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CIBERESPAÇO COMO ESPAÇO PSÍQUICO

5.5 Espaço virtual / Espaço potencial: quantos “eus” nos habitam?

5.4.3 Subjetividade(s) na pós-modernidade

Na era moderna, depois da revolução industrial e durante boa parte do século passado, a subjetividade, segundo Jameson (1997), caracterizava-se por um ego contínuo e alienado. Na modernidade o eu era entendido como uno, profundo e

contínuo, embora alienado de seu significado ou incapaz de atribuir significado a si mesmo. Na modernidade, por exemplo, uma obra de arte trazia em si significados profundos e ocultos, o que não ocorre na pós-modernidade, que, caracterizada segundo Jameson, pela superficialidade, não tem significados ocultos, sendo aquilo mesmo que, de imediato, parece ser. O mesmo autor atribui à pós-modernidade a característica de fragmentação do ego, decretando o fim do modelo da “mônada”, com a indivisibilidade e a centralidade do ego: “O indivíduo era percebido por si mesmo e pelos outros, tal qual uma mônada, indivisível e dotado de um cerne, de uma instância central ou uma miragem desta - que não parece existir na organização subjetiva pós- moderna.” (JAMESON apud ROMÃO Dias, e NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 74).

Discorrendo sobre a pós-modernidade, Jameson a caracteriza pela prevalência da superfície sobre o profundo, da simulação sobre o real, do jogo sobre a seriedade. A era moderna seria representada por símbolos como a chaminé da fábrica, as máquinas e os robôs. A Internet, de acordo com a visão desse autor, poderia ser o símbolo da pós-modernidade, em sua peculiar construção da subjetividade.

Em Life on the Screen, Turkle relata sua pesquisa sobre o impacto da Internet na construção da subjetividade tomando como ponto de partida o modelo de subjetividade proposto por Jameson, e sugere um modelo alternativo, que substitui a fragmentação pela ideia de multiplicidade: “Na simulação que a realidade virtual permite, a identidade pode ser fluida e múltipla, um significante não mais aponta claramente para algo que é significado, e a interpretação é menos provável de proceder pela análise do que pela navegação no mundo virtual” (TURKLE apud ROMÃO DIAS, e NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 75). Seu modelo de subjetividade envolve um eu flexível, não fragmentado, mas múltiplo; e essa multiplicidade funcionaria ainda de maneira simultânea (ao mesmo tempo) ou sincrônica (não ao mesmo tempo, mas com relação de significado), em analogia, por exemplo, com o sistema Windows dos computadores pessoais, no qual várias formas do ser são experimentadas simultaneamente: janelas abertas para diferentes possibilidades. Embora evidentemente ainda haja a instância centralizadora que clica o mouse, várias possibilidades do ser são experimentadas sem haver, necessariamente, fragmentação. A autora propõe a experiência de ser, de modo múltiplo, como possibilidade dentro da normalidade.

O trabalho de Turckle inspirou a pesquisa feita em 2005 por Romão Dias e Nicolaci-da-Costa, na PUC do Rio de Janeiro. Para esse trabalho foram entrevistados

usuários da Internet que se propuseram a comentar o seguinte depoimento, extraído do livro de Turkle (1997):

Sinto que, quando estou no IRC86, posso ser qualquer coisa. E, no

meio de todas aquelas janelas e canais, onde sou linda, homem, loura, mulher, feia, criança ou velha, sinto que essas janelas são partes da minha vida, e a vida real é mais uma, dentre muitas janelas possíveis. (TURKLE, apud ROMÂO DIAS e NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 77)

O material das respostas foi analisado a partir da “análise do discurso”, e embora todos os entrevistados, sem exceção, relatassem ter maior facilidade de expressão na rede do que quando interagem presencialmente, os resultados permitiram que fossem divididos em dois grupos: o primeiro, com menos de 20% das respostas, abarcou aqueles que consideravam os relacionamentos pela Internet como frustrantes ou mentirosos, e que a facilidade de expressão não os levava a relações que considerassem sólidas ou verdadeiras. Entenderam os papéis que assumem na Internet como máscara ou muro de proteção, e consideraram mentiras o que era expresso como realidade virtual. O contato presencial era sempre decepcionante, e havia desconfiança em relação ao virtual, com a constatação de que as pessoas não são, fora da rede, como dizem ser dentro dela, o que é percebido como falsidade. Na nossa linguagem, como expressão de má fé, ou, na melhor das hipóteses, do inconsciente ou da sombra.

O segundo grupo de entrevistados, embora perceba diferenças entre o on-line e o off-line, não considera falso o que se passa na WEB. Ao contrário, falam de diferentes níveis de realidade. Relatam que podem agir, pensar e até sentir de modo diferente quando estão na Internet, sem que isso signifique faltar com a verdade. Relatam que suas personagens virtuais são possibilidades da mente, resultados de experiências ou leituras, testes de si mesmos, forma de reconhecer potenciais adormecidos. Essas pessoas percebem-se na Internet com comportamentos que não teriam presencialmente, por timidez ou qualquer outra razão. Mas depois de experimentá-los virtualmente, talvez os integrem ao repertório de comportamentos na vida fora da WEB. Depois da integração, não se veem como pessoas diferentes, mas experimentam o espaço virtual como um laboratório de comportamentos.

