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A relação entre os saberes de referência e os saberes escolares

CAPÍTULO 2 AS DIMENSÕES IMPLICADAS NA SITUAÇÃO DIDÁTICA:

2.1 A CONSTITUIÇÃO DOS SABERES ESCOLARES

2.1.3 A relação entre os saberes de referência e os saberes escolares

Como já mencionado, o fato de Chevallard (1991[1985]) fazer menção unicamente ao saber teórico desencadeou várias críticas, deu origem a diversas proposições de ampliação da teoria e se mostrou insuficiente, principalmente, quando se passou a tomar o fenômeno da transposição didática fora do campo das Matemáticas.

No entanto, quando se trata de transposição didática, há de se considerar quatro aspectos decisivos, como destaca Raisky (1996):

1. O conceito é originado a partir do trabalho de um sociólogo (VERRET, 1975), que admite que certas práticas sociais podem ser didatizadas se expressas e reguladas por uma disciplina.

2. A passagem do conceito da Sociologia para a Didática foi realizada pelos matemáticos a fim de se revolverem problemas de ensino-aprendizagem no domínio das Matemáticas. Tal introdução, entretanto, segundo Raisky (1996), trouxe uma ambiguidade: tomar o modelo como aquele que permite

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analisar a realidade (acepção de Verret (1975)) ou como prescritivo. Na perspectiva didática, acabou se tonando prescritivo.

3. Partindo da ideia de que somente os saberes constituídos no interior da disciplina podem ser didatizados, como exposto por Verret (1975), Chevallard (1991[1985]) passa a reconhecer somente o saber teórico como didatizável. Mas, apesar de não ter feito referência a outros saberes, não os exclui. Diante disso, com relação ao saber de referência a ser considerado, corroboramos a ideia de Leite (2004, p. 70-71) de que

não somente Chevallard não propõe o saber sábio [teórico] como única referência dos saberes a serem ensinados na escola, como também que o entendimento da exclusividade dessa referência nas suas proposições e a consequente rejeição da sua teoria não é consensual entre os profissionais das didáticas específicas.

4. Outra questão que se levanta no que se refere à transposição didática é: quais saberes podem ser didatizados? Raisky (1996) chega à conclusão de que todo saber, toda prática humana é didatizável.

Quanto aos saberes de referência, Martinand (1986) traz uma contribuição fundamental ao introduzir, ao lado do saber teórico, as práticas sociais de referência, sem, contudo, desmerecer a obra de Yves Chevallard e se caracterizar como uma resposta a essa obra. Para o autor, as práticas sociais de referência são: “atividades objetivas de transformação de um dado natural ou humano (‘prática’)”; “o conjunto de um setor social, e não [os] papéis individuais (‘social’)”. Concernente a isso, ele afirma ainda que “a relação com as atividades didáticas não é de identidade, ela existe somente em termos de comparação (‘referência’)” 58 (MARTINAND, 1986, p. 137).

No que diz respeito à relação entre transposição e práticas de referência, o autor afirma que

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«activités objectives de transformation d’un donné naturel ou humain (‘pratique’)/ (...) l’ensemble d’un secteur social, et non des rôles individuels (‘social’)/la relation avec les activités didactiques n’est pas d’identité, il y a seulement terme de comparaison (‘référence’)» (MARTINAND, 1986, p. 137).

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a problemática da referência não é necessariamente oposta a de transposição didática, não somente porque ela se originou em didática das ciências experimentais e das disciplinas tecnológicas, mas também porque a problemática da transposição didática se desenvolveu em didática das matemáticas. As duas problemáticas podem ser retomadas nas didáticas de outras disciplinas. Elas coexistem59 (MARTINAND, 2003, p. 128).

De acordo com ele, o termo práticas sociais de referência surgiu pela necessidade de se explicitar a significação das escolhas dentro da concepção e da avaliação dos projetos de ensino e permite passar de uma abordagem de transposição restrita (entre saber teórico e saber ensinado) a uma transposição ampliada (entre práticas de referência e saberes escolares).

Quanto à relação entre práticas e saberes, Martinand (2003) esclarece que são as práticas que são ensinadas e não os saberes, uma vez que os saberes apenas as compõem, não podendo ser isolados. Entretanto, para Schneuwly (1995, p. 52-53),

jamais é a prática como tal – da escrita, do desenho, do canto, do cálculo – que se torna objeto de ensino, mas o saber sobre a escrita, o desenho, o canto, o cálculo. Para ser ensinado, um objeto dever ser conhecido, senão necessariamente no sentido de saber cantar, pelo menos no sentido de saber o que é cantar; senão no sentido de escrever, pelo menos no sentido de saber o que é escrever60.

