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A relativização da impenhorabilidade dos rendimentos de natureza alimentar como

Tendo em vista a situação acima descrita, podem-se apontar, então, vários motivos e indícios de que a relativização da impenhorabilidade dos rendimentos de natureza alimentar é viável no ordenamento jurídico brasileiro e de que esse seria um excelente ponto de partida para a concretização da efetividade do processo executivo.

O primeiro motivo que sustenta a viabilidade dessa relativização é o fato de que a própria regra da impenhorabilidade já foi relativizada pelo legislador. Conforme já mencionado anteriormente, a exceção contida no § 2º, do art. 649, do CPC, demonstra que o legislador admite que, em certas situações, é válido que haja a flexibilização dessa regra, para que a justiça social seja promovida.

Seguindo essa linha de raciocínio, portanto, todos os casos poderiam ser analisados em concreto, para que o melhor e mais justo resultado seja alcançado em todos eles. De acordo com alguns processualistas, conforme colacionado anteriormente, a interpretação dessa regra da impenhorabilidade de forma absoluta se apresentaria inconstitucional nos casos em que o devedor tivesse condições de arcar com suas dívidas sem o prejuízo de sua dignidade.

O segundo argumento que sustenta a viabilidade da relativização é extraído da Lei nº 10.820/2003, que possibilitou o empréstimo consignado. Ela estabeleceu em se art. 6º, §5º93 o percentual máximo de 30% para descontos por empréstimos voluntários. Esse valor tem sido aplicado, por analogia, nos casos de condenação ao pagamento de prestação alimentícia e nos casos excepcionais em que os tribunais autorizam a penhora de parte dos rendimentos do exequente em execução.

Esse número foi estabelecido por haver o entendimento de que nessa porcentagem não seria comprometido o sustento nem a dignidade do segurado do INSS. Então, o raciocínio se estabelece da seguinte forma: se o próprio segurado pode abrir mão de até 30% de seus

93 “Art. 6º. Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS a proceder aos descontos referidos no art. 1º desta Lei, bem como autorizar, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS.

[...]

§ 5º Os descontos e as retenções mencionados no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite de 30% (trinta por cento) do valor dos benefícios.”

rendimentos mensamente, caso queira fazer um empréstimo, da mesma forma esses 30% podem ser aplicados a qualquer outro trabalhador.

A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 199094, apresenta outra situação em que o próprio legislador autoriza a quebra da intangibilidade dos rendimentos de natureza alimentar dos servidores públicos, no caso, remunerações, proventos e pensões. No primeiro momento, o art. 4595 da mencionada lei autoriza o desconto sobre a remuneração ou provento do servidor, nos casos de imposição legal ou mandado judicial, analisando a contrario sensu a redação do dispositivo. Já no artigo 4696 da referida lei autoriza que, no caso de reposições ou indenizações ao erário o servidor deverá pagar, podendo esse valor ser parcelado e a parcela não poderá ultrapassar o valor de 10% dos rendimentos do servidor.

Portanto, analisando os exemplos acima, comprova-se que o próprio legislador reconhece que, em certos casos, a intangibilidade dos rendimentos de natureza alimentar pode ser mitigada diante da importância do outro direito conflitante, respeitando o mínimo existencial e evitando desproteger o devedor de forma a colocá-lo em situação de penúria, mas enxergando a necessidade da parte credora.

É exatamente esse ponto defendido no presente trabalho: o reconhecimento da importância do rol de bens impenhoráveis, principalmente o do inciso IV, do art. 649, porém, com a análise de cada caso em concreto, visto que a aplicação absoluta desse artigo pode trazer um grande prejuízo para o credor e para a economia do país como um todo.

Não é razoável imputar essa impenhorabilidade ao credor quando o devedor tem condições de arcar com o pagamento da obrigação, sem que ocorram maiores prejuízos. Por óbvio, a comprovação da necessidade do valor penhorado para o sustento do devedor deve ser feita por ele mesmo, visto que seria impossível ao credor obter essa informação.

Portanto, no caso de autorização judicial para o bloqueio de parte dos rendimentos do executado, este deverá comprovar que o valor é necessário para sua sobrevivência. Ao contrário do que ocorre atualmente, quando o devedor precisa apenas demonstrar que o valor é verba de natureza alimentar.

