2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA
2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA
2.1.6 Ciberespaço: um lócus para a expressão do luto
A escassez de produção científica sobre o tema limitou a realização de
revisão sistemática sobre o tema. A seguir, seguem dados de revisão narrativa
sobre a expressão do luto no ciberespaço.
Sade-Beck (2004), em estudo realizado em Israel, pesquisou sobre a
possibilidade de a internet se caracterizar como forma de expressão de dor, de
emoções como tristeza e luto em um ambiente virtual. Trata-se de um estudo
essencialmente etnográfico, que ocorreu por meio e na Internet, analisando os sites
de Israel, em especial, comunidades virtuais de apoio ao luto. A importância do
estudo reside na sua contribuição para uma compreensão mais profunda do
ciberespaço como campo de pesquisa. Além disso, pretendeu buscar compreender
como as emoções são expressas na comunicação on-line, bem como obter melhor
compreensão da cultura de luto e memoriais na sociedade israelense. Dentre as
contribuições desta pesquisa para a ciência, destacam-se a possibilidade de a
internet ser reconhecida como um meio de influência social, constituindo-se como
um novo campo antropológico; e a conclusão de que a Internet é uma nova
ferramenta para a expressão direta das emoções, sendo acessível em tempo real.
No entanto, a internet difere-se da comunicação face a face em sociedade. Por ser
expressa em meio escrito, cumprindo a função da fala, a internet pode admitir uma
interação que nega a maioria dos meios de identificação. Assim, o usuário pode
ocultar sua identidade, facilitando a maior liberdade de expressão; a Internet atua
como um instrumento pelo qual se pode receber apoio emocional, por meio de e-
mail, conversa com um terapeuta de discussão, ou grupo de apoio, ou por meio de
sites cujo objetivo declarado seja o de prestar essa assistência. O autor destaca
ainda a comunicação interpessoal possível nas comunidades virtuais israelenses,
em que o principal objetivo é apoio para enlutados, conduzindo para a maior
compreensão do fenômeno da Internet como um meio de obter suporte emocional,
nas questões sociais e culturais ao lidar com o luto. Finalmente, o autor acredita
que a Internet tem implicações para a sociedade israelense em diversas áreas, e
que o estudo contribuiu para a questão de saber se e como a Internet tem interferido
na cultura local em relação ao luto e cerimoniais de despedida. Peruzo et al. (2007),
em um estudo que examina como o luto é expresso por jovens na Internet, mais
especificamente no site de relacionamentos Orkut, discutem a importância do
espaço virtual nas relações de luto e perda, na tentativa de compreender as
peculiaridades dessa comunicação e como o adolescente e adulto jovem vivenciam
o processo de luto. O resultado deste estudo aponta que, de fato, a Internet possui
papel importante na elaboração do luto por esses jovens, embora não tenha ficado
explícito se essa estratégia de elaboração é positiva ou negativa para eles. Essa
última afirmação consiste na ideia implícita de que cada pessoa é única e vive seus
contextos de forma bastante particular, não sendo possível generalizar que a
Internet seja eficiente ou não para a superação do luto. Outro ponto, talvez o mais
instigante desse trabalho, foi à presença, evidenciada nos relatos analisados, de
comunicação do usuário da rede social diretamente com a pessoa falecida. Para as
autoras, este trabalho permitiu evidenciar a relevância que as redes virtuais exercem
nas relações interpessoais. Verificou-se que há grande riqueza e diversidade de
sentimentos expressos por meio delas, além de uma transformação de limites
evidente, o que permite aos seus usuários tratarem de assuntos muito particulares.
Isso demonstra o fato de que as redes virtuais podem se constituir como um campo
de estudos importante, principalmente por permitirem a manifestação de temas
considerados tabus, que dificilmente são tratados abertamente, como por exemplo, a
morte e o morrer.
Silvestre e Aguilera (2008) apontam que a internet tem sido uma expansão do
espaço offline e que questões concernentes à vida e morte material migraram para
dentro do mundo online em busca de ressignificações, com usuários buscando
expressar um sentimento de luto, em sistemas que não ressignificam a morte. Para
estes autores, a construção da Internet não previu essas questões, bem como a
morte de seus usuários. E as soluções perpetradas estão associadas ao próprio
processo pelo qual o “entendimento de morte” perpassa a estrutura social atual.
