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Berger e Luckmann (2004), num clássico estudo da sociologia do conhecimento, pontuam que a realidade é o resultado de uma construção social. Nas experiências da vida diária 43, o homem socializa seus conhecimentos com os demais a sua volta, contribuindo para a constituição de objetivações sem as quais nenhuma sociedade poderia existir. Os sociólogos explicam que a realidade é constituída por fenômenos que existem independentemente de nossa vontade; não podemos desejar que não existam. Tais fenômenos são reais e possuem características específicas. Entretanto, a noção de realidade é relativamente social, pois “o que

é “real” para um monge tibetano pode não ser “real” para um homem de negócios americano”

(BERGER e LUCKMANN, 2004, p.13).

Um fator imprescindível neste processo de construção da realidade é a função desempenhada pela linguagem. Por meio dela, somos capazes de definir e expressar em palavras a realidade que apreendemos. Nossas experiências do dia-a-dia são construídas principalmente por intermédio da significação linguística. Para Berger e Luckmann (2004), a linguagem tem a capacidade de integrar diferentes zonas da realidade dentro da realidade da vida cotidiana, dotando-as de significados. O que torna a linguagem indispensável para nossa vida social é que por meio dela podemos atualizar, a qualquer momento, um mundo inteiro.

A linguagem me fornece a imediata possibilidade de contínua objetivação de minha experiência em desenvolvimento. Em outras palavras, a linguagem é flexivelmente expansiva, de modo que me permite objetivar um grande número de experiências que encontro em meu caminho no curso da vida. A linguagem também tipifica as experiências, permitindo-me agrupá-las em amplas categorias, em termos das quais têm sentido não somente para mim, mas também para meus semelhantes (BERGER e LUCKMANN, 2004, p.59).

É neste sentido que Berger e Luckmann (2004, p.57) asseguram que “a linguagem é

capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados e

experiências”. Isso mostra o porquê a linguagem pode ser uma ferramenta legitimadora da

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Berger e Luckmann (2004) explicam que essa realidade da vida cotidiana também se manifesta como um mundo intersubjetivo, um mundo partilhado com outros indivíduos e regulado pelas interações sociais destes. Ao (inter) agirmos nesse mundo necessariamente partilhamos conhecimentos, atitudes e valores com aqueles outros com os quais existimos. Todavia, isso não significa que nossas (inter) ações sejam sempre não problemáticas. Experienciamos diferentes esferas da realidade, com as quais nos deparamos com diferentes formas de (inter) agir, isto é, diferentes conhecimentos. Não há, portanto, uma única realidade, mas múltiplas realidades em razão da multiplicidade de relações sociais.

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realidade social. Berger e Luckmann (2004) sustentam ainda a capacidade que a linguagem tem de edificar representações simbólicas para a realidade, o que coloca a linguagem e o social num mesmo espaço, onde um é a realização do outro. Essa visão é compartilhada pelo linguista Michael Halliday (1978, p.2), para quem a linguagem é sócio-semiótica e a realidade social sujeita a processos de transformação:

Uma realidade social (ou uma „cultura‟) é, em si mesma, um edifício de significados – uma

construção semiótica. Nessa perspectiva, a linguagem é um dos sistemas semióticos que constituem uma cultura; um que é distintivo porque serve também como um sistema de codificação para muitos (embora não todos) dos outros sistemas 44.

Halliday (1978), seguindo essa base sociológica de construção da realidade, observa que a linguagem é um potencial de significados que expressa e ativamente simboliza em seu sistema semântico as intrínsecas relações que mantém com o social – tome-se, por exemplo, a relação entre as três metafunções, as três variáveis de registro e suas respectivas realizações lexicogramaticais. De fato, através do trabalho de Halliday (1978) é possível desvendar os liames que fundem a linguagem com a realidade social. O interesse de Halliday (1978) nessa díade, linguagem e realidade social, está voltado para o potencial linguístico e seu papel funcional na construção e manutenção de significados para a sociedade, isso porque o autor interpreta os processos linguísticos na perspectiva da ordem social.

Isso implica considerar que todo uso da linguagem acontece dentro de um contexto sociocultural particular, no qual a realidade social (ou a cultura) é interpretada em termos semióticos, como um sistema de informação. Assim, o autor defende que “a relação da linguagem com o sistema social não é simplesmente uma relação de expressão, mas uma dialética natural mais complexa, em que a linguagem simboliza ativamente o sistema social, criando-o e sendo criada por ele” 45 (HALLIDAY, 1978, p.183). Para isso, a linguagem é entendida como um dos sistemas semióticos (dentre vários outros) que constituem a realidade social. Logo, é o funcionamento dialético desses sistemas semióticos, ou sistemas de significação, com a estrutura social que forma o que entendemos como realidade (ou cultura) – valores, conhecimentos, identidades, ideologia, dentre outros aspectos.

44Nossa tradução de: “A social reality (or a „culture‟) is itself an edifice of meanings – a semiotic construct. In

this perspective, language is one of the semiotic systems that constitute a culture; one that is distinctive in that it also serves as an encoding system for many (though not all) of the others”.

45Nossa tradução de: “(…) the relation of language to the social system is not simply one of the expression, but

a more complex natural dialectic in which language actively symbolizes the social system, thus creating as well as being created by it”.

