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1.3 – O modo operativo do raciocínio dialético

Críticas e reconstrução do sistema: a reformulação metodológica e estrutural

II. 1.3 – O modo operativo do raciocínio dialético

Observadas as classes de coisas acima apresentadas, ARISTÓTELES compreende que os meios pelos quais se obtém bons raciocínios são quatro: “1)

prover-nos de proposições; 2) capacidade de discernir em quantos sentidos se emprega uma expressão; 3) descobrir a diferença das coisas, e 4) investigação da semelhança”233.

Estas considerações ressaltam a importância da análise semântica da linguagem, não só porque a dialética é, por excelência, uma prática discursiva

argumentativa234, mas principalmente porque, conforme o próprio ARISTÓTELES

proclama, conhecer a pluralidade de significados de um termo reforça a clareza e a precisão do argumento, propicia a certificação de que os raciocínios se adequam

230 ARISTÓTELES. Tópicos, I, 10, 5 a 10. op. cit., p. 12.

231 ARISTÓTELES, Tópicos, I, 11, 104b, p. 13.

232 Idem, Tópicos, 1, 11, 20, p. 13.

233, Ibidem, Tópicos, I, 13, 20 a 25, p. 14.

234 Segundo PEREIRA a arte dialética é concebida por ARISTÓTELES “como uma arte de

argumentar criticamente, de examinar, pôr à prova, isto é, como uma peirástica

( ). Porque todas as disciplinas e ciências utilizam elementos ‘comuns’ ( ), ao lado das proposições que lhe são próprias, através dos quais todas as ciências umas com as outras se comunicam, porque é da natureza desses ‘comuns’ serem tais que nada impede acompanhar-se o seu conhecimento da ausência de conhecimentos particulares e específicos (ainda que, desconhecidos os ‘comuns’, nenhum conhecimento particular seja possível), todos podem deles servir-se para examinar, criticar e refutar, mesmo na falta de conhecimentos precisos e específicos, quantos exibem a pretensão de possuir saber em tal ou qual domínio particular; em verdade, até certo ponto, todos os homens examinam e sustentam teses, defendem e acusam. Ocorre apenas que, ‘da maior parte, uns o fazem ao acaso, os outros graças a um costume que provém de uma disposição ou ‘hábito’; ora, é evidente que se podem fazer essas mesmas coisas metodicamente por meio de uma técnica, que as considera sob o prisma da causalidade...” Cf. PEREIRA, Oswaldo Porchat.

aos fatos reais e porque “descobrir as diferenças das coisas nos ajuda tanto nos

raciocínios sobre a identidade e a diferença, como também a reconhecer a essência de cada coisa particular”235.

Por isto, PEREIRA infere que:

o exame das múltiplas significações dos termos introduz clareza na investigação e a garantia de que o raciocínio se construirá ‘conforme o próprio objeto e não segundo o nome’, isto é, ele visa clarificar a linguagem e convertê-la em instrumento adequado da pesquisa, corrigindo-lhe a ambigüidade natural; mas será também um antídoto contra os paralogismos que a posição adversária

eventualmente nos oponha. Assegurado nosso domínio sobre a dos

nomes, cumpre, também investigar as diferenças e semelhanças entre as coisas: a busca das diferenças é útil, sobretudo, para a construção de silogismos sobre ‘o mesmo e o outro’ (capacita-nos, portanto, para a denúncia das falsas identidades) e para o conhecimento do que é cada coisa, ou seja, para a construção da definição ou discurso da essência de cada coisa, mediante o discernimento das diferenças apropriadas; por sua vez, a busca das semelhanças permitir-nos-á a formulação de raciocínios indutivos e silogismos hipotéticos, assim como, de modo semelhante, a construção de definições, graças à descoberta do elemento genérico comum que integra o discurso do ‘ o que é’236.

Assim, enquanto prática argumentativa discursiva, a dialética se realiza

numa situação concreta de diálogo237, seu instrumento é o silogismo dialético, seu

objeto e ponto de partida é o problema, o qual se busca investigar e provar a veracidade.

Com efeito, o problema é colocado como “uma alternativa do tipo

interrogativo entre duas proposições (concernentes, por exemplo, a uma definição), da qual uma é a negação da outra”238, formulada de modo a não admitir uma

resposta intermediária, daí por que, como já asseverado supra, a diferença entre

proposição ou problema é o modo de construção da frase239.

Destarte, o processo de argumentação se realiza a partir da colocação do problema, conforme ressalta BERTI:

235 ARISTÓTELES. Tópicos, I, 18, op. cit., ps. 20 a 21.

236 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e dialética... op. cit., ps. 364-365.