Mueller e Holthausen (2013) propõe o estudo das representações da morte na
cibercultura, por meio do desafio de pensar “como as novas tecnologias podem estar
transformando nossa percepção e nossas estratégias afetivas em lidar com a morte
do outro”.
Para Silvestre e Aguilera (2008), no ciberespaço, as manifestações de luto se
transportam do real para os espaços virtuais, tentando ajustar seus rituais
mortuários do mundo offline para o online. Os ritos fúnebres permanecem arraigados
à cultura humana e participam do desatar de vínculos e do enfrentamento da
angústia que a consciência da finitude humana gera. Rituais emprestam formas
convencionais para organizar certos aspectos da vida social, celebrando nossa
solidariedade, partilhando sentimentos e emprestando sensações de coesão social.
Para estes autores, a morte sempre suscitou emoções que se socializaram em
práticas fúnebres, uma série de cerimônias, incluindo aí o funeral, no qual a
sociedade oficializa e ritualiza a despedida do falecido. A angústia que a consciência
da finitude tem provocado no ser humano ao longo dos tempos é tão intensa que,
para quem fica, via de regra, a aceitação da morte é um processo penoso,
especialmente na cultura ocidental.
É comum observarmos, nas comunidades virtuais, recados direcionados à
pessoa do falecido, como se conversassem com ele. Há também recados dirigidos
aos familiares da pessoa falecida. Silvestre e Aguilera (2008) destacam algo mais
curioso, quando muitas vezes, não há mudança do tipo de registro em recados
póstumos, escritos na mesma linguagem (e com a mesma ortografia peculiar) de
recados quando a pessoa estava viva. Algumas mensagens, em perfis mais antigos,
parecem se engajar em uma conversa, contando novidades e trivialidades. A
comunicação direcionada ao falecido (e não, como em outros ritos mortuários, aos
que lhe sobrevivem) chega, às vezes, aos extremos. No perfil do Orkut de uma
jovem falecida aos 14 anos, amigos usaram postumamente o aplicativo
“Buddypoke”, em que ações entre os donos dos perfis são encenadas por bonecos
que os representam – um resquício da era dos avatares. Duas amigas abraçaram a
falecida (vê-se a animação de dois bonecos, com as características da falecida e da
amiga, se abraçando); um usou a opção “reclamar com”, em que seu avatar se
mostra chorando para um avatar constrangido da falecida; um preferiu,
surpreendentemente, a ação de cutucá-la (SILVESTRE; AGUILERA, 2008).
Dos perfis que são editados nestes espaços virtuais, a maioria anuncia
abertamente quem é o editor e suas intenções ao fazê-lo. Em alguns exemplos,
contudo, a edição se dá na primeira pessoa, como se o próprio falecido estivesse
atualizando o perfil do além-mundo (SILVESTRE; AGUILERA, 2008).
Um achado interessante da pesquisa, pelos autores citados acima, é que
muitos destes perfis recebem recados com propagandas, que não são apagados (e
muitas destas propagandas emulam a forma de mensagens pessoais legítimas);
manifestações de pesar em um diálogo direcionado ao falecido são entremeadas por
anúncios de produtos. Isto é, na verdade, uma tensão constante nestes perfis:
tratados como vivos pelos sistemas, suas datas de aniversário são indicadas com
recomendações para presentes, o perfil continua ocupando o mesmo espaço que os
dos vivos, sem nenhuma demarcação de um território dedicado ao repouso dos
mortos e suas memórias. O luto, similarmente, não assume a forma da despedida
derradeira, mas encena a vida continuada do falecido. Os mortos parecem continuar
entre nós; e se atribuirmos uma carga subjetiva aos perfis em redes sociais – como
muitos jovens destes exemplos claramente fazem – acabamos por viver em um
mundo de fantasmas.