86 Internet Relay Chat (IRC) é uma modalidade de comunicação que já foi bastante utilizada na Internet, basicamente para bate-papo e troca de arquivos, permitindo a conversa em grupo ou privada. Surgiu em 1993, tornando-se muito popular no final dos anos 90. Atualmente caiupraticamente em desuso, substituido pelos mensageiros instantãneos como o MSN e pelos sites de relacionamento como o Orkut e o My Space.

Aparentemente, segundo as pessoas do primeiro grupo, para haver verdade era esperado que não houvesse diferença entre o presencial e o virtual. Inexistiria a possibilidade de, sem mentir, vivenciar aspectos diferentes do ser. Provavelmente essas pessoas se identificam com o “ego contínuo” e tem sensação de estabilidade e unidade em relação a si mesmas, de modo semelhante a que Jameson chamou de “centralidade” ou “miragem de centralidade” típicas do sujeito da modernidade (JAMESON apud ROMÃO DIAS, e NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 74).

Quanto aos membros do segundo grupo, também se sentem mais desinibidos na rede do que fora dela, e sabem que as pessoas dizem o que querem a seu próprio respeito na Internet, norma que vale para eles mesmos e para os outros. Mas os membros desse grupo não se incomodam em criar personagens e lidar com a possibilidade de que os outros também os criem. Mesmo que tais personagens tenham pouca semelhança com a personalidade presencial, mas sendo percebidos como portadores de habilidades criativas de se relacionar dentro de outros padrões que não os definidos pelo encontro no mundo presencial. Não entendem o hiato entre a realidade virtual e o presencial como mentira ou farsa. Usam o espaço virtual como um ambiente lúdico-criativo.

Ao analisar estes dados, as pesquisadoras recorreram à visão de Turkle, segundo a qual, provavelmente, esses sujeitos se percebem como muitos e não como um só, “sendo”, ao mesmo tempo, “alguns aspectos e seus opostos”. Essa estrutura corresponderia àquela que a autora denominou “múltiplos selves87”, na qual existe a instância centralizadora, o ego, mas um ego que - dentro do padrão pós-moderno - tende a ser flexível e continua a buscar espaços do brincar, atualizando na idade adulta o espaço potencial da formação do ego típico da infância (TURKLE apud ROMÃO DIAS, e NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 76).

Roesler (2008) em estudo sobre a formação da identidade nas sociedades pós- modernas demonstra que as ideias de Jung já estariam sintonizadas aos desenvolvimentos acima apontados. Por exemplo, ao prever a fragmentação das referências culturais como um dos efeitos das intensas transformações sociais da sua época, Jung antecipou a necessidade que o indivíduo da sociedade moderna teria de encontrar a estabilidade da sua identidade em si mesmo, e não mais nas normas, valores ou padrões de comportamento estabelecidos pelas instâncias externas.

87 Embora corresponda ao plural de self, o termo não é usado pela autora na acepção junguiana: para Turlke “o sujeito atual, invés de ser composto por várias partes, vários pedaços de um todo, é constituído de vários todos, ou seja, vários selves”. (TURKLE apud ROMÃO DIAS, E NICOLACI-DA-COSTA, 2005, p. 76)

Podemos dizer também que Jung quase pensou de forma pós-moderna quando viu a personalidade composta de partes - os complexos – aos quais atribuiu certa autonomia. Para Jung a questão crucial era: diante dessas parcelas de identidades parcialmente autônomas, como uma pessoa pode formar um centro interno apto a manter integradas as partes divergentes da personalidade? (ROESLER, 2008, p. 423)

Talvez a necessidade do contínuo desenvolvimento da consciência rumo à individuação – integrando diferentes conteúdos inconscientes que precisam vir à luz em busca de maior plenitude e significado - possa elucidar ao menos em parte o fascínio gerado pela Internet. É possível que a oferta do campo diferenciado - virtual – seja vivida como potencial transicional, no qual a psique que busca ampliação encontra mais uma via para sua realização.

Para que o psicólogo possa se manter em sintonia com o espírito atual - frente à questão inicialmente proposta - será necessária a atitude cautelosa de não assumir conclusões precipitadas. Em outra publicação, na qual discorre justamente sobre “O Psicólogo na Sociedade em Rede”, Nicolaci-da-Costa (2006, p. 28) finaliza sua reflexão com uma sugestão que nos parece pertinente adotar aqui: “Essas conclusões são necessariamente provisórias porque, nos dias de hoje, a única coisa constante é, paradoxalmente, a própria transformação”.

Para observar com atenção essas transformações - agora sob outro ângulo - serão descritas, a seguir, algumas das novas formas de construção do saber presentes na WEB.