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ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA INTERNET

4.4 A relação homem computador

Cosentino (2006) analisou a interação homem computador a partir de uma perspectiva evolutiva. Para encaminhar esse estudo, o autor propõe que a revisão histórica não se restrinja aos últimos 60 ou 70 anos, época em que os primeiros computadores começaram a surgir, mas que “[...] voltemos um pouco mais, aproximadamente dois milhões e meio de anos, data das mais antigas evidências arqueológicas das primeiras tecnologias de fabricação de ferramentas” (COSENTINO, 2006, p. 62).

De acordo com seu levantamento, desde os primeiros artefatos produzidos pelos humanos, as ferramentas sempre guardaram estreitas correlações com aspectos centrais da nossa evolução. De tal forma que, ao longo do processo de hominização, a evolução cultural e a evolução biológica ocorrem em estreito paralelismo, conforme afirma Cosentino:

Desse modo, o crescimento cerebral, a organização social, a transmissão de conhecimento e a fabricação e o uso de ferramentas são alguns dos importantes pontos desse processo, formando um complexo conjunto de características que possuem uma relação entre elas. (COSENTINO, 2006, p. 64)

De acordo com uma perspectiva evolutiva análoga, se considera que o desenvolvimento do aparato tecnológico necessário ao surgimento da Internet

aconteceu na medida em que passou a existir, por parte do ser humano, algum tipo de “prontidão” muito específica para a sua utilização. Segundo Novo, tal prontidão se manifesta na medida quando “[...] o humano reúne condições para que graus de virtualidade e de simbolização possam ocorrer, concebendo ferramentas segundo seu momento histórico” (NOVO, 2004, p. 87).

Esta breve observação da história da Internet permite supor que, na fase inicial da sua concepção, seus criadores dificilmente imaginariam os desdobramentos posteriores, nem a rapidez com que iria se multiplicar o número de seus usuários. Novo (2004) ilustra esse movimento utilizando a metáfora do homem que olha para o horizonte e, dali avistando ali um morro, por um momento sente-se confortado pela ideia de que o mundo acabaria naquele ponto. Novo complementa sua metáfora sugerindo a seguinte continuidade para a cena imaginada:

Mas surge uma excitação, de compreensão do mundo que o cerca. Anima-se e escala o morro, e lá ele descobre que existem incontáveis coisas além, descobrindo também o quanto estava iludido na sua cosmogênese. Ao olhar para adiante do morro, pode descobrir um novo mundo, um mundo globalizado, conectado em rede. Qual necessidade humana estaria sendo satisfeita com a conexão mundial em rede?(NOVO, 2004, p. 89)

As possibilidades oferecidas ao ser humano, a partir da viabilização do acesso ao ciberespaço, desdobram-se em distintas formas de expressão: quebra dos padrões de tempo e espaço; possibilidade de interação entre humanos sem ser necessário o contato presencial; acesso e processamento de quantidade e variedade de informações antes inimaginável; viabilidade de ação a distância propiciada pelos recursos da chamada Realidade Virtual, entre outras.

Segundo analistas e usuários mais versados, as aplicações atuais dos recursos digitais em geral, e da Internet em particular, correspondem a etapa comparável ao ensaio geral da sua efetiva utilização futura. Nos seus discursos, é praticamente unânime a afirmação de que as ferramentas tecnológicas – o computador e derivados - ainda se encontram em fase incipiente de desenvolvimento, se comparadas ao potencial de evolução. Em entrevista concedida ao jornal Le Monde, Vinton Cerf – um dos responsáveis pela criação da tecnologia do e-mail – prevê que em breve o acesso à Internet via telefones celulares ultrapassará as formas convencionais de acesso via computadores (CERF, 2008, acesso em 17/07/08). Por meio da ampla utilização da

conexão sem fio (wireless) e dos “semicondutores47”, as novas tecnologias serão aplicadas a outros objetos, permitindo maior mobilidade, miniaturização e multiplicação das formas de acesso e utilização da rede mundial.

Conforme mencionado, a evolução tecnológica dos artefatos informatizados traduz-se também em alternativas de navegação e participação do usuário nas interações com as máquinas. Tudo indica que, de modo especial, a ampliação da

interatividade e o caráter imersivo - propiciados à navegação na Internet pelo

desenvolvimento das Webs 2.0 e 3.0 - deverão em pouco tempo, gerar inovações. Desse modo, a fronteira entre a vida presencial (por muitos ainda vista como a “real”) e a vida virtual, tende a tornar-se cada vez mais fluida – e difícil de ser identificada.

Para que pudesse transitar por essas novas “realidades” é provável que uma espécie de “prontidão” já estivesse em preparo na psique do ser humano. Em outros termos, é provável que certo ‘quantum’ de energia psíquica estivesse disponível, para que tal processo pudesse ter se iniciado e tomado a forma da criação das tecnologias que propiciaram a existência da grande WEB, bem como das expressões e vivências humanas no ciberespaço.