Um estudo realizado por Graves (2009) analisou a eficácia do uso de sites de
redes sociais, neste caso o MySpace.com, para ajudar os indivíduos no
enfrentamento do luto, a partir de um questionário respondido por 106 estudantes
universitários que tinham experimentado a morte de um amigo ou um ente querido e
também tinham ciência de que a pessoa falecida tinha um perfil pessoal no
MySpace, perfil memorial, ou ambos. Após a aplicação do questionário, os
participantes respondiam o Hogan Grief Reaction Checklist, um instrumento de
medida de adaptação ao luto, e respondiam as perguntas sobre as atividades
deenvolvidas que intensificavam ou prolongavam para a tristeza, como funerais e
atividades on-line (Bereaved Questionário de Atividades, revista). Os resultados
deste estudo indicaram que, embora os participantes pensassem que suas
atividades online foram úteis, atribuindo muitos resultados positivos para expressar a
sua tristeza em sites de redes sociais, não houve relação entre o uso dos sites e o
ajustamento tristeza. Segundo o autor, pareceu que a amostra não estava em
grande aflição e tinha, em muitos aspectos, já se ajustado ao luto. Sugere que mais
pesquisas sejam realizadas a fim de se investigar em que medida o uso sites de
relacionamento sociais pode ser útil para indivíduos em situação de luto.
Negrini (2010) propõe a reflexão sobre tratamento da morte na comunidade
do Orkut “Profiles de Gente Morta”, investigando perfis de pessoas mortas em
situações trágicas e inesperadas, a partir de um estudo etnográfico na comunidade
virtual. Para este autor, a comunidade do Orkut “Profiles de Gente Morta” era, sem
dúvida, um espaço bastante interessante no ciberespaço. Ali as pessoas têm
oportunidade de manifestar o que pensam sobre a morte, um tema interditado nas
sociedades ocidentais atuais. Nesse espaço virtual, o público tem autonomia para
fazer as discussões que o mundo offline considera proibida e as interdita do
cotidiano. Assim, a comunidade acaba sendo um espaço legitimado para que o ser
humano possa expor tudo o que pensa sobre a morte sem ter medo de sofrer
restrições da sociedade e da cultura. Quanto às discussões observadas neste
estudo, é curioso que, muitas vezes, algumas postagens se restringem a simples
desejo de descanso eterno ao falecido, o que demonstra que a pessoa entrou na
comunidade para saber mais sobre a morte, para conhecer quem está à beira da
morte e como morreu. Isso evidencia que “a morte do outro” causa uma espécie de
fascínio no ser humano.
A comunidade “Profiles de Gente Morta” teve um funcionamento bastante
interessante para quem quer discutir a presença da morte no cotidiano e sente a
interdição do tema no mundo offline. Perfis do Orkut de pessoas que morreram
foram ressaltados e outras pessoas tiveram a oportunidade de escrever o que
quiserem sobre o caso. Assim, os participantes puderam visitar o perfil do morto,
saber como ele vivia, conhecer seus hábitos e como morreu; enfim: se integrar com
a morte e com informações sobre quem realmente foi essa pessoa. Após plena
integração com a perspectiva da morte, as pessoas que estão passando pela
comunidade podiam discutir o caso e dar suas impressões sem serem tolhidas pela
sociedade, pois estavam cercadas por outras pessoas que também contemplavam o
tema (NEGRINI, 2010).
Gurgel et al. (2011) analisaram o processo de luto a partir da utilização do
mundo virtual para manifestação do emocional. Os autores deste estudo se
propuseram, a saber, quais as manifestações de luto presentes nesse espaço, de
acordo o método do esquematismo kantiano, utilizando como material os casos
expostos em sites da internet. O referido estudo compreendeu que o mundo virtual
tem se tornado um espaço de demanda espontânea e privilegiado a manifestação
do luto, o que entra em contraste com os hábitos cotidianos nos quais a
manifestação do luto é cada vez mais relegada ao privado, rápido e superficial.
Verificou-se, nos tipos de mensagens colocadas nesses sites, a interação existente
entre internautas, bem como o sentido e o significado das suas falas com relação à
elaboração do processo de luto, concluindo que não se trata de uma nova forma de
luto, mas de um novo espaço no qual o luto passa a ser publicizado, típico das
sociedades contemporâneas.
