• Nenhum resultado encontrado

1. Histórico da formação docente para educação de adultos no Brasil

1.3. Movimentos, campanhas e programas de educação à luz dos fenômenos

1.3.5. A formação de professores de adultos no contexto dos Movimentos de

1.3.5.4. A repercussão das novas elaborações de Paulo Freire e as dificuldades

Os trabalhos realizados no Nordeste brasileiro à luz das novas elaborações e propostas de Paulo Freire repercutiram em outras regiões do país. Diante do contexto da época, difundiu-se a notícia de que a proposta criada por ele alfabetizava e conscientizava em 40 dias. A ideia de conscientização associada à alfabetização e à brevidade do tempo chamou a atenção de um grupo de pessoas interessadas em possibilitar um projeto de educação de adultos em Osasco (SP). Entre os integrantes desse grupo estava o jovem José Carlos Barreto, importante professor e conhecedor do pensamento freireano (VIEIRA, 2006).

O breve relato da história de José Carlos Barreto tem como propósito ilustrar e exemplificar as dificuldades encontradas pelos educadores da época não só em ter acesso às novas elaborações de Freire, devido à distância geográfica, mas também a dificuldade em compreender a proposta, em si, e os pensamentos que a fundamentam.

José Carlos Barreto participava de uma atividade realizada pela União Estadual dos Estudantes [UEE] da Universidade de São Paulo (USP) e, naquele momento, eles organizavam um movimento de alfabetização para adultos no estado de São Paulo. No entanto, para o desenvolvimento desse trabalho, o grupo esbarrava em dificuldades experiência prática, Lígia Marinho; e Alfabetização e educação, lsa Guerra (FÁVERO; SOARES JUNIOR, 1992, p. 7 e 8).

como a falta de materiais específicos referentes à educação de adultos e que debatessem o assunto.

Os materiais que encontravam eram infantilizados e não tinham suporte e orientação pedagógica. “Quando o grupo vivia essas dificuldades circulou uma notícia de um trabalho de alfabetização de adultos desenvolvido de forma diferenciada por um professor nordestino em uma cidade do interior do Rio Grande do Norte” (VIEIRA, 2006, p. 112 e 113). As informações iniciais sobre essa proposta chegaram por intermédio de uma professora do Rio Grande do Norte que realizava um curso de especialização em São Paulo, mas, por intermédio dela, não foi possível obter outras informações.

No mesmo período, eles conheceram outra professora, que havia sido aluna de Paulo Freire na Universidade do Recife, e também continuava os estudos em São Paulo. Os jovens educadores buscaram informações por meio de encontros agendados em que ela relatava o que havia visto, pois participara por pouco tempo do MCP. Em uma das reuniões, ela disponibilizou a eles um artigo escrito por Paulo Freire. Com o texto em mãos, estudaram-no por longo tempo.

A partir do auxílio da ex-aluna de Paulo Freire, o grupo pôde conhecer um pouco sobre o trabalho desenvolvido em Angicos (RN) sobre os Círculos de Cultura e sobre a metodologia utilizada, como slides, palavras geradoras, entre outros. No entanto, as informações a que tiveram acesso se mostraram insuficientes para a compreensão da proposta do autor pernambucano, por faltar “o subsídio teórico que explicasse o porquê do trabalho ser conduzido daquela forma” (VIEIRA, 2006, p. 117). A carência de dados e elaborações teóricas não possibilitava a fundamentação às ações que acabavam de conhecer.

Diante tal dificuldade, o grupo resolveu obter tais conhecimentos pelo próprio Paulo Freire, mas até os primeiros contatos poderem ser estabelecidos, ocorreram desencontros e dificuldades:

A saída encontrada pelo grupo foi tentar ouvir o próprio Paulo Freire. Encarregaram uma antiga conhecida de JEC, que ia passar férias no Recife, de buscar mais informações sobre o trabalho desse professor. “Ela veio com algumas informações. Tinha ido lá no Recife, onde assistiu às aulas e não tinha conseguido falar com o Paulo, pois ele não estava no Recife. Ela trouxe o endereço dele e da Aurenice (que trabalhava com ele). Foi aí que o grupo teve contato com o Paulo. As primeiras vezes foram por cartas. O Paulo dizia que até poderia vir a São Paulo desde que a UEE pudesse bancar a passagem dele, mas que no momento ele estava muito envolvido com Angicos e era impossível se ausentar. Trocamos algumas cartas que evidenciavam muito o quanto Paulo estava encantado (...) (VIEIRA, 2006, p. 116)

Apesar dos laços que se estreitavam por meio de troca de cartas e da indicação de Freire para um futuro contato com o material produzido, o grupo de estudantes tinha sede de conhecimento, impulsionado pelas dúvidas sobre o que já conheciam, e continuou a escrever para Paulo Freire. Nesse movimento de diálogo por cartas, o grupo ia conhecendo as novas elaborações por ele realizadas:

As cartas de Paulo Freire eram lidas e relidas num esforço para compreender conceitos e visões absolutamente novos para todos. Nesse processo, muitas dúvidas foram sendo aclaradas e outras foram surgindo. “As ideias encantavam, mas não eram de fácil compreensão. O que mais dificultava era o fato de todos estarem imersos em uma estrutura tradicional de sociedade e de educação. Eram, ainda que o rejeitassem, frutos de uma sociedade autoritária e não haviam vivenciado modelos diferentes de relação social”. (BARRETO, J. et al, 1992, p. 4, in VIEIRA, 2006, p. 118, grifos da autora)

Em relação aos contatos iniciais com as propostas de Paulo Freire, José Carlos Barreto relata algumas descobertas que fizera, muitas das quais diferenciavam-se da formação que até então recebera.