237 BERTI, Enrico. As razões... op. cit., p. 19.

238 Idem, p. 20.

239 O exemplo típico de um problema encontra-se expresso no Livro I, 4, 30 a 35 dos Tópicos aristotélicos: “‘um animal que caminha com dois pés’ é a definição de homem, não

A discussão tem início mediante a formulação de um problema (de qualquer problema, como diz o texto, por isso, a característica da dialética é a universalidade, ao contrário da particularidade das ciências apodícticas), isto é, de uma pergunta, a típica pergunta dialética, quando se discute sobre a essência de alguma coisa (no exemplo citado, o homem), e aberta à possibilidade de duas respostas entre si contraditórias Note-se como tal pergunta não delimita minimamente o âmbito da investigação, porque não exclui nenhuma possibilidade: ela equivale à simples pergunta pela essência, por exemplo, ‘o que é o homem?’ e ainda mais à apresentação de uma possibilidade determinada, isto é, uma hipótese, a fim de suscitar a discussão. É claro que, caso essa possibilidade, no decorrer da discussão seja eliminada, se tomará em consideração uma outra e assim por diante. Em todo caso, a discussão será possível só a propósito de possibilidades, ou seja, de hipóteses determinadas240.

Formulada a pergunta exordial, resta ao interlocutor escolher uma alternativa, replicando com outras perguntas e buscando, nas alternativas escolhidas a cada resposta, expor as contradições quer da primeira, quer das perguntas subseqüentes, refutando-as ponto a ponto, de modo a por a tese em prova, expurgando as falsidades e penetrando em busca da verdade, a qual, mesmo inalcançável, transforma-se no princípio das ciências demonstrativas, obtidas pelo trânsito dialético entre as aporias e contradições que permitem distinguir o

verdadeiro do falso241.

Sendo assim, ARISTÓTELES não mais opõe o método de dedução silogística à dialética, à medida que instaura a possibilidade de obtenção de uma verdade a partir das endoxas com a mesma característica procedimental do silogismo demonstrativo, isto é, relações de causalidade e necessidade a partir de premissas que não são tidas como verdades, mas opiniões geralmente aceitas, onde se colocam alternativas para a resolução do problema.

Por isso, segundo PEREIRA:

Os raciocínios dialéticos podem definir-se como argumentos ‘silogísticos de contradição, a partir de premissas aceitas’, cuja eficácia instrumental para o conhecimento e para a filosofia não se dissocia daquela capacidade, que proporcionam, de uma visão sinóptica das conseqüências que resultam das hipóteses contraditórias; após um tal exame, somente ‘resta, com efeito, escolher corretamente uma delas’242.

240 BERTI, Enrico. op. cit., ps. 20-21.

241 DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação. op. cit., ps. 24-25.

Contudo, alguns pressupostos e regras devem ser observados para que seja possível uma discussão frutífera.

A primeira regra diz respeito ao acordo de que aquelas premissas que forem conhecidas e estiverem em concordância com a opinião geral devem ser aceitas, daí a exigência da premissa éndoxa.

Isso porque, consoante assinala BERTI243, supõe-se que a argumentação

dialética se dá na presença de um público ou auditório, que faz o papel de um árbitro, decidindo qual argumento se mostrou mais eficaz ou veraz quando comparado à realidade.

A segunda regra consiste no acordo de que a contradição simboliza a falsidade de uma tese, de modo que, quem nela incidir, deve ser considerado perdedor244.

Visto isso, ARISTÓTELES termina o livro I dos Tópicos proclamando que, até ali, foram vistos os meios pelos quais se formulam os raciocínios.

Nos livros seguintes, o estagirita se preocupa com a busca de regras ou

lugares cuja observância são úteis para os argumentos mencionados: são eles os tópicos ou topoi.

Todavia, conforme assevera PEREIRA:

Não nos explicam os Tópicos o que se deve entender por ‘lugar’, mas a consideração atenta dos exemplos inumeráveis que o tratado fornece permite-nos compreender que se trata de regras para a pesquisa dos “predicáveis’ extraídas da aceitação de certas ‘leis’ ou fórmulas de caráter geral, que a dialética utilizará como premissas maiores de seus silogismos (as menores, vai descobri-las, precisamente, graças àquelas regras que a assunção das maiores

autoriza). Tais fórmulas gerais, assumidas como como o serão, também,

as premissas menores que se tiverem encontrado – parecem concretizar aqueles ou ‘comuns’ de que nos falam as Refutações Sofísticas e cujo estudo científico compete à filosofia primeira, já que seu conhecimento sabemos concernir àquele domínio universal sobre que se exerce também a dialética, mas como péirástica245.

243 BERTI, Enrico. op. cit., p. 23.

244 Idem.

Na mesma linha, Theodor VIEHWEG, após destacar que é na retórica que se encontra um conceito mais preciso de topoi, conclui que para ARISTÓTELES, eles são “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a

favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”246.

No entanto, mesmo ciente dessas ambigüidades, VIEHWEG promove o resgate de diversas categorias da dialética aristotélica na busca de um método para a realização do direito, conforme será exposto a seguir.