Bousso et al. (2014a) realizaram um estudo na rede social Facebook com o
objetivo de explorar sua utilização pelos enlutados devido à morte de um ente
querido e analisar o compartilhamento de conteúdos no perfil do falecido,
postumamente mediada por esta plataforma. A partir de abordagem qualitativa,
foram analisados 195 comentários postados postumamente no perfil do falecido
durante o primeiro mês da morte dele. Foi possível identificar categorias temáticas
como comunicações com o falecido, sentimentos, emoções, indicadores de
estratégias de enfrentamento do luto, crenças religiosas e homenagens. Para os
autores, a rede social virtual, neste caso, impulsionou a manifestação de
sentimentos usualmente retraídos e permitiu a interação social de temas dificilmente
tratados abertamente, favorecendo a elaboração do luto de pacientes, familiares e
profissionais que enfrentam o processo de morte/morrer e luto. Os autores
concluem que este estudo permitiu afirmar que os sites de redes sociais online
podem facilitar o enfrentamento do luto, não só como um espaço de expressão com
liberdade de discurso e possibilidade de suporte social, mas também por oferecer a
oportunidade de interações que ajudam a refletir sobre sua relação com o falecido e
suas próprias emoções. Assim, abre-se a possibilidade para ajudar os profissionais
na aproximação das famílias e na compreensão dos significados que envolvem o
processo de elaboração do luto desses familiares, dos pacientes e mesmo dos
profissionais. Verificou-se que há diversidade de sentimentos expressos por meio
das redes sociais, além de evidente transformação de limites, o que permite aos
seus usuários tratarem de assuntos até então privados. Isso demonstra o fato de
que as redes virtuais podem se constituir como um campo de estudos importante,
principalmente por permitir a manifestação de temas considerados tabus, tais como
a morte e o morrer, que dificilmente são tratados abertamente.
No artigo “Uma nova forma de luto: os efeitos da revolução tecnológica”,
Bousso et al. (2014b) descreveram uma série de fatores do mundo digital e do
impacto nas questões que envolvem a morte e o luto enquanto um “espaço” que
permite o suporte social, a expressão de sentimentos relacionados à perda e à
conexão do enlutado ao falecido. Apontam para a questão de que, cada vez mais,
os provedores de serviços de internet precisarão se atentar às consequências e aos
riscos relacionados à manifestação do luto na internet e à proteção dos direitos dos
falecidos. Em vista disso, é necessário compreender que a ética exigida no ambiente
offline deve ser mantida nas relações sociais existentes no mundo online. Os
autores concluem que a tecnologia tem se mostrado um recurso importante para
conectar pessoas e permitir que o enlutado sintam-se menos solitários, tendo seu
luto reconhecido e normalizado. Mas, ao mesmo tempo em que legitima o luto e o
enlutado, para algumas pessoas, expressar o luto em um ambiente público virtual
também pode representar a banalização de particularidades da morte, minimizando
a importância dos sentimentos envolvidos no próprio luto. Uma nova forma de luto é
viabilizada pela tecnologia que se manifesta online com características tão diversas
e subjetivas quanto ocorre no mundo offline, exigindo também os mesmos cuidados.
Isso porque a questão do luto envolve indivíduos vulneráveis e que vivenciam
emoções intensas. O ciberespaço criou recursos que permitem ao enlutado
expressar-se de diversas maneiras, mas que, ao mesmo tempo, provoca diversos
sentimentos intensos e imprevisíveis que são experimentados ao extremo, tais como
tristeza, mágoa, arrependimento, raiva e alegria.
Frente a este cenário é que se busca, neste trabalho, compreender melhor os
efeitos da revolução tecnológica nas manifestações e nas expressões de luto.
Especificamente, a questão norteadora deste estudo é: “Como é a experiência de
mães enlutadas sobre a criação e manutenção de um blog temático relacionado à
perda de um filho?”.
No documento
Blogs de mães enlutadas: o luto e as tecnologias de comunicação
(páginas 59-67)