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A relação entre práticas sociais de referência e objetos de ensino em Língua

CAPÍTULO 2 AS DIMENSÕES IMPLICADAS NA SITUAÇÃO DIDÁTICA:

2.1 A CONSTITUIÇÃO DOS SABERES ESCOLARES

2.1.4 A relação entre práticas sociais de referência e objetos de ensino em Língua

Pensar a relação que se estabelece entre práticas sociais de referência e objetos de ensino de LP implica, antes, a formulação de uma pergunta: Qual(is) é(são) o(s) objeto(s) de ensino da disciplina LP? Tomando como pressuposto de que um dos objetos de ensino destacado pelos PCN são os gêneros textuais64, buscamos, neste tópico, fazer uma articulação entre as práticas sociais de referência e os gêneros discursivos, porque, através desses objetos, com base em um pensamento complexo (MORIN, 2004), é possível contemplar a diversidade de enunciados, trabalhar com a compreensão e produção oral e escrita, favorecer a fruição estética, levar o aluno a refletir sobre os recursos linguísticos e semióticos, a se posicionar de maneira crítica nas diferentes situações, a exercer a cidadania, entre outros objetivos presentes nos PCN do Ensino Fundamental 2.

Esses objetos são definidos por Dolz e Schneuwly (2004[1996]) como práticas de linguagem, práticas essas historicamente construídas e

consideradas aquisições acumuladas pelos grupos sociais no curso da história. Numa perspectiva interacionista, são, a uma só vez, o reflexo e o

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Didatização diz respeito ao conjunto de processos que engloba as dimensões epistemológicas, praxeológicas e psicológicas que se evidenciam a partir do triângulo didático.

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Vale destacar que, diferentemente de Schneuwly, Dolz et. al. (2004), priorizamos a questão discursiva do gênero e não o aspecto textual. É relevante frisar também que reconhecemos a existência de outros objetos de ensino, como temas, elementos gramaticais etc., mas, a partir do referencial teórico aqui adotado, consideramos os gêneros como seus desencadeadores nas aulas de LP: a partir deles, diferentes saberes podem ser tratados em função das práticas de linguagem, tendo em vista que nos comunicamos por meio delas.

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principal instrumento de interação social. É devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam na forma de gêneros, que as significações sociais são progressivamente reconstruídas (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 51).

Uma vez definido que, dentre várias outras práticas, as de linguagem são alvo de nossa atenção, deparamo-nos com outra questão: Quais gêneros discursivos vão se constituir como objetos de ensino? Sabemos apenas que precisamos defini-los a partir dos objetivos de ensino: formação profissional, formação geral etc. No mais, temos consciência de que a

riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 1997[1953], p. 279).

Reconhecendo os gêneros (seus componentes) como objetos de ensino, é relevante destacar algumas de suas características: eles “constituem um ponto de comparação que situa as práticas de linguagem. Eles abrem uma porta de entrada, para estas últimas, que evita que delas se tenha uma imagem fragmentária no momento de sua apropriação” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 74). Eles são, portanto, instrumentos semióticos decisivos no ensino-aprendizagem de LP em função do papel que desempenham nas diferentes situações comunicativas.

Quanto à relação do gênero na escola com a situação comunicativa, Schneuwly e Dolz (2004[1997], p. 76) afirmam que “o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem”. Ao ser introduzido na escola, passa por um processo de ficcionalização (SCHNEUWLY, 2004[1997]): é objeto e meio, o que torna a situação fictícia, requerendo, no processo de modelização, o isolamento de quatro parâmetros: enunciador, destinatário, objetivo e lugar social, implicados nas práticas sociais de referência, os quais passam a orientar a compreensão e a produção oral e escritamente. “A ficcionalização revela-se, então, como uma operação geradora da ‘forma do conteúdo’ do texto: ela é o motor da construção da base de orientação da produção,

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colocando, particularmente, certas restrições sobre a escolha de um gênero discursivo” (SCHNEUWLY, 2004[1997], p. 144).

Notamos que, em sala de aula, ele sofre transformações porque ocupa um novo lugar social, diferente daquele onde foi criado. Como destacam os autores,

toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagem, que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela; e, em segundo lugar, de desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes. Isso implica uma transformação, pelo menos parcial, do gênero para que esses objetivos sejam atingidos e atingíveis com o máximo de eficácia (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 80-81).

Utilizados para fins de aprendizagem, os gêneros exigem o estabelecimento de uma nova relação com a linguagem e que haja a especificação dos saberes que os constituem, porque, embora se parta do todo, é sobre as partes que se dará a intervenção, com vistas, é claro, o todo.

