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3.3 – A interpretação do direito no paradigma da filosofia da consciência A metodologia lógico-dedutiva do positivismo formalista exige que se

possa extrair da norma uma verdade única, justamente porque ela é tratada como um axioma que funciona como ponto de partida para a dedução.

136 Ibidem, ps. 147 e ss.

137 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico... op. cit., p. 212.

Tal concepção resulta na acima citada teoria mecanicista da interpretação do direito, a qual surge no contexto do paradigma da filosofia da consciência como uma crença na possibilidade de uma interpretação neutra, objetiva e imparcial, que

pudesse extrair do texto legal seu exato e real sentido139, desobrigando o jurista de

seu compromisso com a solução do conflito real existente na sociedade em prol de uma postura formalista, que visa resolver apenas o conflito jurídico-conceitual, conforme já bem diagnosticado por STRECK ao explicar a ‘astúcia da razão

dogmática’140.

Nesta perspectiva, Carlos MAXIMILIANO, ícone deste modelo de hermenêutica no Brasil e amplamente aceito pelos juristas e doutrinadores pátrios, enuncia o seu pensamento nas seguintes palavras:

Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-separa-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que seu autor. Consideram-na como ‘disposição mais ou menos imperativa, materializada num texto, a fim de realizar sob um ângulo determinado a harmonia social, objeto supremo do Direito’. Logo, ao intérprete incumbe

apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração

primitiva141.

Crê o citado jurista que é possível ao intérprete se despojar de suas paixões, crenças, valores e significados de mundo através da autocrítica e da autofiscalização, evitando, assim, viciar a interpretação:

139 Essa crença é comumente reproduzida em manuais consagrados e, principalmente, em apostilas e/ou livretos utilizados nos cursos preparatórios para concursos, impregnando os futuros profissionais do direito de ilusões cientificistas insustentáveis teoricamente. Veja-se o excerto do material utilizado em um famoso curso de preparação, para explicar a interpretação da norma penal: “É a atividade que consiste em extrair da norma penal seu

exato alcance e real significado” Quanto à sua natureza, “a interpretação deve buscar a

vontade da lei, desconsiderando a vontade de quem a fez. A lei terminada independe de seu passado, importando apenas o que está contido em seus preceitos”. Vide: CAPEZ,

Fernando. Direito Penal. Parte geral. 7ª edição. São Paulo: Edições Paloma, 2001, p. 22.

140 Segundo STRECK, a ‘astúcia da razão dogmática’ se realiza no deslocamento do discurso do plano do mundo da vida para o das abstrações jurídicas, fazendo com que o direito se preocupe apenas com o discurso sobre a lei. Cf. STRECK, Lênio. Hermenêutica

jurídica e(m) crise... op. cit., ps. 61 e ss.

141 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980 ps. 30 e 31. Também citado por STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e(m)

Deve o intérprete, acima de tudo, desconfiar de si, pesar bem as razões pró e contra, e verificar, esmeradamente, se é a verdadeira justiça ou se são idéias preconcebidas que o inclinam neste ou naquele sentido.

‘Conhece-te a ti mesmo’ – preceituava o filósofo ateniense. Pode-se repetir o conselho, porém completado assim: - ‘e desconfia de ti, quando for mister compreender e aplicar o Direito’. Esteja vigilante o magistrado, a fim de não sobrepor, sem o perceber, de boa fé, o seu parecer pessoal à consciência jurídica da coletividade; inspire-se no amor e zelo pela justiça e ‘soerga o

espírito até uma atmosfera serena onde o não ofusquem as nuvens das paixões’142.

Esta solução não é nova nem suficiente e recai no velho dilema da neutralidade do sujeito das ciências sociais, que é o mito do Barão de Münchhausen, personagem que tenta se salvar do pântano puxando os próprios

cabelos, conforme assinala Michel LÖWY143.

Daí infere-se, seguindo os passos de STRECK, que a tradicional teoria da interpretação, oriunda da hermenêutica objetivista exposta na obra de MAXIMILIANO, encara a linguagem como um terceiro elemento entre o sujeito cognoscente e o objeto, busca conceitos ensimesmados nas palavras da lei e faz com que o sujeito tenha que extrair da norma o seu sentido mais puro possível, através da utilização de diversos métodos, tais como o gramatical, histórico,

teleológico, entre outros144.

Analisando a questão, Paul RICOEUR aduz que a hermenêutica vista sob esse prisma exerce uma função de distanciamento alienante que recai na seguinte contradição:

de um lado, dissemos, o distanciamento alienante é a atitude a partir da qual é possível a objetivação das ciências do espírito ou humanas; mas esse distanciamento, que condiciona o estatuto científico das ciências, é, ao mesmo

142 MAXILIANO, Carlos. Hermenêutica.. op. cit., p. 31.

143 Ao apresentar os estudos weberianos acerca da objetividade nas ciências sociais e a influência do aspecto subjetivo na determinação do conhecimento, Michel LÖWY conclui: “O

único remédio que Weber parece propor para esta enfermidade é o ‘dever elementar de controle de si próprio’ – o que nos conduz à velha problemática positivista ‘clássica’ da ‘boa vontade’ e às aventuras do Barão de Münchhausen, capaz de retirar a si mesmo do pântano apoiando-se sobre o próprio sistema capilar. Apesar de seu soberbo rigor e inteligência, a démarche de Weber chegou, em última análise, ao positivismo mais limitado” V. LÖWY,

Michel. “As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento” 5ª ed. rev. trad. de Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy, São Paulo: Cortez,1994, p. 41.

tempo, a degradação que arruína a relação fundamental e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histórica que pretendemos erigir em objeto145.

Assim, resta caracterizado que este modelo hermenêutico é positivista (englobando seu viés lógico-empirista) por conceber a possibilidade de um sujeito cognoscente extrair do seu objeto (no caso a norma) o seu ‘verdadeiro sentido’ através de sua percepção.

Tal concepção pressupõe a crença que o texto legal pode ser tratado como um objeto real, dotado de sentido próprio, que pode ser representado em sua inteireza pelo conhecimento fenomenológico, bem como sendo possível uma cisão absoluta entre o fato (texto normativo) e os valores subjetivos, características que constituem pressupostos da teoria positivista.

Outrossim, ao encarar a linguagem como uma terceira coisa entre o sujeito e o objeto e não como parte de um todo com sentido (sujeito + norma), o positivismo jurídico impõe ao direito um forte caráter de manutenção do status quo, à medida que exclui a responsabilidade do agente de transformar a própria realidade, pois apenas observa, contempla e busca um sentido que já exista independentemente de suas crenças e senso de justiça.

Ao contrário, tendo o sujeito consciência de que faz parte desse todo e a partir de seu interesse fornece o sentido, sua responsabilidade se cristaliza, pois o resultado da interpretação nada mais é que a soma da concepção de mundo do sujeito com as prescrições do texto normativo do objeto (compreensão), exsurgindo daí um novo sujeito.

Por isto se diz que a relação ultrapassa o plano sujeito-objeto para o da relação sujeito-sujeito, descrita como verdadeira circularidade e possível graças à viragem lingüística na filosofia. Tal é a perspectiva trabalhada pela hermenêutica filosófica, que será estudada no Capítulo III desta dissertação.

145 RICOEUR, Paul. “Interpretação e ideologias”, 4ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 43.

Por ora, resta ainda explicar estruturalmente o sistema normativo, que em função do positivismo e da busca de cientificidade do direito, passou a se tornar uma

exigência lógica e deontológica, conforme já apontado por Miguel REALE146.