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1.2 – Fundamentos da dialética aristotélica

Críticas e reconstrução do sistema: a reformulação metodológica e estrutural

II. 1.2 – Fundamentos da dialética aristotélica

Apontadas as diferenças entre os raciocínios dialéticos e demonstrativos, cumpre, nos exíguos limites da meta aqui proposta, aprofundar o estudo da natureza da dialética, seu modus operandi e seus instrumentos.

Para tanto, será necessário deter-se no tratado aristotélico sobre Os

Tópicos, onde, logo em seu primeiro parágrafo, são anunciados os objetivos e as

principais características de sua investigação:

Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre

218 DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação. trad. Jandir João Zanotelli. São Paulo: Edições Loyola,1986, p.24.

219 PÊPE, Albano Marcos Bastos. A filosofia do direito e a filosofia prática: o ethos enquanto

mundo compartilhado: a questão da legitimidade do direito. Universidade Federal do Paraná:

qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraço220.

Ora, uma leitura atenta deste excerto permite, desde agora, apresentar ao menos duas considerações acerca da Tópica: a) é um método de investigação e b) parte de opiniões aceitas acerca de um problema.

Indo além, BERTI assevera que:

Nesses poucos princípios faz-se, antes de tudo, referência a uma situação concreta de diálogo, ou de discussão, entre, ao menos, dois interlocutores, um dos quais sustenta certa tese, enquanto o outro a contesta: a dialética vem, com efeito, de dialégesthai, dialogar, mas não no sentido de conversar, por exemplo, para entretenimento recíproco ou para passar o tempo, mas no sentido de discutir, com intervenções de ambas as partes, contrastantes uma em relação à outra221.

Resta patente, então, que para alcançar seus objetivos, a dialética pressupõe uma argumentação com um interlocutor capaz de fazer escolhas entre as alternativas colocadas na tese em debate.

Na seqüência, ARISTÓTELES compreende que os argumentos e raciocínios partem de materiais iguais em número e do mesmo tema, à medida que tanto as ‘proposições’ de que partem os argumentos e os ‘problemas’ de que partem os ‘raciocínios’ indicam um ‘gênero’, uma ‘peculiaridade’, ou ‘um acidente’.

Ao considerar que a peculiaridade tem uma parte ‘essencial’ e outra ‘não essencial’, ARISTÓTELES a separa em ‘definição’ para denotar a ‘essência’, englobando as demais características não essenciais em torno da expressão ‘propriedade’.

Destarte, conclui que as proposições e os problemas possuem quatro elementos, a saber: definição, propriedade, gênero (classe) e acidente, sendo que, a diferença entre problema e proposição estaria apenas na forma em que fosse

220 ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. trad. da versão inglesa de W. A. Pickard – Cambridge de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Livro I, 1, 100 a 18, 20, p. 05.

construída a frase, de modo que estas existem em igual número, pois basta mudar a

estrutura do próprio enunciado 222.

No tangente ao significado de cada um dos quatro elementos, ainda no rastro do Filósofo de Estágira, apreende-se que ‘definição’ “é uma frase que significa

a essência de uma coisa”223, ‘propriedade’ é um “predicado que não indica a essência de uma coisa, e todavia pertence exclusivamente a ela e dela se predica de maneira conversível”224, ‘gênero’ é “aquilo que se predica, na categoria de

essência todas aquelas coisas que apresentam diferenças específicas”225 e, por fim,

um acidente é “(1) alguma coisa que, não sendo nada do que precede (...) pertence,

no entanto, à coisa; (2) algo que pode pertencer a alguma coisa, sem que por isso a

coisa deixe de ser ela mesma (...)”226, sendo esta segunda definição mais

apropriada, conforme aduz o filósofo em epígrafe.

Assim, explica PEREIRA que “toda argumentação dialética diz, portanto,

respeito à atribuição de um desses [quatro] ‘predicáveis’ a um sujeito”’227, à medida

que as proposições constituem o ponto de partida da argumentação, sob os quais se busca a aquiescência, e os problemas são objetos da indagação dialética por se formarem a partir das proposições a serem provadas.