94 BRASIL. Lei nº 8.112 de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm> Acesso em: 15 set. 2014.

95 Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento. (BRASIL, 1990.)

96“Art. 46. As reposições e indenizações ao erário, atualizadas até 30 de junho de 1994, serão previamente comunicadas ao servidor ativo, aposentado ou ao pensionista, para pagamento, no prazo máximo de trinta dias, podendo ser parceladas, a pedido do interessado.

§ 1º O valor de cada parcela não poderá ser inferior ao correspondente a dez por cento da remuneração, provento ou pensão.”(BRASIL, 1990.)

A excepcionalidade da penhora de verbas alimentares começa a ser admitida pela jurisprudência de alguns tribunais, nos casos de adimplemento de dívidas de natureza não alimentar, desde que preservada, como dito, as condições de sobrevivência do devedor e de sua família, no intuito de se conferir maior efetividade ao processo executório.

Não é justa a ausência de distinção entre os devedores, utilizando apenas o critério da impenhorabilidade, sem análise do valor auferido em contraponto ao valor da dívida, por força do princípio constitucional da igualdade.

Os devedores não podem gozar dessa situação de forma absoluta, a ponto de ofender os princípios da isonomia, da efetividade da execução, da igualmente e da dignidade da pessoa humana, no caso de, ao contrário do que se costuma imaginar, não o devedor, mas o credor estar necessitado e ter sua dignidade afetada pelo não do recebimento do débito.

Entretanto, esse entendimento ainda não é dominante nos Tribunais Pátrios. Aliás, se fosse para apontar algum posicionamento majoritário, seria pela rigidez e caráter absoluto do art. 649, inciso IV, do CPC. Não tanto nos Tribunais estaduais, que tem decidido pela mitigação dessa regra em muitos casos, sendo até majoritária em alguns deles, mas sim no Superior Tribunal de Justiça, que recentemente tem lançado algumas decisões inovadoras, em casos bem diferenciados, mas, a maioria das suas Turmas ainda preza pela imutabilidade do artigo em comento.

Um dos casos emblemáticos em que o STJ mudou seu entendimento diz respeito à mitigação da regra em caso de execução de honorários advocatícios, que foi considerado verba de natureza alimentar. Nesses casos, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo de forma favorável à mitigação da regra, e bloqueio de parte dos rendimentos, mesmo que de natureza alimentar.

No entanto, nos demais casos o Egrégio Tribunal ainda se mantém firme. Portanto, a mudança de entendimento vem ocorrendo principalmente entre os juízes das comarcas e desembargadores dos Tribunais estaduais.

Podem ser citados como exemplo os Tribunais do Distrito Federal, Paraná, Minas Gerais, entre outros, que mantém em sua jurisprudência dominante o entendimento pela mitigação da regra da impenhorabilidade do inciso IV do art. 649 do CPC. Nesse diapasão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA. BLOQUEIO ON LINE PELO SISTEMA BACENJUD. CONTA SALÁRIO. POSSIBILIDADE DESDE QUE EM PERCENTUAL RAZOÁVEL, LIMITADO A 30% DO SALDO EXISTENTE NA CONTA E QUE NÃO COMPROMETA A DIGNIDADE DO SUSTENTO DO DEVEDOR. A JURISPRUDÊNCIA DESTA E. CORTE VEM ENTENDENDO QUE, COM O

ADVENTO DA RECENTE REFORMA PROCESSUAL INTRODUZIDA NO PROCEDIMENTO DA EXECUÇÃO PELO CAPUT DO ART. 655-A, COM O ESCOPO DE IMPRIMIR CELERIDADE E EFETIVIDADE AO PROCESSO DE EXECUÇÃO, TORNOU-SE LEGAL O BLOQUEIO ON LINE DE VALORES DEPOSITADOS NA CONTA CORRENTE DO EXECUTADO, AINDA QUE SE TRATE DE CONTA SALÁRIO, DESDE QUE EM PERCENTUAL RAZOÁVEL - LIMITADO A 30% DO SALDO EXISTENTE NA CONTA - A FIM DE NÃO COMPROMETER A DIGNIDADE DE SEU SUSTENTO. (REFORMULAÇÃO DE ENTENDIMENTO PARA SE AJUSTAR AO ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA MAJORITÁRIA DESTE TRIBUNAL).97