Com relação ainda às práticas de referência, Martinand (2003) critica o posicionamento de Develay (1993), que, dentro do domínio das ciências, introduz a noção de práticas sociais de referência, afirmando que os saberes escolares têm sua origem tanto

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«La problématique de la référence n’est pas forcément opposée à celle de la transposition didactique. Mais elle en est fondamentalement distincte, pas seulement parce qu’elle est née en didactique des sciences expérimentales et des disciplines technologiques alors que la problématique de la transposition didactique s’est développée en didactique des mathématiques. Les deux problématiques peuvent être reprises dans les didactiques d’autres disciplines. Elles coexistent» (MARTINAND, 2003, p. 128).

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«Ce n’est jamais la pratique en tant que telle – de l’écriture, du dessin, du chant ou du calcul – qui devient objet d’enseignement, mais le savoir de l’écriture, du dessin, du chant ou du calcul. Pour être enseigné, un objet doit être su, sinon nécessairement dans le sens de savoir chanter au moins dans le sens de savoir ce qu’est chanter ; sinon dans le sens de savoir écrire au moins dans le sens de savoir ce qu’est écrire» (SCHNEUWLY, 1995, p. 52-53).

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nos saberes científicos quanto nas práticas sociais de referência61. A crítica de Martinand (2003) reside no fato de Develay (1993) separar as práticas e os saberes teóricos, pois, segundo ele,

não se trata de “contextualizar” os saberes, mas de considerar as práticas dentro de todos seus aspectos, inclusive dentro de seus componentes de saber, discursivos ou não, explícitos ou implícitos, individuais ou coletivos. Sentidos e estruturas de saberes, e mesmo os conceitos centrais, podem ser diferentes segundo as práticas, mesmo que os objetos pareçam os mesmos62 (MARTINAND, 2003, p. 128).

Assim como Martinand (2001), Raisky (2001) ressalta que as práticas são o objeto de ensino. Ele afirma também que elas não ocupam apenas o lugar de fonte, como no esquema restrito de Chevallard (1991[1985)], mas também se situam no meio e no fim do processo transpositivo. No meio, porque, quando passam a ser referência para o ensino, trazem saberes, além das situações e atividades a elas relacionadas que vão determinar o modo de trabalho e as situações didáticas. No fim, porque a atividade escolar inscreve-se (pelo menos, hipoteticamente) em um projeto que tem como alvo as práticas de referência.

Diante disso, no que concerne à relação entre práticas e saberes, pensamos que, na situação de ensino de LP, em acordo com Schneuwly (1995), não são propriamente as práticas de linguagem que são ensinadas. Trata-se, antes, de se ensinar os saberes com vistas à prática na sua dimensão global: por exemplo, inicialmente, apresenta-se o gênero notícia e depois se focam os seus componentes, como situação de comunicação, estrutura composicional, marcas linguísticas etc. No fim da unidade de ensino do objeto em questão,

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Por “práticas de referência”, o autor compreende “as atividades sociais diversas (atividades de pesquisa, de produção, de engenharia, mas também atividades domésticas e culturais)”, que podem “servir de referência às atividades escolares” (DEVELAY, 1993, p. 22-23), a partir das quais é possível examinar-se: o objeto de trabalho, o trabalho que se deseja abordar, as atitudes e os papéis sociais, os instrumentos materiais e intelectuais e o saber produzido. O autor propõe um esquema que inclui, de um lado, os saberes científicos; de outro, as práticas sociais de referência, a partir dos quais se originam os saberes a ensinar (trabalho do elaborador de programas), seguido dos saberes ensinado (trabalho do professor) e assimilado (trabalho do aluno).

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« il ne s’agit pas de « contextualiser » des savoirs, mais de prendre en compte des pratiques dans tous leurs aspects y compris dans leurs composantes de savoirs, discursifs ou non, explicites ou implicites, individuels ou collectifs. Sens et structures des savoirs, et même les concepts centraux, peuvent être différents selon les pratiques, alors même que les objets semblent les mêmes» (MARTINAND, 2003, p. 128).

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volta-se à notícia. As práticas localizam-se tanto no início, no meio e no fim, tal como destacado por Raisky (2001), mas o foco do ensino são os saberes em diálogo com a prática.

Diante de tais asserções, é indispensável refletir sobre essa questão em função da especificidade da disciplina LP, a fim de entendermos o processo de didatização63 do qual o LDP participa.

2.1.4 A relação entre práticas sociais de referência e objetos de ensino em Língua