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2 A EXPERIÊNCIA EVOLUTIVA DA DEMOCRACIA: CULTURA POLÍTICA E

2.3 A Evolução da Experiência Democrática e os Modelos de Democracia ao

2.3.10 Democracia Deliberativa

A ideia de democracia deliberativa teve o mérito de distensionar a polarização do debate ideológico estabelecido nas últimas décadas no campo da ciência e sociologia política149. Ao recolocar a racionalidade ou esclarecimento da vontade para legitimar as políticas e decisões adotadas no âmbito do processo político, se opera a inclusão do indivíduo e sua moralidade no epicentro do conceito de democracia.

A questão que se coloca, a partir de então, passa a ser: a decisão adotada é um mero agregado de preferências individuais, ou parte de um sério processo público de debate e deliberação?150 Para a democracia deliberativa, existe uma relação de reciprocidade a exigir dos indivíduos a adoção de uma perspectiva múltipla de consideração, capaz de refinar e permitir a reflexão sobre a decisão a tomar ou tomada151.

O pioneirismo do pensamento deliberativo resulta de dilemas pluralistas, ao estilo do realismo pessimista de Schumpeter, que descreve a apatia ou falta de interesse do público em assuntos de natureza política e decisória já que do debate mal informado, carente de informações e alternativas precisas e bem fundamentadas, e da desconexão dos indivíduos com o processo decisório surgiria o

147 Leia-se HELD, David. Models of democracy. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 214-216.

148 GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy is different. Social Philosophy and Policy, [S.l.], v. 17, n. 1, p. 161-180, 2000; DRYZEK, John S.; LIST, Christian. Social choice theory

and deliberative democracy: a reconciliation. British Journal of Political Science, [S.l.], v. 33, n. 1, p. 1-28, 2003; DRYZEK, John S. Deliberative democracy and beyond: Liberals, critics, contestations. London: Oxford University Press on Demand, 2000; BOHMAN, James; RICHARDSON, Henry S. Liberalism, deliberative democracy, and “reasons that all can accept. Journal of Political Philosophy, [S.l.], v. 17, n. 3, p. 253-274, 2009; WARREN, Mark E. Deliberative democracy and authority.

American Political Science Review, [S.l.], v. 90, n. 1, p. 46-60, 1996; GUTMANN, Amy; THOMPSON,

Dennis. Democracy and disagreement. Cambridge: Harvard University Press, 1998.

149 Amy Gutmann e Thompson propõem que a democracia deliberativa seja uma teoria democrática

procedural-substantiva. Divididas em duas classes, as teorias solucionam problemas morais que são a base da filosofia política de ideologias como a utilitária, a libertária, a liberal-igualitária e a comunitária. Cada uma propõe uma solução moral que, uma vez aplicada, invalida as demais. As teorias procedurais, de sua parte, não levam em consideração a solução moral aplicada. Para os autores, a democracia deliberativa é a única que promove uma solução procedural substancialista: “deliberative democracy precisely meets this need: it is a second-order theory with substantive principles”. GUTMANN; THOMPSON, op. cit., p. 167.

150 É parte fundamental na teoria da democracia deliberativa a noção de escolha pública. Vide.

DRYZEK; LIST, op. cit., p. 1-28.

quadro de baixa reciprocidade e responsabilidade152.

Em tal contexto o indivíduo optaria por soluções simplificadas e deixaria de se guiar por critérios de racionalidade política, algo que a deliberatividade apenas é incapaz de suscitar nele153. Assim, o indivíduo se tornaria fragilizado diante da uma burocratização e concentração de informações a serviço de técnicas habilidosas de convencimento, produzidas por elites partidárias, grupos de pressão e veículos de massa.

A democracia deliberativa coloca o foco, dessa forma, a qualidade das decisões políticas e, neste cenário, os aspectos culturais da formação do nível de racionalidade e esclarecimento da sociedade adquirem relevo. Daí porque a ideia de democracia participatória é vista no modelo deliberativo com muito ceticismo, justamente pelo efeito legitimatório (procedimental e acrítico) de uma decisão cuja qualidade e autoconhecimento é certamente questionável.

É bem verdade que o processo deliberativo, por si só, é incapaz de assegurar a melhoria da qualidade decisória154. Tal fato, no entanto, não diminui em nada o vigor teórico da democracia deliberativa. Com efeito, a deliberação não se volta a aperfeiçoar o procedimento democrático, mas a melhoria da qualidade da comunicação resultante desse processo e, por decorrência, o incremento da racionalidade decisória.

Held afirma que duas correntes surgiram a partir do advento das teorias deliberativas155. De um lado, um grupo de teóricos que ele denomina imparcialistas156, tomariam como ponto de partida para a validez da argumentação,

um certo padrão moral de ponto de vista, um grau elevado de argumentação estandardizada, do qual ninguém possa colocar-se posicionado.

Seria a racionalidade fundada em padrões universalizáveis que podem ser compartilhados, socorrendo-se de critérios intersubjetivos e acordos semânticos

152 O'DONNELL, Guillermo. Horizontal accountability and new polyarchies. Lua Nova: Revista de Cultura e

Política, São Paulo, v. 44, p. 27-54, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102- 64451998000200003&script=sci_arttext&tlng=es>. Acesso em: 6 out. 2017.

153 Bohman trabalha com profundidade a esfera da discursividade, ao abordar a noção de que a

democracia deliberativa pretende promover “razões com as quais todos podem aceitar”, não no sentido de concordância, acatamento, aceitação, mas no sentido da imparcialidade, âmbito das concepções de justificação, legitimação, civilidade e autoridade. BOHMAN, James; RICHARDSON, Henry S. Liberalism, deliberative democracy, and “reasons that all can accept”.

Journal of Political Philosophy, [S.l.], v. 17, n. 3, p. 253, 2009. 154 Ibid., p. 264.

155 HELD, David. Models of democracy. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 239 e ss. 156 Seriam John Rawls, Habermas e Brian Barry.

para a dissolução de eventuais divergências. Os imparcialistas, no entanto, enfrentam a oposição crítica de importantes teóricos157.

Eles refletem em grande medida a extensão dos padrões céticos e realistas para o plano do debate, afinal a deliberação ocorre também num ambiente não ideal, onde os indivíduos não estão necessariamente engajados em promover o consenso e o acordo sobre as bases racionais de seu posicionamento, muito menos das questões de princípio que secundam suas decisões.

Para os críticos158, o imparcialismo pressupõe uma fictícia visão altruísta do debatedor, bem como um tipo de absolutismo moral. E apontam: na verdade, o debatedor não deve procurar argumentos de moralidade universal, ou consensos intersubjetivos, mas alegações capazes de minimizar a rejeição da posição ao qual ele se opõe.

2.4 A Democracia Deliberativa e a Autodeterminação Política em Tempos de