No mesmo sentido:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL, EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - DECISÃO QUE DETERMINOU O BLOQUEIO DE 30% DOS RENDIMENTOS LÍQUIDOS DO EXECUTADO, LIBERANDO O VALOR CONSTRITO ANTERIORMENTE - IRRESIGNAÇÃO DO EXECUTADO/AGRAVANTE - ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DA VERBA SALARIAL - MITIGAÇÃO DO ART. 649, IV, DO CPC - EFETIVIDADE DO PROCESSO - PECULIARIDADES DO CASO, QUE ADMITEM A RETENÇÃO DO PERCENTUAL DETERMINADO - RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE - ANALOGIA AO ART. 6º, § 5º, DA LEI Nº 10.820/2003 - DECISÃO MANTIDA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.98

Para ilustrar o que tem sido dito no decorrer deste trabalho, destaca-se um trecho do voto do Desembargador José Hipólito Xavier Da Silva, do acórdão acima colacionado, proferido no Agravo de Instrumento nº 1076199-8, pela 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, que reflete exatamente o entendimento que deve nortear o processo de execução:

Na hipótese dos autos, há uma série de circunstâncias que justificam a manutenção da decisão hostilizada, que determinou a penhora de 30% da verba salarial do Executado/Agravante.

A análise dos elementos que compõe o caderno processual permite inferir que a decisão agravada se revela não apenas adequada, como, também, necessária para garantir a efetividade da Execução.

Isso porque, resta demonstrado, ao menos do traslado do Agravo, que a Execução tramita há mais de quatro anos sem qualquer resultado útil, na medida em que o Exequente/Agravado tentou, de diversas maneiras, encontrar bens disponíveis para garantir a execução, sem, contudo, lograr êxito nesse intento, o que aponta a especificidade do caso concreto para a autorização da relativização da regra da impenhorabilidade, prevista no art. 649, IV, do CPC.

Com efeito, é possível verificar do extrato da conta-salário de titularidade do Agravante (fls. 132-TJ) que há saldo positivo ao final do mês de março do corrente e, da mesma forma, no seguinte mês de abril, ambos refletidos após o depósito de sua remuneração mensal e o débito de várias despesas. Percebe-se, pelo extrato

97 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. AI 128073720108070000 DF 0012807-37.2010.807.0000, Relator: Natanael Caetano. j: 13/10/2010, 1ª Turma Cível.

98 PARANÁ. Tribunal de Justiça - AI 1076199-8, Relator: José Hipólito Xavier da Silva, J: 29/01/2014, 14ª Câmara Cível.

juntado, que, no final de ambos os meses, restou saldo positivo, no valor de R$ 2.601,15 (dois mil seiscentos e um reais e quinze centavos).

Salienta-se, nesse sentido, que inexistem outros bens ou direitos em nome do Executado/Agravante, capazes de responder pela dívida, consoante o próprio Agravante expõe na inicial do Agravo e em petições no curso da demanda originária.

Desse modo, observa-se que a única forma do Exequente/Agravado alcançar a satisfação de seu crédito é admitir a penhora parcial do salário do Executado/Agravante, em observância aos princípios da efetividade do processo e da responsabilidade patrimonial do executado, a fim de garantir o resultado do processo, sem que isso implique em ofensa à dignidade da pessoa humana do Executado/Agravante.

De fato, é cediço que cumpre ao magistrado realizar a devida ponderação entre os valores em conflito, o que, no caso, ocorre entre o princípio da efetividade do processo e a regra da impenhorabilidade do salário do devedor considerando-se que, conforme já dito, a decisão hostilizada não implica em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto a constrição não trará, até que se prove o contrário, prejuízo à subsistência do devedor e de sua família.