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A perspectiva sociodiscursiva do linguista britânico Norman Fairclough é complementar a essas ideias e dialoga diretamente com o trabalho de Halliday. Para Fairclough (2001a), enquanto uma prática social, o discurso é um dos princípios estruturadores da sociedade, ao mesmo tempo em que, em suas diferentes manifestações, a própria sociedade o estrutura e o condiciona; logo, discurso e sociedade se influenciam mutuamente. É por isso que todo discurso deve ser encarado na relação com a sociedade que lhe dá forma (GOUVEIA, 1998). O autor entende que o discurso causa efeitos sobre a estrutura social, contribuindo para a realização da continuidade ou da mudança social: sujeitos, objetos e conceitos são formados no nível do discurso. Por outro lado, o discurso é constrangido ou coibido pelo domínio social ou institucional em que é gerado: eventos discursivos variam de acordo com o domínio social ou institucional em que são gerados (uma Comissão Parlamentar de Inquérito é muito diferente de uma reunião de professores e pais em uma escola, por exemplo). Isso acontece porque o discurso é formado por relações no nível da sociedade, por normas e convenções de natureza quer discursiva, quer não discursiva.

Aspectos discursivos de práticas sociais, como, por exemplo, a representação discursiva de escândalos políticos pela mídia, podem ter efeitos na sociedade; podem, por exemplo, construir certos conhecimentos sobre a política ou serem usados para construir identidades sociais. Por outro lado, a sociedade, através de suas diversas manifestações, determina normas e convenções para esses aspectos discursivos: o modo como a Justiça representa discursivamente um escândalo político é totalmente diferente do modo como a mídia o faz. Isso porque elas são diferentes instituições determinadas de diferentes formas pela sociedade.

Logo, o discurso nem reflete realidades independentes dele, nem lida de forma passiva com a sociedade. Todo discurso está em uma relação ativa com a realidade, transformando-a de alguma forma. Assim, Fairclough (1989) torna claro que as estruturas sociais não apenas determinam práticas sociais, como o discurso, elas são um produto de práticas sociais. E mais especificamente, as estruturas sociais não apenas determinam discursos, elas também são um produto de discursos. Portanto, “não há uma relação externa „entre‟ linguagem e sociedade, mas uma relação interna e dialética. A linguagem é uma parte da sociedade; fenômenos linguísticos são fenômenos sociais de um tipo especial, e fenômenos sociais são (em parte)

71 fenômenos linguísticos” 46

(FAIRCLOUGH, 1989, p.23). Por isso, “a estrutura social é uma condição para a existência do discurso, mas é também um efeito de tal existência” (GOUVEIA, 1998, p.282).

A seguir, serão apresentadas as questões metodológicas tomadas nesta pesquisa.

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Nossa tradução de: “... there is not an external relationship „between‟ language and society, but an internal and dialectical relationship. Language is a part of society; linguistic phenomena are social phenomena of a special sort, and social phenomena are (in part) linguistic phenomena”.

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CAPÍTULO III

METODOLOGIA DA PESQUISA

Conforme explicitado anteriormente, adotamos, para esta pesquisa, o diálogo entre as perspectivas sociodiscursiva e sistêmico-funcional da linguagem, de modo a analisarmos como a revista VEJA constroi, nas escolhas sistêmicas de transitividade e de léxico, realidades de crise e de corrupção para três escândalos políticos ocorridos no contexto brasileiro. Embora haja algumas similaridades entre estas duas abordagens, tais como, a linguagem enquanto um fenômeno social, a língua como um sistema de escolhas e a relação dialética entre linguagem e sociedade, faz-se necessário especificar os procedimentos de análise aqui adotados, já que estas duas abordagens possibilitam várias formas de se criar procedimentos para o estudo e a análise da linguagem. Visto que “não há procedimento fixo

para se fazer análise do discurso” (FAIRCLOUGH, 2001a, p.275), neste capítulo de

metodologia, inicialmente, buscar-se-á esclarecer o problema, as questões e os objetivos de pesquisa, para, logo em seguida, apresentar o corpus, seus critérios de seleção e suas características gerais. Por fim, apresenta-se o método de pesquisa e os procedimentos adotados à análise.

3.1 Problema, objetivos e questões de pesquisa

Inserida na interface das perspectivas sociodiscursiva e sistêmico-funcional da linguagem, esta dissertação tem como problema de pesquisa a seguinte questão: como o discurso jornalístico da revista VEJA faz a representação de escândalos políticos ocorridos no contexto brasileiro? Nosso objetivo central consiste em investigar, nas escolhas sistêmicas de transitividade e de léxico, como jornalistas constroem realidades de crise e de corrupção para os escândalos do mensalão, do dossiê e dos cartões corporativos, no gênero reportagem jornalística. Esse objetivo se desdobra ainda em outros três objetivos específicos, a saber:

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1. Examinar o modo como os tipos de processo, seus participantes e as circunstâncias se realizam lexicalmente e como contribuem para a construção de uma realidade de escândalo político para os eventos;

2.

Analisar quais atores sociais e outras entidades são representados e que papeis discursivo e de transitividade eles refletem;

3. Analisar os modos particulares de representar os escândalos por meio do processo de nomeação;

A trajetória da análise e discussão dos dados apresentada nesta pesquisa será guiada pelas seguintes questões:

a. Que lugar social é construído para a política no discurso jornalístico de VEJA? b. Que realidades de mundo esse discurso constroi?

c. Como esse discurso contribui para a reprodução da política no Brasil e qual o papel das escolhas lexicais nesse processo?

Dessa forma, a investigação de aspectos de representação discursiva nas reportagens volta-se às escolhas lexicais que são feitas nos textos, às motivações sociais para essas escolhas e à construção de uma realidade social para aquilo representado. Acreditamos que com isso estaremos focalizando, de forma específica, a relação entre linguagem e mundo social, e o papel da imprensa em intermediar essa relação.