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CIBERESPAÇO COMO ESPAÇO PSÍQUICO

5.3 Novas vias de expressão de antigos conflitos humanos

5.3.1 Comunicações e navegação polêmicas

Dissimulados na forma de mensagens eletrônicas supostamente verídicas, os envios de vírus têm como propósito da simples interferência no funcionamento das máquinas alvo, à destruição dos sistemas dos computadores pessoais e institucionais que os recebem se ativados inadvertidamente pelo usuário.

A intenção de alguns envios pode ser travar seu funcionamento, destruindo os dados ali armazenados. Em outros casos, o hacker pode ter como objetivo apenas demonstrar poder ou habilidade técnica, e nesse caso a ação consistirá apenas em “entrar” na máquina alvo e deixar algum registro de sua passagem. Por exemplo, sua marca na forma de uma pichação virtual, demonstrativa da fragilidade do sistema.

Outro objetivo possível é a instalação dos chamados “cavalos de tróia” ou

phishing. Popularmente também conhecidos como “vírus”, essas mensagens contêm mini-

programas auto-executáveis que, instalados no computador alvo, “abrem” suas portas virtuais, fazendo com que seja viável o acesso remoto ao equipamento infectado. Desse modo, equipamentos domésticos ou empresariais tornam-se vulneráveis às invasões dos

hackers. Por essa via os invasores acessam as mais variadas e privilegiadas informações:

bancos de dados de instituições financeiras, senhas pessoais, números de CPF ou de cartões de crédito digitados nas operações financeiras. Esse recurso pode ser utilizado, por exemplo, para a transferência indevida de valores entre contas bancárias, ou para compras on-line à revelia, em nome do real portador, entre outras operações. Estas são algumas das modalidades de roubos e crimes informatizados mais frequentes.

As variantes dos e-mails potencialmente lesivos são inúmeras, e procuram sempre simular um envio normal, rotineiro ou amistoso de instituição, órgão público ou pessoa comum, supostamente interessada em entrar em contato com o destinatário. Geralmente o teor das mensagens tenta tirar partido da eventual fragilidade do receptor da mensagem: explorar a ingenuidade do destinatário frente às ofertas “tentadoras” (“clique aqui para receber seu brinde”, ou “seu computador está infectado, clique aqui para receber a vacina antivírus gratuita”); a sua curiosidade ou insegurança (“um amigo quer te rever”, ou “você está sendo traído: veja as fotos você mesmo”); a eventual carência afetiva (mensagens contendo supostas declarações amorosas), ou ainda a culpa, ambição ou desejo de obter vantagens financeiras (“seu CPF está bloqueado por débitos não pagos” / “você acaba de ganhar duas passagens aéreas da GOL – clique aqui para

confirmar sua reserva” / “o depósito já foi feito em sua conta – clique no link abaixo para conferir o valor”).

Nestes primeiros exemplos constata-se que não apenas o remetente das mensagens, mas também o receptor pode (ou não) vivenciar as ocorrências como oportunidades de tomada de consciência da real motivação inconsciente: ao usar suas competência e habilidades para tais fins, o hacker pode agir na forma descrita movido por necessidades não conscientes de auto-afirmação ou desejo de reconhecimento; por outro lado, a ação da vítima (ao clicar no link oferecido na mensagem), pode ser motivada apenas pela curiosidade ou falta de habilidade no trato com essa via de comunicação. Mas também, com alta frequência, sua ação é regida por motivações inconscientes (cobiça, culpa, carência afetiva, entre outras).

São numerosas e populares na WEB ações consideradas violação dos direitos autorais envolvendo a propriedade intelectual ou artística. A modalidade mais frequente é o download direto da WEB (em sites como o 4Shared e o Pirate Bay) ou a troca de gravações musicais ou filmes por meio de programas criados para essa finalidade como o

Kazaa, o Morfheus.

Conforme assinalado, não está em discussão a legalidade da ação do internauta que “baixa” esses arquivos, mas os possíveis significados do ponto de vista psicológico, indicativos de algum conflito, compensação, etc. Essas atitudes dos internautas podem ter como objetivo apenas burlar as normas vigentes, obtendo acesso gratuito a conteúdos pelos quais pagaria, caso adquirisse a mídia física (CDs); ou, simplesmente, atender ao desejo de acesso às informações e produções culturais. Desse modo, esses comportamentos dos internautas podem – ou não – ser considerados como indicativos da manifestação de algum aspecto não consciente de sua personalidade, dependendo do seu objetivo ou interpretação atribuída.