Comecei a me inteirar das ideias do Paulo, mas o diabo é que ele não dava a receita como eu imaginava que deveria ser uma boa receita: faça isso e aquilo e aquilo outro e assim por diante. Ele punha dúvidas na cabeça da gente! Mandava as cartas e dizia absurdos do tipo: o analfabeto tem conhecimento, saberes; ou pior: os alunos eram sujeitos do processo de aprender. Nós estávamos carecas de saber que sujeito mesmo era o professor e que o conhecimento era produto da escola; portanto, inacessível para analfabetos... Em resumo, ele vinha com umas ideias esquisitas e o pior era que a gente tinha que discuti- las e reconhecer que ele parecia ter razão. (VIEIRA, 2006, p. 117)

No primeiro semestre de 1963, Paulo Freire foi a São Paulo e reuniu-se com o grupo. Explicou sobre o trabalho realizado em Angicos e como se dava o processo de alfabetização. Apresentava slides e relatava sua prática, discutia os desdobramentos de sua ação educativa e por que as coisas aconteciam de tal modo.

Nessa breve visita, Paulo Freire tomou conhecimento de que estavam organizando uma experiência de alfabetização na periferia paulistana e que a intenção era desenvolvê-la a partir de sua proposta. Estreitados os laços por intermédio do trabalho a ser realizado, Freire retornaria a São Paulo e traria sua equipe para ministrar um pequeno curso para o grupo de universitários que participaria dos projetos (VIEIRA, 2006).

Após a presença de Freire e a explicação de sua proposta e das elaborações que a fundamentam, José Carlos Barreto comentou que o que mais encantava ao grupo, composto em sua maioria por pessoas que já possuíam no âmbito de trajetória pessoal

uma conotação política, era a possibilidade de se contribuir com as camadas populares por meio de uma metodologia que conseguia juntar “a ação política à prática pedagógica. Naquela época, ainda, não havíamos percebido que toda educação é ato político e que nossa ação já era política por ser educativa” (BARRETO, J. et al, 1992, p. 5, in VIEIRA, 2006, p. 118).

Nesse movimento de dificuldades e indagações, José Carlos Barreto e os educadores de São Paulo foram acrescentando saberes novos, como o diálogo entre professor e aluno como ponto de partida para o trabalho pedagógico:

a aprendizagem como ato criativo do sujeito que aprende, a compreensão da escrita como objeto cultural, a educação como ato político, etc. marcas que se integrariam às práticas de educação de adultos, inaugurando uma nova forma de compreender a relação educativa. (VIEIRA, 2006, p. 120)

A insistência para a compreensão da nova proposta de alfabetização e a disponibilidade de Freire em divulgá-la denotam a responsabilidade e o compromisso do educador pernambucano e do grupo de jovens de São Paulo não somente em relação à educação de adultos, mas à formação de educadores de adultos compromissados com a mudança de métodos de ensino e preparados para a transformação social.

A dificuldade de se compreender o novo diante da costumeira receita proposta pelos livros didáticos e da postura de detentor do saber perante seus alunos, por parte do professor, características próprias da educação tradicional, exigiram esforço por parte do grupo.

O episódio relatado por José Carlos Barreto na pesquisa de Vieira (2006) demonstra ainda que, para além das dificuldades encontradas pela própria distância e pela falta de meios de comunicação, havia, ainda, dificuldades para a compreensão da nova proposta. Era preciso mais do que leitura e discussão sobre os conceitos que a fundamentavam porque havia uma inversão na lógica corrente do ensino a que todos tiveram acesso até aquele momento.

Assim como o grupo ao qual pertencia José Carlos Barreto, outros educadores certamente tomaram conhecimento da proposta elaborada por Paulo Freire. Ideias que repercutiram e se expandiram fortemente por todo o território nacional e influenciaram e inspiraram muitos outros movimentos de educação popular.

A proposta de alfabetização de Paulo Freire tomou amplas proporções. As ações educativas efetivadas no Nordeste brasileiro tiveram sua importância reconhecida e seriam a base de um trabalho de alfabetização a ser realizado em nível nacional pelo Plano Nacional de Alfabetização. Embora já tivesse se iniciado a organização e em

algumas localidades já se preparassem os professores, o plano não chegou a se concretizar devido às mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do golpe militar de março de 1964.

1.3.6. Novos rumos para a educação de adultos, novas perspectivas para a formação e