Outrossim, é importante advertir que tal análise é característica do paradigma da ontologia clássica ou objetiva, à medida que pressupõe a possibilidade do conhecimento do ‘ser’ e de seus ‘predicados’ em si, conforme confirma GARCIA AMADO ao salientar que ela é elaborada “a partir de una cierta

222 Sem adentrar demais nesta temática, valem as explicações do próprio ARISTÓTELES: “

A diferença entre um problema e uma proposição é uma diferença na construção da frase. Porque, se nos expressarmos assim: ‘um animal que caminha com dois pés é a definição do homem, não é?’, ou ‘animal’ é o gênero do homem, não é?’ o resultado é uma proposição; mas se dissermos: ‘é animal que caminha com dois pés a definição do homem ou não é?’, ou ‘é animal o seu gênero ou não?’ o resultado é um problema. E do mesmo modo em todos os outros casos. Naturalmente, pois, os problemas e proposições são iguais em número, pois de cada proposição poderemos fazer um problema se mudarmos a estrutura da frase.”

ARISTÓTELES, Tópicos, op. cit., n. 35, p. 7.

223 ARISTÓTELES. Tópicos, op. cit., n. 102a, p. 07.

224 Idem, n. 20, p. 8.

225 Ibidem, n. 30-35, p. 8. Segundo Aristóteles: “Devemos tratar como predicados na

categoria de essência todas aquelas coisas que seria apropriado mencionar em resposta à pergunta: que é o objeto que tens diante de ti?”. ARISTÓTELES. Tópicos, op. cit., p. 08.

226 ARISTÓTELES. Tópicos. op. cit., p. 08.

visión esencialista, de una concepción del lenguage como capaz de reflejar el verdadero ser de las cosas y de una cierta comprensión ontologista de la lógica...”228.

ARISTÓTELES deixa evidente o caráter ontológico de suas teorias ao enumerar as Categorias, entendidas como classes de predicados sob as quais é

possível encontrar as quatro ordens de predicação. São elas: Substância229,

Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Posição, Estado, Ação e Paixão. Estas categorias são consideradas fatos lingüísticos donde se verifica que a primeira delas, a substância, não é precisamente um predicado, mas um sujeito e, uma vez que ao redor dele orbitam inúmeros argumentos e predicados, surge a tarefa dialética de busca desses sujeitos, isto é, de aquisição da substância individual.

Para tanto, ARISTÓTELES começa distinguindo proposição, problema e tese dialética.

Assim, enquanto a proposição “consiste em perguntar alguma coisa que é

admitida por todos os homens, pela maioria deles ou pelos filósofos (...) contanto

228 GARCIA AMADO. Teorias de la tópica jurídica. op. cit., p. 61.

229 Na tradução brasileira dos Tópicos consultada, é utilizada a expressão ‘Essência’ ao invés de ‘Substância”. Todavia, no rastro de autores autorizados, estima-se que a utilização do termos ‘Substância’ se adequa melhor à doutrina aristotélica. Cf. ROSS, Sir David.

Aristóteles. 3 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, ps. 32 e ss. Acerca destas

Categorias, Sir David ROSS explica que a substância é a categoria primeira e o pressuposto para todas as outras sendo que o primado da substância individual é um dos diferenciais da doutrina de Aristóteles em relação a Platão. Segundo esse autor, ARISTÓTELES faz a seguinte distinção no interior dessa categoria primeira: “1) substância primeira, a qual não é

‘nem afirmada dum sujeito, nem presente num sujeito’. Por exemplo, um homem ou um cavalo particular; e 2) as substâncias segundas, isto é, as espécies e géneros nos quais as substâncias primeiras estão incluídas. Estas são ‘afirmadas dum sujeito mas não estão presentes num sujeito’. ‘Afirmadas dum sujeito’ refere-se aqui à relação do universal ao particular; ‘Presentes num sujeito’ àquela dum atributo ao possuidor. Todas as categorias outras que a substância, estão ‘presentes num sujeito’; algumas das coisas nelas, por exemplo o conhecimento, são ‘afirmadas dum sujeito’; outras, tal como uma peça particular do conhecimento gramatical, não o são. Assim, a distinção de primária e de secundária (isto é, de universal e de individual) poderá ser tão bem marcada nas outras categorias como na substância. Mas Aristóteles não a marca explicitamente.” ROSS, Sir David. op. cit., ps.

que não contrária à opinião geral”230, o problema é “um tema de investigação que contribui para a escolha ou a rejeição de alguma coisa, ou ainda para a verdade e o conhecimento (...)”231 e a tese “é uma suposição de algum filósofo eminente que

esteja em conflito com a opinião geral”232, de modo que, se toda tese é um problema, o inverso não ocorre.

Para ARISTÓTELES, a utilidade de tal distinção é o reconhecimento da maior especificidade da tese e não a criação de uma nova terminologia.