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CIBERESPAÇO COMO ESPAÇO PSÍQUICO

5.3 Novas vias de expressão de antigos conflitos humanos

5.3.4 Invasão de privacidade

Pelas vias da Internet a intimidade dos internautas pode se tornar pública, por meio da divulgação de informações não autorizadas, ou pela coleta, difusão e distorção dos dados por eles mesmos colocados, ingênua ou inadvertidamente em sites de relacionamentos ou comércio eletrônico. Essa forma de obtenção e publicação de informação frequentemente se transforma em violação da privacidade.

Como ocorre na maioria das condutas descritas, aqui também há várias nuances ou graus de repercussão e consequências a partir da exposição da intimidade dos internautas: da utilização das informações coletadas sobre os hábitos de consumo, visando ao posterior envio de mensagens contendo ofertas de produtos, até casos em que a intimidade dos relacionamentos virtuais - supostamente secretos - é exposta de formas variadas.

Uma jovem de vinte e quatro anos, depois de formada, foi cursar pós-graduação no exterior. Do país distante enviou e-mail para a ex-terapeuta contando as angústias a respeito de novas experiências sexuais que vivenciava, apesar de ter deixado o namorado no Brasil. Comentou também sobre a continuidade do uso de maconha, de como havia experimentado outra droga e o que sentira nessa experiência. Sua mãe, que havia descoberto sua senha, estabeleceu o hábito de ler as mensagens enviadas pela filha a outras pessoas, e teve acesso à mensagem dirigida à terapeuta. Chocada com as facetas da vida de filha – até então desconhecidas - entrou em pânico: promoveu um grande escândalo, expondo a intimidade da jovem perante a família e amigos. Ao cair em si, a mãe entrou em depressão e precisou recorrer a atendimento psicológico acompanhado de medicação psiquiátrica.

Situação quase rotineira surgida com a popularização da Internet (e dos relacionamentos virtuais) é o desvelamento das práticas sexuais tidas como secretas, para um dos parceiros de um casal, como mostra este exemplo: uma jovem esposa, aparentemente bem casada, com filhos ainda crianças, moradora de uma cidade pequena, resolveu pesquisar as atividades virtuais de seu marido internauta. Na pesquisa identificou a foto do seu “corpo” em uma comunidade homossexual do Orkut. Abrindo a questão com o parceiro, ele admitiu ter mantido essas atividades, chegando a vivenciar contatos sexuais presenciais com homens, mas alegou ter sido motivado apenas por curiosidade. A descoberta dessa face do companheiro gerou grande insegurança, especialmente sobre o futuro de seu casamento, e na forma como passou a encarar a sexualidade vivida pelo casal. Desorientada e aflita, buscou ajuda do serviço de atendimento psicológico.

Nessa situação observa-se, simultaneamente, a expressão de conteúdos (ou “intenções”) pouco conscientes, por parte dos dois parceiros: verifica-se, de maneira simétrica, de um lado, a infidelidade vivida de forma supostamente secreta, e a atitude de desconfiança assumida pela esposa, ao procurar investigar as atividades por ele exercidas na Internet. Seu ato de acessar (de forma dissimulada) o perfil do marido no

Orkut provavelmente envolveu algum grau de suspeita, a ponto de invadir desse modo a

privacidade do parceiro.

Nas expressões virtuais, a infidelidade conjugal é revelada por novos indícios. Não mais a tradicional marca de batom, mas suas versões informatizadas, como mensagens de correio eletrônico, perfis mantidos em sites de relacionamento, ou ainda registros de acesso a conteúdos pornográficos. Indícios intencionalmente investigados pelo parceiro traído, ou vistos “acidentalmente”, quando o parceiro infiel “esquece”, aberta, a tela do computador doméstico. Nesses casos, novamente surge a hipótese da atuação do inconsciente do casal, trazendo à tona elementos que provavelmente rondavam a dinâmica da relação, à espera apenas da oportunidade para se expressar. Cabe a formulação da seguinte questão: nessas situações, estaremos lidando com novas e perversas dinâmicas, geradas pela Internet - como apregoam veementemente alguns dos críticos da vida virtual - ou apenas com novas vias de expressão de antigos conflitos humanos? Parece-nos bem mais plausível a segunda opção.

Em alguns casos de infidelidade virtual desvendada, o acesso ao conteúdo supostamente secreto é praticamente facilitado (ou viabilizado, ainda que inconscientemente) pelo seu protagonista. O fato faz pensar em certo grau de desejo (ou

mesmo necessidade, mesmo não consciente) do seu autor em ter sua atitude revelada. Em caso positivo, qual seria a possível função da revelação, tendo em mente a dinâmica conjugal? Para Jung: “Qualquer segredo pessoal atua como pecado ou culpa, independentemente de ser considerado assim ou não, do ponto de vista da moral convencional” (JUNG, 1985, § 129). Supõe-se que uma possível função do desvelamento, por parte do parceiro infiel perante seu cônjuge, seja atender à sua necessidade íntima de confissão, ou busca de alívio da culpa, ainda que a ação se expresse inconscientemente.

Sobre o segredo, Hillman (1993) oferece algumas luzes ao entendimento dessa fugidia nuance da alma humana. Para Hillman, “o sigilo é básico para a individualidade” (HILLMAN, 1993, p. 197), pois é necessária essa condição de “separação” em relação aos demais para se descobrir a alma individual. No entanto, Hillman fala também a respeito dos “segredos indevidos”, ou seja, aqueles que “isolam e envenenam”:

Segredos indevidos e aqueles guardados erroneamente nos isolam e agem como veneno a partir de dentro, de modo que a confissão é catártica e a comunicação terapêutica. A exigência paranóide de lealdade absoluta, aquele medo de traição e exposição, demonstram que não somos mais capazes de amar e ser feridos. O amor existe quando a traição é possível: caso contrário, não há risco. Amar em segurança é a parte menor do amor. (HILLMAN, 1993, p. 197)

Entre outras possíveis interpretações, vista por esse ângulo paradoxal, a infidelidade revelada talvez seja entendida como expressão da necessidade - consciente ou inconsciente - do parceiro infiel de realizar uma espécie de “prova” ou teste da resistência da vinculação afetiva existente por parte do seu par.

De toda forma, a violação da privacidade por esses meios gera efeitos perturbadores, de forma simétrica, para ambos os parceiros envolvidos, e pode repercutir de maneira impactante tanto para a pessoa investigada quanto para o seu invasor. Impactos desse gênero atingem não apenas a vida dos casais, em função de infidelidades postas à luz, mas alcançam grupos mais amplos, conforme ilustram os casos relatados.