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O luto na família e a perda de um filho

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA

2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

2.1.4 O luto na família e a perda de um filho

Para a compreensão do luto materno e dos impactos da perda de um filho, é

importante refletir sobre as repercussões da morte na família como um todo.

A literatura sobre o luto na família apresenta abordagens teóricas baseadas

nos sistemas familiares e na terapia familiar, a partir da teoria e da prática dos

sistemas familiares e do trabalho que explora sistemas familiares e de saúde quando

eles influenciam doença crônica e terminal e cuidados de fim de vida (SHAPIRO,

2014).

Segundo Shapiro (2014), na literatura de terapia familiar, as terapias

sistêmicas enfatizam narrativas familiares como construídas em contextos culturais

sociopoliticamente informados. Essas abordagens visualizam a compreensão

familiar da experiência da doença como necessitando de capacitação do

conhecimento de características psicossociais da doença, suporte para a

comunicação familiar, exploração de histórias da família e reconto de histórias para

mudar de narrativa saturada de problemas para narrativas baseadas em pontos

fortes. Um dos trabalhos mais influentes em terapias narrativas é de autoria de

Michael White (2008). As perspectivas transformadoras das Terapias Narrativas é

que elas enfatizam narrativas construídas, como contação de histórias, desempenho

e ritual, baseando-se profundamente em recursos familiares e culturais para a

sabedoria e valorizando o heroísmo de pessoas que lutam para superar estressores

comuns da vida e desafios extraordinários. White (2008) incentivam a

“externalização” de problemas para avaliar seus contextos realistas, e tanto as

atividades narrativas/contação de histórias como as cerimoniais ou ritualizadas,

dentro e foram de terapia, para transformar as narrativas da família coerentes com

os objetivos da mesma. No trabalho “Saying hullo again”, White (2008) ofereceu uma

perspectiva sobre o luto da família normalizando e promovendo a continuação de

uma relação significativa com a pessoa falecida, utilizando-se da teoria de ritual em

antropologia cultural. Nesse trabalho, o autor defende a “lembrança” como um

processo ativo de inclusão, descrevendo um processo rico de exploração de

memórias das relações (SHAPIRO, 2014).

Sob um enfoque construtivista, a Terapia Narrativa tem se destacado tem na

literatura científica e clínica da Terapia de Luto, com ênfase na importância do papel

de reafirmar ou reorganizar o mundo de sentido desestruturado pela perda

(NEIMEYER, 1999). Na perspectiva do construtivismo, o luto é considerado como

um processo de reconstrução de um mundo de significado desafiado e

desestruturado pela perda. A proposta dessa abordagem incentiva pesquisadores e

profissionais a lidarem com o significado de luto, bem como com as repercussões da

perda e lançar luz sobre os esforços dos enlutados para reconstruir suas narrativas

de vida, na sequência da perda, considerando-se que os detalhes íntimos de

histórias de perda das pessoas sugerem um processo complexo de adaptação a

uma nova realidade, um processo que é, ao mesmo tempo, imensamente pessoal,

intrinsecamente relacional e inevitavelmente cultural. Nesse sentido, o foco da

Terapia de Luto é oferecer estratégias ao enlutado que o auxilie a encontrar sentido

na perda, ajudando-o a restabelecer uma autonarrativa coerente, de modo a integrar

a perda e permitindo-lhe, ao mesmo tempo, o avanço de sua história de vida para

alcançar novos rumos e moldes (NEIMEYER, 1999).

O significado da morte e do luto para a família, nas diferentes fases do ciclo

de vida familiar, foi objeto de estudo de Nadeau (1998). Para a autora, os padrões

de interações familiares refletem a busca por um significado às diversas situações

de morte vivenciadas pela família. Tais interações representam o movimento da

família na busca por uma ordem, quando se percebe diante do caos causado pela

morte de um dos membros. A autora define “significado” como representações

cognitivas, mantidas na mente de cada membro da família, mas construída

interativamente dentro da família, ao mesmo tempo em que são influenciadas pela

sociedade, pela cultura e pelo período histórico. A autora apresenta algumas

categorias de significados, como: falta de sentido; morte injusta; significados

filosóficos; existência ou não de vida após a morte; significados religiosos; natureza

da morte; atitude do doente em relação à morte; mudança na família; lições

aprendidas e verdades vividas. Nesse sentido, Nadeau (1998) discorda do uso do

termo “reconstrução” de significado por considerá-lo limitante, uma vez que se refere

a reconstruir algo já existente e por encontrar significados novos nas famílias

(FRANCO, 2009; 2010).

