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4.2 O escândalo do Dossiê representado nas reportagens O voo cego do petismo e Um enigma

4.2.4 A representação do que dizem os envolvidos

No domínio verbal da representação, as escolhas de transitividade constroem um lugar específico para os dizeres dos envolvidos no escândalo: a negação das alegações feitas pela Polícia Federal de que eles haviam encomendado um dossiê contra candidatos do PSDB e para isso pagariam 1,7 milhão de reais. Os recortes abaixo representam o que disseram alguns dos acusados.

(99) “Afirmo taxativamente que em momento algum autorizei o emprego de qualquer tipo de negociação financeira” [Oração projetada], diz [Processo Verbal] Lorenzetti [Dizente] na nota em que anuncia sua demissão [Circunstância de lugar].

(100) “É importante informar que em nenhum momento houve qualquer oferta de dinheiro” [Oração projetada], repete [Processo Verbal] Hamilton Lacerda, o ex-auxiliar de Mercadante [Dizente], na sua nota de afastamento [Circunstância de lugar].

Transgressões + Ocultação Revelação pública + Alegações públicas Desaprovação pública Negações públicas e contra-alegações Investigações e revelações posteriores Transgressões de segunda ordem 1 2 3 4 5 6 7 8

1- compra de um dossiê falso para incriminar José Serra e Geraldo Alckmin em um escândalo de desvio de verbas púbicas – o chamado “Escândalo dos Sanguessugas”;

2- a compra do dossiê aconteceria de forma sigilosa em um hotel. Além disso, poucas pessoas sabiam do esquema;

3- a mídia divulga que a Polícia Federal descobriu o esquema e prendeu os acusados; 4- alegações de inocência por parte dos petistas acusados;

5- desaprovação do fato por parte da mídia;

6- negações por parte dos envolvidos para as versões apresentadas pela Polícia Federal;

7- investigações sobre uma operação comandada pelo ministro Márcio Thomaz Bastos (a operação abafa) para que Gedimar Passos não revelasse nada sobre a compra do dossiê; e a revelação de que essa operação foi facilitada até por um delegado da Polícia Federal;

8- revelação de que essa operação abafa tinha como único objetivo coagir Gedimar Passos a não entregar ninguém do PT, por isso utilizou de mentiras para que o caso não atingisse proporções maiores;

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(101) “O PT não faria isso em hipótese alguma” [Oração projetada], chegou a dizer [Processo

Verbal] Berzoini [Dizente] dois dias antes de ser ele próprio apanhado no esquema

[Circunstância de tempo].

(102) Antes de cair [Circunstância de tempo], Berzoini [Dizente] fez [Processo Verbal] o mesmo discurso [Verbiagem] numa entrevista [Circunstância de lugar]. “O PT não tem nenhuma atividade que envolva recursos financeiros para compra de informação” [Oração

projetada], disse [Processo Verbal].

Nesses quatro recortes, o jornalista faz uso do discurso direto nas orações projetadas para representar a voz de alguns dos acusados. Entendemos que ao utilizar-se desses dizeres o jornalista distancia-se de seus significados, a saber: a inocência dos envolvidos, visto que constroi um discurso altamente avaliativo que rejeita a prática perpetrada pelos acusados. Entre as opções de ou sintetizar esses dizeres em uma única representação ou representá-los integralmente e de forma separada, a segunda opção parece preencher melhor os propósitos comunicativos do jornalista. O modo como os recortes experienciais acima são elaborados em termos de processos, participantes, circunstâncias e orações projetadas, indica que o jornalista exerce sim um controle sobre a representação do dizem os acusados.

Todos os quatro dizeres consistem em negar qualquer envolvimento dos acusados com o caso, reproduzindo a mesma informação dita por três diferentes atores sociais: o PT não

encomendou nenhum dossiê. Isso é reforçado pelas escolhas dos processos verbais “repete”, em (100), e “fez o mesmo discurso”, em (102), as quais sinalizam que os petistas buscaram

uma estratégia em comum para se defenderem das acusações. Convém salientar que são nesses dizeres que outras transgressões podem ser descobertas, originando transgressões de segunda ordem - fato ocorrido, pois as reportagens mostram que a Polícia Federal monitorou telefonemas do acusado de montar o dossiê, Luiz Antônio Vedoin, em que as gravações revelaram a existência do dossiê encomendado pela cúpula do PT. Logo, representar o que dizem os petistas em sua defesa não parece significar uma abertura de espaço na reportagem como sinal de equilíbrio e imparcialidade na representação dos fatos, mas sim a imposição de uma determinada forma de ler o escândalo que orienta sua interpretação.