Como se trata de ação virtual muito popular e generalizada, especialmente entre os mais jovens, as repercussões coletivas se fazem sentir, gerando polêmicas. Argumentando, os seus protagonistas e defensores alegam a irrestrita liberdade de expressão e acesso à informação que devem imperar na Internet visando democratizar conteúdos. Por seu lado, os autores das obras compartilhadas rebatem com argumentos éticos e financeiros, em defesa de seus direitos. Soluções conciliatórias para esse conflito de interesses começam a ser experimentadas na WEB. Cantores e instrumentistas oferecem download gratuito de uma parcela das suas produções como forma de divulgar

a obra. Em contrapartida, nos mesmos sites, divulgam e colocam à venda as produções integrais e/ou ingressos para shows.

O fácil acesso às publicações virtuais propicia o plágio de textos e de diversos tipos de criação intelectual. Mas o próprio meio virtual provê formas de identificação e controle dessas ações: digitando no Google um fragmento de texto pode-se facilmente localizar o(s) site(s) onde esse conteúdo está sendo plagiado. Dessa maneira, as cópias, plágios ou clonagens podem ser identificados com razoável agilidade. Provavelmente seria bem mais difícil detectá-las, caso fossem realizadas nas formas impressas tradicionais. De certa maneira, a intenção escusa (ou “sombria”) do autor do plágio virtual é “iluminada” pela ferramenta da qual se utiliza.

No entanto, as questões colocadas em pauta a partir do compartilhamento virtual de arquivos vão além dos efeitos pessoais gerados pela pretensa (ou real) violação do direito à propriedade intelectual individual. Talvez exponham também alguns aspectos da sombra coletiva da cultura atual, regida pelo consumo. Cultura na qual, segundo Byington (2008, p. 284):

A fixação matriarcal do consumo obsessivo e compulsivo transforma a aquisição de bens numa atividade compulsiva, alimentada por um marketing perverso, que manipula o ontológico através do ôntico, e identifica consciente e inconscientemente a posse das coisas com a realização do Ser.

As polêmicas geradas por essas últimas formas de navegação mencionadas vêm suscitando questionamentos mais amplos, bem como o surgimento de formas alternativas de criação, distribuições, partilha e comercialização dos bens culturais. Nas considerações finais serão retomados alguns desdobramentos desses processos, nos seus termos coletivos.

Outro tipo de navegação polêmica, desta vez na área médica, é a busca, por leigos, de informações sobre sintomas, diagnósticos, tratamentos e prognósticos dos males que os afetam, disponíveis nos sites sobre medicina e saúde. Alguns médicos relatam receber, em seus consultórios, pacientes ansiosos após terem pesquisado na Internet a respeito de seus sintomas. Atribuem tal condição ao fato dessas pessoas terem acessado descrições de patologias frequentemente acompanhadas de imagens das piores evoluções possíveis, impressionado-os de forma negativa, pois não detêm as informações necessárias para discriminar quais as características da doença que realmente lhes dizem respeito.

Em função dos efeitos possivelmente lesivos, a veiculação dessas informações desperta a atenção dos meios da saúde, que apontam o papel da indústria farmacêutica, de alguns médicos, da imprensa em geral - e da Internet em particular - no estímulo do chamado disease-mongering, uma expressão traduzida por Melo (2008) como “promoção da doença”. No artigo, o autor descreve algumas estratégias utilizadas pela indústria farmacêutica visando promover o aumento da venda de seus produtos: “A I F (indústria farmacêutica) interage com os médicos de diversas formas (visita de delegados, de informações médicas, apoio na formação, jornais, correios, Internet, etc.) tendo como objetivo final a promoção do medicamento” (MELO, 2008). Prosseguindo na análise, além de destacar o papel do médico na orientação e esclarecimento do seu doente - minimizando os seus efeitos danosos - avalia também as consequências desse procedimento para a coletividade:

O papel do médico deve ser informar as pessoas sobre os benefícios e riscos do tratamento (ou do não tratamento) para a sua condição particular. Não é por acaso que nos países mais ricos, e comparativamente aos países mais pobres, quanto mais as pessoas estão expostas aos cuidados de saúde e a toda essa retórica da promoção da doença, mais inseguras e mais doentes se sentem. (MELO, 2008, Acesso em 10/07/08)

