimento à capacidade política plena, decorrente da reprovação das contas pela Câmara Municipal e a alteração de candidatos impedidos de concorrer, mas com alto potencial eletivo, às vésperas da eleição por substitutos politicamente inexpressivos.

Vale referir que, para Toffoli, tais fraudes somente são alcançadas por uma "construção jurisprudencial diária da Justiça Eleitoral, sempre muito próxima dos fatos concretos", já que a ausência de regulamentação legal das fraudes eleitorais,

299 TOFFOLI, Dias. Breves considerações sobre a fraude ao direito eleitoral. Revista Brasileira de Direito Eleitoral, Belo Horizonte, v. 1, p. 47, 2009.

como muitas das fraudes exemplificadas, faz com que "[...] a necessária caracterização de sua antijuridicidade advenha exclusivamente desta atuação e interpretação diuturna que se faz do sistema constitucional-legal eleitoral".300

A confiança depositada por Toffoli no ativismo judicial da Justiça Eleitoral, no entanto, merece ser vista com alguma desconfiança. Coibir fraudes ao arrepio das normas vigentes, construindo interpretações judicialmente, justifica o ativismo judicial, mas não justifica a substituição do papel desempenhado pela representação política. Ao atribuir-se o papel de corrigir judicialmente o sistema político, substituindo por decisões judiciais a ação negligente do Poder Legislativo, a Justiça Eleitoral poderá combater fraudes pontuais, mas dificilmente corrigirá as mazelas do sistema político.

Contrariamente, é de se indagar se a Justiça Eleitoral possui tal capacidade. Como se verá adiante, a ausência de um quadro de magistratura própria, e a limitação da atuação judicial basicamente ao período conhecido como "processo eleitoral", diminui o potencial de atuação combativa às fraudes neste nível decisório. Talvez tamanha expectativa depositada no ativismo judicial corretivo e substitutivo das normas vigentes, seja demasiado injusta de se exigir de magistrados que, em muitos casos, nunca exerceram a jurisdição eleitoral e que não podem abandonar o posto de onde exercem suas funções judicantes nas comarcas de origem.

Se tais magistrados tornam-se reféns da indisponibilidade de tempo para a lide eleitoral com dedicação exclusiva e provavelmente também de um limitado conhecimento teórico sobre o Direito Eleitoral, cabe indagar se estariam devidamente instruídos e suficientemente instrumentalizados para o enfrentamento das "novas fraudes eleitorais", a exemplo daquelas acima referidas.

De tal sorte que é injusto imputar ao sistema representativo partidário a responsabilidade exclusiva dos problemas evidenciados na democracia brasileira. Também o Direito Eleitoral e a Justiça Eleitoral contribuem para as críticas merecidas do déficit de legitimidade do modelo representativo.

Em verdade, os indícios são claros no sentido de que Judiciário, Parlamento e Executivo se confundem no imaginário popular, como se parceiros fossem de uma aristocracia instalada. Depois, muito distante da realidade prática do eleitor estão os

300 TOFFOLI, Dias. Breves considerações sobre a fraude ao direito eleitoral. Revista Brasileira de Direito Eleitoral, Belo Horizonte, v. 1, p. 55, 2009.

eventuais efeitos combativos do judiciário às fraudes eleitorais denunciadas por Toffoli. No imaginário popular, de onde todo o poder político emana, esse núcleo de poder equivaleria à uma aristocracia moderna. E esta aristocracia seria dotada de uma espécie de "consciência" de si mesma, beneficiando-se do fato de que, "em sociedades de indivíduos soltos, livres para fazer de si o que quiserem, e de ligar-se a quem quiser, construir, mudar e destruir movimentos circulares ascendentes e descendentes, onde tudo se confunde"301, como diz Zagrebelsky

Essa aristocracia - a moderna oligarquia de círculos de influência ('i giri') - segundo Zagrebelsky, promove constante "trocas de proteção e favores, por fidelidade e servilismo", de "dinheiro fácil e emprego, carreira e promoção, imunidade e privilégio" e da troca de "voto ('o voto da troca'), a organização de centenas ou milhares de votos que se controlam por regiões de corporações, de corrupção, [e] de criminalidade"302.

Prova de como a crise política também atinge o Poder Judiciário Eleitoral se invoca ao lembrar das principais manchetes dos jornais, blog's, sites políticos, e artigos de comentaristas políticos com o julgamento que arquivou o processo contra a chapa Dilma-Temer.

A desconfiança com o sistema político potencializada na democracia deliberativa não se limita, portanto, ao parlamento. Atinge toda a estrutura administrativa do sistema político, daí a razão para ser tão criticada por Zagrebelsky: "L'asettico 'giro' in realtà è una cloaca e questo à il material"303

3.2 O Princípio da Temporalidade Eletiva, suas Limitações e Inadequações