Walsh e McGoldrick (1998) foram pioneiras ao examinarem o impacto da

perda sobre o sistema familiar, em relação à cada passagem, no ciclo de vida das

famílias e a seu contexto cultural. Esse trabalho foi relevante para a compreensão

fundamentada do luto familiar como em um ciclo de vida familiar culturalmente

informado e para a análise dos fatores de resiliência da família que contribuem para

o bem-estar familiar, bem como estressores realistas e sociais que contribuem para

o desenvolvimento de psicopatologias (SHAPIRO, 2014; WALSH; MCGOLDRICK,

1998; WALSH; MCGOLDRICK, 2004).

Walsh e McGoldrick (1998; 2004) propõem que o luto da família pode ser

entendido como uma unidade coesa, funcionante, reconhecendo que as definições

de família como uma unidade irão variar significativamente dentre e entre culturas.

Baseando-se no trabalho de Willian Worden (2013), sobre as tarefas individuais do

luto, as autoras descrevem uma série de tarefas adaptativas críticas para o luto da

família, que são adotadas e podem ser facilitadas por meio da terapia familiar.

Essas tarefas incluem o reconhecimento partilhado da realidade da morte, as

experiências comuns da perda, que começam com rituais no rescaldo e continuam

com a comunicação familiar aberta; a reorganização do sistema familiar para

acomodar os novos papéis, com o realinhamento das relações, para que a família

estabeleça o equilíbrio necessário para prosseguir com as demandas da vida

familiar. Finalmente, as famílias precisam reinvestir em outros relacionamentos e

atividade de vida, incluindo potencial introdução de novos membros. Essas tarefas

se sobrepõem e surgem à luz de seu tempo no ciclo de vida familiar, sua localização

cultural e estressores, tanto históricos como atuais, que acompanham esta

experiência. A adaptação da família à morte de um ente querido será afetada pela

maneira da morte em seu contexto sociopolítico, por organização familiar,

comunicação e processos de significação, e por desafios apresentados pelo

momento da morte no ciclo vital. Essa teoria considera que racismo, pobreza e

outras formas de desigualdade compõem o sofrimento e influenciam as explorações

dos sistemas familiares de justiça social, abordando estes temas nos cuidados de

luto familiares (SHAPIRO, 2014).

Para Carter e McGoldrick (1995), a morte tem um impacto distinto nos

diferentes estágios do ciclo de vida familiar, para os vários membros e para a família,

como unidade funcional (WALSH; MCGOLDRICK, 1998). Diversos fatores

influenciam o impacto de uma morte e a natureza e a duração da resposta da

família. Alguns tipos de morte tendem a complicar a adaptação da família à perda. A

morte repentina requer que os membros tenham tido tempo para antecipar e se

preparar para a perda, e até para dizer adeus. A morte violenta tem um impacto

devastador em todo o sistema familiar. As mortes por acidentes, homicídios e até

mesmo o suicídio podem ser consideradas mortes violentas (BOUSSO, 2006;

WALSH; MCGOLDRICK, 1998).

A perda prematura é a mais difícil de suportar, como se fosse injusto que

alguém morresse antes do tempo. A viuvez no início do casamento e a morte de um

filho são consideradas mortes prematuras. A morte de um filho é a mais trágica de

todas as mortes. É como se o curso de vida estivesse sendo experimentado fora do

tempo previsto (WALSH; MCGOLDRICK, 1998).

Ao assumir o papel de pais, são inúmeras as fantasias e expectativas em

relação aos filhos (BOUSSO, 2006). Frente à morte de um filho, os desejos de vida e

de futuro são interrompidos, havendo a necessidade de reestruturação não somente

de si, mas de todo o entorno familiar. A sensação real de perda de parte de si, bem

como o confronto com a finitude em fases precoces da vida, são situações de

grande conflito interior. O luto da perda de um filho é muito difícil de ser superado

(LIMA E SOUZA et al., 2009).

Para os pais, que cultivam planos e idealizações em relação aos filhos, a

morte de um filho é um acontecimento indescritível. É como se, de repente, todos

esses sonhos simplesmente desaparecessem. Manifestações como “o que será das

nossas vidas sem ele ou ela” ou “nada mais terá sentido nas nossas vidas”, dão uma

dimensão dessa perda avassaladora, segundo Carvalho e Azevedo (2009). Para

estes autores, além do imensurável sofrimento, ocorre nesses pais todo tipo de

sentimento: culpa, impotência, fracasso, raiva e punição.

