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3.2 – A relevância prática do conceito de sistema

Críticas e reconstrução do sistema: a reformulação metodológica e estrutural

II. 3.2 – A relevância prática do conceito de sistema

CANARIS enfrenta a temática da relevância prática da noção de sistema para o direito, e, neste desiderato, começa repudiando a argumentação dos adversários do pensamento sistemático justamente pelo fato de que seus

apontamentos se dirigem ao sistema externo ou axiomático dedutivo319.

Isto porque, conforme já exposto, ele somente visualiza a importância do sistema jurídico se este for compreendido em sua perspectiva axiológica e teleológica, a tal ponto que “o argumento sistemático é, então, apenas uma forma

especial de fundamentação teleológica e, como tal, deve, desde logo, ser admissível e relevante”320.

Portanto, a ordenação teleológica e a defesa da unidade valorativa conjugada com a adequação do direito são os dois elementos decisivos que permitem sua obtenção a partir do sistema.

Em relação ao primeiro elemento, CANARIS ressalta que a ordenação sistemática, ao solicitar os valores e princípios gerais do ordenamento, é equivalente

à afirmação acerca do conteúdo teleológico321 do direito, pois são as indagações

sistemáticas que remetem à discussão acerca da ‘essência’ e do conteúdo valorativo do direito vigente, inaugurando, destarte, o ‘processo de determinação da essência’.

Esse ‘processo de determinação da essência’ fornece o sentido no qual o caso ou a regra especial deve ser entendida, obtido a partir da busca dos valores fundamentais do todo (geral), onde há um efeito mútuo de conhecimento do objeto

em causa e sua qualificação sistemática322, o que enseja a segunda função da

318 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático..., op. cit., ps. 109-110.

319 Idem, p. 151.

320 Ibidem, p. 153.

321 Ibid., p. 154.

ordenação sistemática: o entendimento da norma não de forma isolada, mas como parte de uma totalidade ordenada por alguns princípios.

Semelhante processo ocorre quando há uma inovação normativa, pois aí se instaura uma relação dialética circular de esclarecimento entre o geral e o especial, propiciando o enriquecimento do próprio sistema.

Com isso, a interpretação sistemática ganha importância e uma nova dimensão, à medida que deixa de ser mera interpretação a partir do sistema exterior da lei (que para CANARIS é mera extensão da interpretação gramatical) e passa a incidir sobre a argumentação retirada do sistema interno, colocando-se como um prolongamento da interpretação teleológica e num grau que progrida da ‘ratio legis’ para a ‘ratio iuris323’.

De outra feita, CANARIS invoca os mesmos argumentos ao tratar da integração das lacunas, pois no momento da determinação dos valores fundamentais da ordem jurídica é que surgem os princípios gerais, elementos que tornam possível sua solução.

Com efeito, também na integração das lacunas opera o efeito mútuo de reconhecimento do geral e do especial, pois a partir do exemplo das teorias da criação, do contrato ou da aparência jurídica na matéria referente aos títulos de crédito, CANARIS repele a posição de HECK (para quem a opção por qualquer dessas teorias não contém juízos de valor, o que só acontece depois da integração das lacunas), pois, no seu entendimento:

Procura-se, primeiro, entender as determinações da lei com o auxílio de uma das teorias e ordená-las nos valores fundamentais do nosso Direito privado; de seguida, retiram-se da teoria, as conclusões para os casos não regulados; pondera-se a convincibilidade dos resultados assim obtidos; modifica-se, disso sendo o caso, a teoria, numa ou noutra direcção, ou renovam-se as suas conseqüências, e assim por diante. Portanto, não se integra primeiro a lacuna e, então, confecciona-se a teoria; a lacuna é antes integrada aquando da formação da teoria e a teoria é elaborada aquando da integração da lacuna324.

O segundo elemento decisivo para o significado do sistema para o direito, quer seja, o da defesa da unidade valorativa e da adequação na interpretação jurídica, reflete outra função do sistema, que é preservar o geral ainda que na

323 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático..., op. cit., p. 159.

especialidade, operando, destarte, no sentido inverso do primeiro elemento, cuja função é dar sentido ao especial a partir do geral.

Contudo, o próprio CANARIS adverte que, mesmo distintos, ambos os elementos se articulam dialeticamente no momento da obtenção do direito, de modo

que uma função se remete permanentemente à outra325.

Essa segunda função do sistema opera a partir de duas perspectivas diversas, uma de caráter conservador, cujo objetivo é a prevenção da contradição de valores e a eliminação de soluções jurídicas consideradas contrárias teleológica e axiologicamente ao sistema, sendo útil também no direcionamento de como o direito deve ser aperfeiçoado, e outra, de caráter dinamizador, no qual a solução se desenvolve da maneira determinada pelo sistema, como no caso da determinação das lacunas, onde uma vez reconhecido o significado ético-jurídico de um princípio e

sua hierarquia jurídico-positiva326, ele se transforma numa regra de adequação

valorativa que promove um aperfeiçoamento inesperado do direito.

Destarte, a tarefa de preservação da totalidade do sistema se realiza através da conjunção do aspecto conservador de viés negativo com o dinamizador de caráter positivo, conforme se depreende das próprias palavras de CANARIS:

Assim surge junto à primeira e de algum modo negativa função do sistema, de prevenir o aparecimento de contradições de valores, a função, em certa medida positiva, de desenvolver o Direito de acordo com o peso interior dos seus princípios constitutivos ou << gerais>>; em ambos os casos trata-se da defesa da unidade valorativa, que constata, também, numa lacuna não integrada contra a regra da igualdade, numa contradição de valor, sem sentido amplo327.

Ademais, ao avançar no tema do papel do sistema na busca do direito, CANARIS retoma a crítica à escola da jurisprudência dos interesses e destaca que a própria ordenação sistemática possui valores vinculantes que são firmados pelas formulações doutrinárias e jurisprudenciais e até mesmo pelas ‘construções do

legislador’, à medida que, em sua opinião, o legislador não pode prescrever

325 CANARIS, Claus-Wilhelm. op. cit. p. 172.

326 Idem, ps. 172 e ss.

diretrizes dogmáticas nem “estatuir a justeza de determinada teoria como tal, mas

pode decidir-se por ela através das conseqüências jurídicas”328.