Importante salientar, ainda a esse respeito, que tanto o princípio da efetividade do processo e a regra da impenhorabilidade do salário prevista no art. 649, IV, do Código de Processo Civil, constituem normas do ordenamento jurídico brasileiro e devem, portanto, ser consideradas, de modo a possibilitar a realização da justiça no caso concreto.

Não se pode olvidar, neste sentido, que a tutela jurisdicional deve ser prestada em sua plenitude, em observância ao princípio da efetividade do processo, implicitamente previsto na Constituição Federal.99 (grifou-se)

O trecho da decisão acima reflete exatamente a realidade do procedimento de execução no sistema jurisdicional brasileiro. O devedor contrai uma dívida conscientemente e deixa de cumprir com sua obrigação para com o credor, algumas vezes por dificuldades financeiras, outras por má fé e outras por falta de planejamento. Muitos dos processos de execução se arrastam por muitos anos, pois não são encontrados bens passíveis de constrição em nome do devedor para sanar a dívida e, ao final, só resta ao devedor se conformar que talvez nunca receba seu dinheiro.

Outra situação muito comum na jurisprudência é quando se constata que o valor auferido como verba de natureza alimentar sofre um acúmulo na conta do executado de um mês para o outro, a chamada formação de reserva de capital. Ou seja, quando de um mês para o outro o devedor não utiliza a totalidade do valor recebido, essa quantia que “sobra”, não foi utilizada para suprir as necessidades do devedor durante o mês, portanto, é reserva de capital. Não se pode admitir que o devedor “poupe dinheiro” ou tenha valores sobrando em sua conta bancária quando existem credores que esperam pelo recebimento desses valores.

99 PARANÁ. Tribunal de Justiça. AI 1076199-8, Relator: José Hipólito Xavier da Silva, j: 29/01/2014, 14ª Câmara Cível.

Utilizando essa lógica, o valor excedente poderá ser bloqueado mensalmente até que a obrigação seja cumprida, sem que haja prejuízo ao devedor. A decisão a seguir exprime bem esse entendimento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - BLOQUEIO DE VALORES EM CONTA BANCÁRIA - VALORES DECORRENTES DE VERBA SALARIAL - IMPENHORABILIDADE - MITIGAÇÃO DA REGRA EM FACE DA AUSÊNCIA DE UTILIZAÇÃO DA INTEGRALIDADE DA VERBA PARA SUPRIR NECESSIDADES BÁSICAS - FORMAÇÃO DE RESERVA DE CAPITAL - MANUTENÇÃO DO BLOQUEIO DE TRINTA POR CENTO DO SALÁRIO - RECURSO PROVIDO.100 (grifou-se) Ocorre que, se o devedor tem como única fonte de renda seu salário, aposentadoria, pensão, entre outras figuras do inciso IV do art. 649 do CPC, se não for desse valor auferido mensamente, de onde irá tirar o dinheiro para pagar sua dívida?

Partindo desse raciocínio, não parece tão absurda a ideia da penhora de parte dos rendimentos de natureza alimentar do devedor.

Portanto, conforme foi apresentado neste tópico, pode-se concluir que a impenhorabilidade dos rendimentos de natureza alimentar encontra várias exceções na própria legislação, e dessa forma, a proposta de bloqueio de um percentual de até 30%, como vem sendo convencionado pela jurisprudência, se mostra uma solução eficaz para grande parte dos casos de execuções frustradas.

Analisando cada caso em concreto e se abstendo de interpretar a legislação de forma absoluta, lembrado dos outros princípios que norteiam a execução e não só os que o legislador decidiu privilegiar no inciso IV, do art. 649, do CPC, o procedimento de execução pode ganhar uma nova faceta, e quem sabe, a consolidação desse entendimento possa até trazer grandes mudanças para a economia do país e uma nova consciência para os devedores irresponsáveis e os que agem de má-fé.

Acredita-se que, dessa forma, a relativização da regra de impenhorabilidade dos rendimentos de natureza alimentar, seja uma maneira de aplicar e colocar em destaque um princípio que constantemente é esquecido, o da efetividade da execução.

100 PARANÁ. Tribunal de Justça. AI 905.081-3, Relator: Luiz Osorio Moraes Panza. Data de j. 04/09/2012, 6ª Câmara Cível.