Na época da chegada da Internet aberta ao Brasil, alguns autores se manifestaram antecipando as dificuldades que seriam enfrentadas para a sua abordagem e análise no âmbito da Psicologia. Como exemplo, o alerta registrado por Nicolaci-da-Costa (1998) no prefácio de citado estudo sobre os impactos gerados pelo surgimento do ciberespaço:

Não é fácil estudar o novo. E não é fácil porque o velho sempre tende a atrapalhar, principalmente quando já temos formas consolidadas de ver e interpretar o que nos cerca. O novo sempre requer um novo olhar e novos olhares geralmente geram inseguranças naqueles que olham sem fazer uso de referencias conhecidos, ao mesmo tempo em que provocam a ira daqueles que não querem abandonar a segurança desses referenciais. Partir do que já é conhecido é sempre mais confortável, O problema é que, em se tratando de algo completamente novo, quando se parte do conhecido tende-se a encaixar o novo no velho, o que é uma forma de não o enxergar (NICOLACI-DA-COSTA, 1998, p. 7).

Os psicólogos possivelmente ainda estão aturdidos diante da constatação desse fenômeno de dimensões planetárias. Do qual, por um lado, são espectadores,

47 Inovação tecnológica que promete imprimir nova onda de desenvolvimento e ampliação dos artefatos informatizados em muitos campos de suas aplicações, de modo especial na “nanotecnologia”.

mas por outro, são também agentes, como usuários, mesmo que apenas em potencial. Essa condição talvez ainda não facilite o distanciamento mínimo necessário - entre o profissional e a Internet - para a realização de suas análises. A maioria dos psicólogos ainda parece estar se familiarizando com o simples fato de sua existência, formas de utilização e manejo.

Temer e evitar o novo e o revolucionário são reações recorrentes do ser humano ao longo da história. No século XV, quando foi criada a prensa móvel, a invenção de Gutemberg foi temida e apontada como algo que colocaria em risco a “sanidade” dos indivíduos mais vulneráveis - pelo “excessivo” acesso ao conhecimento – e o equilíbrio dos poderes, como estabelecidos na época.

Em relação à máquina a vapor, quando iniciada a sua aplicação como propulsora de veículos (especialmente os trens), vozes se levantaram em alerta: o organismo do ser humano não toleraria viajar nas altas velocidades desse modo viabilizadas. Mais recentemente, a televisão foi amplamente execrada pelo seu suposto poder de embotamento cognitivo das gerações mais jovens. Como o nosso tema envolve o uso das novas tecnologias, é fundamental relembrar as acaloradas discussões dos anos 60 a respeito dos prejuízos que o uso das calculadoras eletrônicas acarretaria à aprendizagem da matemática. Essas têm sido, historicamente, as primeiras reações diante da novidade: estranhamento, temor, afastamento. Ou seus opostos: paixão, fascínio, e variantes. Atitudes compreensíveis, algumas vezes justificáveis. Mas o tempo é sempre o mais qualificado juiz, especialmente quando os fatos em pauta são da ordem e magnitude envolvidas no surgimento da Internet.

Em O Nome da Rosa, Umberto Eco (ECO, 2003) criou uma bela alegoria sobre as atitudes peculiares de o ser humano se posicionar em relação às inovações que “desestabilizam” a ordem vigente: no mosteiro de Melk, onde ambientou seu romance, os monges que ousassem apenas “tocar” os livros proibidos estariam irremediavelmente condenados à morte, por envenenamento. Relatando um dos diálogos mantidos com seu mestre – Frei Guilherme, frade sábio -, outro personagem- chave do enredo, o jovem protagonista do romance confessa sua curiosidade a respeito das máquinas intrigantes, sobre as quais ouvira falar (relógio, astrolábio, ímã). Perguntando a respeito da localização de tais inventos – de cuja existência duvidava - recebeu do mestre a seguinte resposta:

Disse-me que já tinham sido feitas na antiguidade, e algumas até em nossos tempos: ‘Exceto o instrumento para voar, que não vi nem conheci quem o tivesse visto, mas conheço um sábio que o imaginou. E é bem possível fazer pontes que atravessem os rios sem colunas ou qualquer outro sustentamento e outras máquinas inauditas. Mas não precisas ficar preocupado se não existem ainda, porque não quer dizer que não existirão. E eu te digo que Deus quer que existam, e certamente já estão em sua mente, ainda que meu amigo de Ockham negue que as ideias existam desse modo, e não porque podemos decidir pela natureza divina, mas justamente porque não podemos impor-lhe limite algum (ECO, 2003, p. 25).

Ao elaborar a resposta do mestre, o protagonista/narrador conclui: “É verdade, no entanto, que aqueles eram tempos obscuros, em que um homem sábio precisava pensar coisas contraditórias entre si” (ECO, 2003, p. 25).

Analogamente, em relação à Internet, talvez estejam sendo vividos os “obscuros tempos” do seu recente surgimento. Durante esse tempo é imprescindível tolerar as reações paradoxais geradas pela observação (e pela experimentação) das vivências humanas nos espaços da virtualidade. Reagindo, ora com encantamento, ora com desconfiança. Outras vezes com espanto, ou mesmo um misto de entusiasmo e incredulidade. Ao menos, até o momento no qual a compreendamos e a integremos como um dos mais impactantes fenômenos da nossa era.