Assim, a partir da visão bakhtiniana de discurso, dos estudos sobre o contexto de produção e recepção do LDP e da reflexão sobre transposição didática de Chevallard (1991[1985]) e práticas sociais de referência (MARTINAND, 1986; 2001; 2003), reformulamos o modelo de transposição didática apresentado inicialmente por Yves Chevallard e, posteriormente, reelaborado por Develay (1993), a fim de evidenciar a função das práticas sociais de referência e o nível de transposição do saber didatizado (não presente nos modelos dos autores citados) e do saber aprendido (presente no esquema de Develay (1993)). A decisão de incluir o primeiro nível justifica-se por entendermos que, por exemplo, os PCN, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) e as grades curriculares referem-se a saberes a ensinar, não existindo elaboração didática65

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Por elaboração didática, entendemos a prática de construção de atividades e tarefas de modo a presentificar e a elementarizar os objetos de ensino, em uma progressão espiral (conceito cunhado por Comenius (1985) para referir a articulação entre diferentes etapas de ensino-aprendizagem). Corresponde ao nível posterior a delimitação dos objetos realizada no âmbito da transposição didática.

Saber a ensinar Saber didatizado Saber ensinado

propriamente dita. Quanto à inclusão do segundo nível, ocorreu para que tivéssemos uma visão mais completa do sistema de ensino. Com base nisso, procuramos representar um modelo interativo e não linear

transposição didática.

Esquema 9-Relação entre

No esquema 9,

documentos oficiais, sendo determinados pelas práticas sociais, enquanto o saber didatizado corresponde ao resultado da interação entre o saber a ensinar, o saber ensinado e as práticas sociais de referência. Esse nível corresponde à apresentação e à organização dos saberes e/ou dos gêneros do discurso nos materiais didáticos. O saber ensinado diz respeito à (re) elaboração didática realizada pelo professor, a partir da interação entre o saber a ensinar saber didatizado e as práticas sociais de referência, dentro de uma situação específica de sala de aula. O saber aprendido alude àquele assimilado pelo aluno, originado da sua relação com todos os demais níveis, com exceção do saber a ensinar. As práti

sociais de

linguagem

Saber aprendido 86 Saber ensinado Saber a ensinar Saber didatizado

propriamente dita. Quanto à inclusão do segundo nível, ocorreu para que tivéssemos uma visão mais completa do sistema de ensino. Com base nisso, procuramos representar um modelo interativo e não linear (relação entre os níveis de saber de dois em dois) da

Relação entre práticas sociais de linguagem e saberes.

o saber a ensinar refere-se aos saberes elencados nos documentos oficiais, sendo determinados pelas práticas sociais, enquanto o saber didatizado corresponde ao resultado da interação entre o saber a ensinar, o saber ensinado e as práticas rência. Esse nível corresponde à apresentação e à organização dos saberes e/ou dos gêneros do discurso nos materiais didáticos. O saber ensinado diz respeito à (re) elaboração didática realizada pelo professor, a partir da interação entre o saber a ensinar saber didatizado e as práticas sociais de referência, dentro de uma situação específica de sala de aula. O saber aprendido alude àquele assimilado pelo aluno, originado da sua relação com todos os demais níveis, com exceção do saber a ensinar. As práti

Práticas

sociais de

linguagem

Saber a ensinar Saber didatizado Saber ensinado

propriamente dita. Quanto à inclusão do segundo nível, ocorreu para que tivéssemos uma visão mais completa do sistema de ensino. Com base nisso, procuramos representar um (relação entre os níveis de saber de dois em dois) da

se aos saberes elencados nos documentos oficiais, sendo determinados pelas práticas sociais, enquanto o saber didatizado corresponde ao resultado da interação entre o saber a ensinar, o saber ensinado e as práticas rência. Esse nível corresponde à apresentação e à organização dos saberes e/ou dos gêneros do discurso nos materiais didáticos. O saber ensinado diz respeito à (re) elaboração didática realizada pelo professor, a partir da interação entre o saber a ensinar, o saber didatizado e as práticas sociais de referência, dentro de uma situação específica de sala de aula. O saber aprendido alude àquele assimilado pelo aluno, originado da sua relação com todos os demais níveis, com exceção do saber a ensinar. As práticas sociais de

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referências, por sua vez, dialogam com todos os níveis, porque elas são o lugar a partir do qual se originam os saberes escolares, o meio e o fim do processo transpositivo.