Essa orientação pode ser notada ainda nas representações experienciais abaixo. Nelas, os jornalistas descrevem a participação direta de Freud Godoy e do ministro Márcio Thomaz Bastos na operação montada pelo Palácio do Planalto para que a crise não atingisse maiores proporções.

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(103) No encontro no apartamento de Espinoza [Circunstância de lugar], Freud e o tesoureiro Ferreira [Dizente] conversaram [Processo Verbal] sobre dinheiro [Circunstância de assunto] e sobre como ele, sempre ele, poderia manter a calma dos implicados de modo que não se sentissem tentados a envolver gente mais graúda no PT e no governo [Circunstância de

assunto].

(104) Tão logo Gedimar foi preso [Circunstância de tempo], o ministro [Dizente] telefonou

[Processo Verbal] para Geraldo José Araújo, superintendente da PF em São Paulo [Receptor],

para perguntar [Circunstância de propósito]: “Isso respinga no presidente?” [Oração

projetada].

(105) Thomaz Bastos [Dizente] cobrou [Processo Verbal] esforços diários [Verbiagem] de Freud, do advogado indicado por ele e do tesoureiro do PT [Receptor] no que parecia ser a tarefa mais urgente: convencer Gedimar a recuar [Circunstância de assunto].

Nota-se que nos três recortes as escolhas dos elementos circunstâncias são imprescindíveis à construção da realidade representada. No recorte (103), a escolha do

processo “conversaram” implica uma ação diferente daquelas dos outros dois recortes, (104) e

(105). Isso significa que o encontro mencionado transcorreu de forma tranquila, nos moldes mesmo de uma reunião para tratar de assuntos que dizem respeito ao escândalo. Chama atenção as duas circunstâncias de assunto. Elas informam exatamente sobre o que versou a conversa, revelando que a operação provavelmente envolveria dinheiro e que o silêncio dos presos acusados deveria ser mantido.

Os recortes (104) e (105) representam dizeres do ministro Márcio Thomaz Bastos logo após a revelação do escândalo. A tarefa do ministro, como se observa, era evitar que o escândalo prejudicasse a reputação do presidente Lula e para isso deveria montar uma

estratégia de defesa para os acusados. Em (104), a escolha da oração projetada “Isso respinga no presidente?” revela de forma clara que a “operação abafa” só foi montada porque outras

revelações sobre a compra do dossiê poderiam comprometer ainda mais a reputação do

presidente Lula. No recorte (105), as escolhas do processo verbal “cobrou” e da verbiagem “esforços diários” mostram que a operação tinha uma importância significativa, pois o tom da

conversa do ministro era de exigência para o cumprimento de uma tarefa urgente. Com essas escolhas, o jornalista, além de sinalizar como o ministro fala, deixa claro aquilo que é cobrado e sobre o que é essa cobrança (convencer o preso Gedimar a mudar seu primeiro depoimento dado à Polícia Federal).

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A mudança do depoimento de Gedimar é representada no recorte (106) abaixo. Seu dizer revela o motivo pelo qual ele entregara o nome de Freud Godoy como mandante da compra do dossiê.

(106) Tudo graças ao "novo" Gedimar [Circunstância de razão], que agora [Circunstância de

razão] diz [Processo Verbal] ter sido pressionado a entregar o nome de Freud por métodos de

tortura psicológica praticados pelo delegado que o prendeu – Edmilson Bruno [Oração

projetada].

Chama atenção que a escolha da circunstância de razão ilustra uma representação

irônica para o dizer de Gedimar, pois o jornalista usa a palavra “novo”, mas não assume o

ponto de vista que ela representa. O que as reportagens buscam esclarecer, de uma forma

geral, é que essa visão de um “novo” Gedimar é insustentável, já que a representação sobre o

escândalo mostra como uma operação comanda pelo Palácio do Planalto foi montada para fazer com que os presos acusados mudassem suas versões dadas em um primeiro momento sobre o caso, negando qualquer envolvimento no escândalo. Logo, essa representação irônica faz, concomitantemente, ouvir duas vozes em desacordo: o que dizem os petistas acusados de comprar o dossiê (sobretudo, Gedimar Passos) e o que diz a revista Veja, que faz a caracterização negativa dos principais envolvidos e beneficiados com a compra do dossiê.

Sobre essa caracterização, as escolhas de transitividade e de léxico no domínio dos processos relacionais têm um papel altamente significativo para a forma como os jornalistas esperam que os leitores interpretem a representação discursiva construída. Vejamos no item a seguir a análise de alguns recortes de processos relacionais.