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A relação entre o luto e a ocupação humana

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA

2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

2.1.5 A relação entre o luto e a ocupação humana

A perda de um ente querido e o processo de luto têm repercussões e

impactos diretos na vida de uma pessoa, especialmente nas ocupações humanas,

uma vez que influenciam a maneira da pessoa relacionar-se consigo mesmo e com

o mundo. As ocupações são compreendidas como atividades que têm um

significado e propósito único na vida de uma pessoa, sendo fundamentais para a

sua identidade e competência e influenciando o modo como se gasta tempo e se

toma decisões (AMERICAN OCCUPATIONAL THERAPY ASSOCIATION, 2014;

2015; HOPPES, 2005). As ocupações ocorrem ao longo do tempo; têm um

propósito, significado e utilidade percebidos pela pessoa; e podem ser observadas

por outras pessoas (por exemplo, preparar uma refeição) ou serem percebidas

apenas pela pessoa em questão (por exemplo, a aprendizagem por meio da leitura

de um livro). As ocupações podem envolver a execução de múltiplas atividades para

sua conclusão e podem resultar em vários efeitos. As ocupações configuram-se

como os vários tipos de atividades cotidianas nas quais indivíduos, grupos ou

populações se envolvem (AMERICAN OCCUPATIONAL THERAPY ASSOCIATION,

2014; 2015).

A perda de um ente querido e o processo de luto influencia diretamente o

modo de uma pessoa agir, pensar e estar no mundo, especialmente na capacidade

para participar de ocupações cotidianas. São consideradas ocupações humanas as

atividades de vida diária, atividades instrumentais de vida diária, descanso e sono,

educação, trabalho, brincar, lazer e participação social (AMERICAN

OCCUPATIONAL THERAPY ASSOCIATION, 2014; 2015).

Por outro lado, ao envolver-se em ocupações, uma pessoa pode ficar mais

saudável física, emocional e cognitivamente (MOHR, 2011). Deste modo, o uso de

ocupações, de forma adequada e terapêutica, pode ajudar as pessoas no processo

de enfrentamento do luto.

Hoppes (2005) identificou quatro fases que descrevem como terapeutas

ocupacionais podem ajudar as pessoas no processo de enfrentamento da perda e

do luto, a partir do uso terapêutico da ocupação humana.

A primeira fase é de manutenção das atividades as quais o enlutado exercia

antes da perda. A manutenção de ocupações nessa etapa tem finalidade

terapêutica, em função de a pessoa permanecer ativa, trazendo benefícios na

gestão do estresse. Engajar-se em ocupações pode manter a pessoa enlutada

conectada ao mundo e preencher o dia com senso de normalidade (HOPPES,

2005). Ocupações que poderiam ser prescritas estão relacionadas a sair para comer

com amigos e familiares, manter as tarefas domésticas ou participar de eventos na

comunidade. É importante que a família possa continuar realizando atividades

conjuntas como, jantar juntos, assistir TV, realizar passeios e outras (MOHR, 2011).

A segunda fase proposta por Hoppes (2005) é chamada de dissolução

ocupacional, que ocorre quando o choque pela perda desaparece e a pessoa

começa a reconhecer que a perda aconteceu. Nesta fase, as ocupações podem

começar a perder significado e/ou serem esquecidas ou perdidas. Quando ocorre

uma perda, as pessoas podem esquecer suas ocupações atuais que lhes deram o

sentido da vida e apenas assistir à crise. Para Mohr (2011), durante esta fase, é

muito importante para os terapeutas ocupacionais orientar os enlutados a manterem-

se ativos em ocupações significativas e com propósito. Um exemplo é orientar o

enlutado na gestão do tempo, no sentido de reduzir o estresse e a ansiedade, a fim

de encontrar tempo para se envolver em ocupações significativas, como pescar com

os amigos ou a participar de um jantar em família.

Nesse momento, há uma dificuldade intensa no resgaste de ocupações que

deram significado à vida, sendo comum a fixação nas repercussões negativas

advindas da perda. Quando uma pessoa começa a encontrar significado e propósito

em ocupações que já realizava antes da perda, ou investir em novas ocupações,

observa-se a ambivalência ocupacional, a terceira etapa proposta por Hoppes

(2005) e Mohr (2011). A ambivalência ocupacional é quando ocupações que a

pessoa já tinha encontrado significado e propósito antes da perda gradualmente

retornam à vida da pessoa (HOPPES, 2005). Este autor descreve esta fase como

descobrir "projetos de sentido à vida”, retornando para ocupações com significado e

propósito (HOPPES, 2005). Nesta etapa, é importante, para terapeutas

ocupacionais, investigar com os enlutados e descobrir ocupações que tiveram

significado relevante antes da perda. No entanto ao resgatar seus projeto de vida e

retomar ocupações significativas, o enlutado pode expressar culpa por estar

conseguindo viver sem a pessoa falecida.

A última fase proposta por Hoppes (2005) é a restauração e adaptação das

atividades, ou seja, é quando a ocupação volta à vida da pessoa. A retomada e o

engajamento às ocupações podem ter sido modificados em decorrência da perda.

Para Mohr (2011), durante essa fase, é importante para o terapeuta ocupacional

entender como a perda afetou o enlutado, a fim de prescrever as ocupações

apropriadas, pois certas ocupações podem ter mudado seu grau de importância ou

perderam completamente a importância. É imperativo ao terapeuta ocupacional

examinar a história de vida do enlutado, a fim de determinar o que e como as

ocupações podem ter se modificado devido à perda. Ao envolver-se continuamente

em ocupações significativas, o enlutado tende a perceber a importância que as

mesmas têm sobre o seu estado emocional e social. Não se trata de esquecer a

pessoa, mas perceber que a vida precisa continuar. Isso só pode ser realizado por

meio da restauração e do engajamento em ocupações, que darão sentido e

significados à vida da pessoa enlutada (MOHR, 2011).

Uma análise crítica a esta abordagem teórica permite questionar o raciocínio

sobre o engajamento em ocupações significativas de pessoas enlutadas, segundo

um modelo de fases ou etapas. Mediante a perda de um ente querido, é saudável a

retomada das ocupações, compreendendo a necessidade de manutenção das

atividades cotidianas, a dissolução, a ambivalência ocupacional e a necessidade de

restauração e adaptação das ocupações, de forma concomitante e constante, uma

vez que o processo de luto é multifatorial, individual e pode permanecer por tempo

indeterminado.

É importante também destacar que o processo de enfrentamento da perda e

do luto pode também gerar alienação, desequilíbrio e disfunção ocupacional.

Entende-se por alienação ocupacional, a sensação de que as atividades do

indivíduo não são significativas e satisfatórias, tipicamente associadas com

sentimentos de falta de força para alterar a situação. O desequilíbrio ocupacional é

compreendido como a falta de variedade na ocupação, foco excessivo em

determinada ocupação, em detrimentos de outras, enquanto a disfunção

ocupacional refere-se à inabilidade temporária ou crônica para engajar, de forma

competente, os papéis e as ocupações necessárias na vida cotidiana (HAGEDORN,

2003). É frequente observar, frente à perda de um ente querido, a diminuição de

motivação e interesse pelas atividades cotidianas, havendo inclusive inabilidade no

exercício de papeis ocupacionais como de pais, provedores do lar, trabalhador,

dentre outras, com envolvimento e engajamento excessivo do enlutado em

atividades e ocupações relacionadas ao ente querido falecido.