Sobre o modelo, observamos a ação de alguns agentes e os produtos das relações entre os níveis, como exemplificado no quadro abaixo:

Níveis Agentes Produtos66

Saber a ensinar Trabalho dos idealizadores (membros de secretarias e Ministério da Educação, professores especialistas etc.).

PCN, OCEM, Propostas e Grades Curriculares etc.

Saber didatizado Trabalho dos autores, dos

editores, dos

coordenadores, dos diretores, dos professores etc.

Livro didático, Sequências didáticas, Cadernos, Apostilados etc.

Saber ensinado Trabalho do professor. Notas no quadro negro,

exposição oral, folhinhas, ditado de conteúdo e de tarefas etc. Saber aprendido Trabalho do aluno Gêneros e saberes diversos.

Tabela 4- Níveis de transposição didática, agentes e produtos.

No que concerne ainda ao modelo transpositivo, importa dizer que a transposição didática refere-se aos aspectos epistemológicos, isto é, trata da constituição/delimitação dos saberes. Isso significa que, ao fazermos menção a ela, não consideramos questões relacionadas à elaboração e/ou à modelização didática, que, diferentemente da transposição que atravessa todos os níveis representados, aparecem apenas nos níveis do saber didatizado e do ensinado, envolvendo também as dimensões psicológicas e praxeológicas.

Vale ressaltar que, nesse modelo, colocamos os gêneros discursivos como parte das práticas sociais de referência. Assim, para melhor compreender a sua introdução no ensino de LP, retomamos o termo modelização67 (SCHNEUWLY, 1995) que dialoga com

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Correspondem ao resultado da ação dos sujeitos no sistema de ensino. 67

Neste trabalho, este termo refere-se ao processo de construção de modelo didático, relacionando- se, portanto, ao ensino de gênero do discurso. Contudo, há autores, como Rojo (2001, p. 4), que o

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o de transposição didática. Para esse autor, “a essência mesma do conceito de transposição [...] é que estes saberes-fazer, ou antes, estas maneiras de ser, de pensar e de fazer, para se tornarem objeto de ensino, passam necessariamente por uma etapa que poderíamos chamar de modelização68” (SCHNEUWLY, 1995, p. 52). O modelo didático, produto desse processo, é uma ferramenta que possibilita a definição do objeto a ser ensinado e de suas dimensões, como apresentam De Pietro e Schneuwly (2006). Os autores definem modelização didática como resultado da confluência de quatro fontes de dados: as práticas sociais de referência, a literatura sobre o gênero, as práticas linguageiras dos alunos e as práticas escolares, originando um modelo constituído da definição geral do gênero, dos parâmetros da situação comunicativa, dos conteúdos específicos, da estrutura textual global e das operações de linguagem e suas marcas linguísticas.

É a interseção dessas quatro fontes que a modelização

pode garantir, ao mesmo tempo, sua legitimidade – já que ela se apoia sobre as práticas sociais de referência e a literatura existente – e sua pertinência – já que ela leva igualmente em consideração as práticas, em desenvolvimento, dos alunos, na medida em que elas tornam visíveis os obstáculos, as resistências, e as práticas escolares, na medida em que elas definem as determinações situacionais, e mesmo éticas, que incidem sobre o gênero a ensinar (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2006, p. 33, ênfase dos autores).

De acordo com os autores, o modelo didático fornece objetos potenciais para o ensino e possibilitam a elaboração de sequências didáticas, que são, como explicitam Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004[2001]), caracterizadas como um conjunto de atividades escolares organizadas sistematicamente em torno de um objeto de ensino. Ele resulta de uma investigação a respeito de um gênero com propósitos de ensino e é responsável pela seleção de características do objeto a serem ensinadas. Ou ainda, “trata-se de um conceito

utilizam para se referir à transformação pela qual um saber passa para ser ensinado, não se referindo a um saber em especial (OLIVEIRA; TEIXEIRA, no prelo).

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« c’est l’essence même du concept de transposition [...] est que ces savoir-faire, ou plutôt, ces manières d’être, de penser et de faire, pour devenir objet d’enseignement, passent nécessairement par une étape qu’on pourrait appeler de modélisation» (SCHNEUWLY, 1995, p. 52).

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que tem sua origem na prática de engenharia didática e que serve para estabilizar essa prática ao explicitá-la e sistematizá-la” (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2006, p. 15).

Diante disso, podemos dizer que toda introdução de quaisquer gêneros discursivos exige, antes, a construção de um modelo didático e que é necessário ainda um trabalho de descrição sobre diversos gêneros para que haja clareza quanto aos objetos de ensino que serão didatizados, ensinados e aprendidos.