Nesse sentido, Walsh e McGoldrick (1998) apresentam tarefas adaptativas

que envolvem o reconhecimento compartilhado da realidade da morte e que

precisam ser promovidas junto à família, quando esta se encontra bloqueada no

prosseguimento da vida, na reorganização do sistema familiar e reinvestimento em

outras relações e projetos de vida. As autoras alertam para uma série de variáveis

críticas que podem afetar adversamente os processos de luto das famílias e estão

relacionadas à forma da morte, ao funcionamento da rede familiar e social, ao

momento da perda no ciclo de vida e ao contexto sociocultural (BOUSSO, 2006).

Para Bousso (2006), a busca por um significado sempre ocorre nas situações

de doença e morte. A família está perplexa, cheia de perguntas existenciais acerca

das razões por que está passando por sofrimento. A habilidade de encontrar

significado e dar sentido às suas vidas é fundamental para compreendermos o

processo da família na tomada de decisão. O conhecimento dos significados

atribuídos pela família às suas experiências permite-nos definir conceitos, fortalecer

teorias, aperfeiçoar métodos de pesquisa com família, ajudando os profissionais a

intervirem efetivamente, respeitando as subjetividades das famílias diante das

situações de perda, luto e tomada de decisão.

Em relação ao luto materno, um estudo realizado por Freitas e Michel (2014)

identificou diferentes temáticas em relatos de mães em relação às vivências

pessoais, a saber: dor; perda de um modo de existir; espiritualidade; culpa; perda do

sentido do mundo-da-vida; vontade de morrer; fragmentação dos laços afetivos;

engajamento em projetos relacionados ao filho; perpetuação da memória do filho;

estreitamento de laços com pessoas significativas para o morto. Os resultados

obtidos na pesquisa, segundo os autores, indicam que, embora o luto se modifique

ao longo do tempo, a perda de um filho jamais é superada, sendo este sofrimento

compreendido não mais como uma condição patológica, mas como especificidades

a serem compreendidas.

Para Freitas e Michel (2014), a experiência da mãe em processo de luto deve

ser respeitada de tal forma que esta possa agir diante da perda do filho

contemplando as próprias limitações e necessidades, independentemente das

cobranças e exigências sociais que possam sobrevir a elas. No decorrer do luto

materno, é possível que as mães tenham experiências de perda de sentido e

vontade de morrer, por exemplo, sem que tais vivências impliquem em um luto

patológico. Essas possibilidades devem ser compreendidas e aceitas, pois estão

relacionadas à nova realidade vivida quando da perda de um filho. A grande dor que

uma mãe sofre ao perder um filho também deve ser destacada, especialmente em

nosso contexto social de sobrevalorização do papel da mãe associado à discrição na

expressão das emoções. Essa é uma experiência jamais superada, embora tenda a

se modificar com o passar dos anos, à medida que a mãe encontra meios e modos

para lidar com a ausência do filho. Estes modos estão vinculados a rituais, novos

projetos e novas significações vividas que devem ser reconstruídos na direção do

fortalecimento dos vínculos familiares e sociais, uma vez que o luto não é um

fenômeno individual, mas um fenômeno vivido relacionalmente. A relação eu-tu,

vivida antes como intercorporeidade, tende a passar por uma mudança de

atualização, com ressignificação do filho e, especialmente de si mesma, ao se

considerar e aceitar vivencialmente os impedimentos que a morte do outro

apresenta. Percebeu-se que este novo modo de ser permite às mães uma

continuidade da relação com o filho perdido e ocorre de variados modos, a depender

de cada cultura, estrutura familiar e pessoalidade. A configuração de tal

ressignificação é sempre muito singular e acontece em momentos distintos para

cada mãe. Ainda assim, os autores apontam a vivência da espiritualidade, o

engajamento em projetos relacionados ao filho e o estreitamento de laços com

pessoas significativas para este, como constituintes possíveis de uma reestruturação

da relação mãe-filho e que outros elementos constituintes da vivência de luto

merecem ser mais estudados, como é o caso da culpa e do desejo de perpetuação

da memória do filho, pelo caráter de mobilização de outros aspectos da vida da mãe

enlutada que apresentam. Este cenário aponta para a delicadeza e o cuidado

necessário para com o tema “luto materno” – às vezes, negligenciado e

estigmatizado tanto pela sociedade como pelos profissionais e serviços, indicando a

necessidade de estudos que aprofundem o tema, especialmente no que diz respeito

à prática de comportamento do luto de mães no ciberespaço, como observado

frequentemente pelos estudiosos na área do luto (FREITAS; MICHEL, 2014).