Em estudo publicado sob o título “A internet, o paciente expert e a prática médica: uma análise bibliográfica”, um grupo de pesquisadores brasileiros investigou até que ponto o paciente expert - portador de informações disponíveis na Internet - consegue interferir na autoridade e prestígio social do médico e, consequentemente, alterar a relação médico-paciente, tradicionalmente baseada na assimetria de informações. A hipótese inicial foi de que “o aumento do poder (empowerment) do paciente nessa relação pode levar, em condição extrema, à desprofissionalização do médico” (GARBIN, PEREIRA NETO e GUILLAN, 2008). A pesquisa consistiu na análise de quinze artigos onde o tema é abordado por autores médicos. Como conclusão, constatou a falta de consenso nos artigos analisados sobre o potencial que as informações obtidas na Internet têm de modificar ou interferir na relação médico-paciente, pois foram identificadas posições distintas e até antagônicas sobre essa possibilidade. No entanto, foi salientada a valorização crescente do papel da Internet no fornecimento de informações acessíveis a qualquer momento, de forma rápida e atualizada. Destacam – além dos sites - o papel das comunidades virtuais dedicadas às doenças crônicas, raras ou estigmatizantes, que além de informações fornecem também apoio e orientações especificamente voltadas a esses grupos de pessoas. Como o estudo foi realizado com base em trabalhos na maior parte publicados Inglaterra, os pesquisadores sugerem que a mesma questão deva ser averiguada em nosso meio. Mas, outra consideração apresentada na conclusão do

trabalho interessa-nos de modo especial (HENWOOD et al. 2003, apud GARBIN, PEREIRA NETO e GUILLAN, 2008):

De qualquer forma, as informações disponíveis na Internet têm potencial para modificar a relação médico-paciente. Ao elevarem o poder decisório do paciente, colocam em questão a formação e autoridade profissional médica e desafiam o médico a estar constantemente atualizado. Assim, criam a possibilidade de decisões mais compartilhadas.

No trabalho desenvolvido na Clínica Escola da PUC-SP observa-se uma versão análoga desse processo ocorrendo na área da Psicologia, quando leigos enviam e-mails solicitando orientações73 após realizarem pesquisas na Internet a respeito de seus próprios sintomas, de algum familiar ou pessoa próxima. Essa demanda tende a se acentuar em algumas ocasiões como, especialmente, após a publicação - pela mídia impressa ou digital - de matérias sobre os riscos envolvidos nos usos das novas tecnologias (computadores e seus derivados).

É possível que algum dano realmente ocorra, quando os dados acessados por leigos são apresentados de forma apenas aparentemente bem fundamentada, pois nem sempre é possível ao internauta avaliar a credibilidade das fontes citadas pela mídia digital. Por outro lado, não pode ser ignorado o aspecto positivo implícito nas divulgações no que se refere à ampliação do acesso às informações gerado pela informatização das mídias jornalísticas. Conforme apontamos no capítulo 4, a população tem hoje amplo acesso às notícias divulgadas pela imprensa, e se considerada por este ângulo, a questão proposta pode ser avaliada – também - sob outro ângulo: em muitos casos, o cliente mais informado, mais crítico, está mais capacitado a assumir o papel de corresponsável pela busca da sua “cura”. A distinção entre as duas condições se dará, evidentemente, em função de grau de discernimento crítico e diferenciação pessoal, condições que não são “geradas”, mas apenas “evidenciados” pelo acesso às diversas mídias, digitais ou impressas.

Dessa maneira, o comportamento do cliente internauta pode indicar o início de uma nova etapa na vivência coletiva do arquétipo do “curador – ferido”; uma fase na qual talvez possam surgir formas alternativas do exercício do “poder” nas relações de ajuda de forma geral - incluindo o magistério, a medicina e a psicoterapia -, tema descrito de forma emblemática por Guggenbül-Craig ao analisar essas relações e apontar os problemas

73 Referimo-nos ao Serviço de Orientação Psicológica via e-mail oferecido pelo NPPI às pessoas que apresentam usos compulsivos ou excêntricos dos computadores. A oferta desse serviço pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico:

decorrentes da cisão do arquétipo envolvido nessas relações (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1978). Este tema será retomado nas considerações finais do trabalho.