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4.2 O escândalo do Dossiê representado nas reportagens O voo cego do petismo e Um enigma

4.3.3 Modos de representar o escândalo e os envolvidos: escolhas que influem na

Ao representarem aspectos da realidade do escândalo, os jornalistas criam e escolhem nomes específicos de modo a interferir na realidade dos fatos. As escolhas de identificação instauram realidades específicas com significados particulares, voltados para uma determinada forma de interpretar o “mundo” do escândalo. O modo como o discurso de VEJA lexicaliza o evento mostra uma realidade de crise, de corrupção e de irregularidades na política do governo Lula. Conforme mostramos recortes experienciais das seções anteriores, o modo como os jornalistas escolhem representar o escândalo em termos dos usos dos cartões de crédito corporativos revela uma realidade de gastos abusivos e de corrupção de agentes políticos. Vimos que as escolhas lexicais são fundamentais no processo de significação do mundo construído.

Gouveia (1998, p.284) observa que no processo de representação tudo é uma questão de escolha, pois através de nossas experiências de apreensão do mundo podemos fazer uso de vários mecanismos linguísticos que nos permitem construir diferentes disposições linguísticas dos eventos, visto que, conforme postula a LSF, a linguagem nos disponibiliza modos alternativos para construirmos um mesmo acontecimento de diferentes formas. Nesse sentido, a utilização de um nome, em detrimento de outro, denota o posicionamento do jornalista frente aquilo que nomeia. Acerca desse processo de nomeação, vejamos nos recortes abaixo como os jornalistas atribuem nomes ao escândalo.

(161) Depois que a farra veio à tona [Circunstância de tempo], o Palácio do Planalto [Ator] adotou [Processo Material] um discurso moralizador [Meta] e mandou investigar [Processo

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(162) Como Matilde [Circunstância de comparação], outros ministros [Ator] caíram [Processo Material] na folia [Escopo].

(163) A ministra [Ator] está colocando [Processo Material] cadeado [Escopo] em um cofre que já foi arrombado [Circunstância de lugar].

É possível observar, nessas escolhas de nomeação do evento, como os jornalistas se posicionam frente algumas ações materiais que dão existência ao escândalo. Conforme se nota, o acontecimento é percebido de três formas: enquanto uma farra, uma folia e um cofre arrombado. As três escolhas lexicais são oriundas do discurso infamante construído pelos jornalistas, por isso conferem descrédito ao acontecimento. Tanto “a farra”, como “a folia” dão significados similares à interpretação do evento, dotando-o de um rótulo específico. Com essas escolhas, entende-se que os cartões proporcionam um grande divertimento para seus

usuários. No recorte (163), a decisão de representar o escândalo como “um cofre já arrombado” remete àquelas escolhas lexicais, como, “foram pagos 78 milhões”, “gastaram 3,7 milhões de reais”, “torrou 115.000 reais”, “sacou 58,7 milhões de reais em dinheiro”, dentre

outras, que constroem o acontecimento como um escândalo financeiro.

Outras escolhas de nomeação para o escândalo podem ser encontradas no recorte (164) abaixo.

(164) O mau exemplo [Ator] começa [Processo Material] na Presidência da República [Circunstância de lugar], cujas faturas milionárias [Portador] permanecem [Processo

Relacional Atributivo] secretas [Atributo].

Fica evidente que as escolhas destacadas acima são fundamentais para condenar as ações da Presidência da República, visto que esta, além de incorrer nos abusos com os cartões, manteve sigilo sobre os altos valores gastos. Essa avaliação negativa pode ser percebida também na organização das experiências acima: na oração material, a responsabilidade pela ação é conferida ao mau exemplo praticado pela Presidência; na oração

relacional, esse mau exemplo produziu “faturas milionárias” encobertadas pela própria

Presidência. Por meio desse recorte, o jornalista deixa claro que o governo Lula responde pela crise política. Mais uma vez, nota-se uma escolha lexical, “faturas milionárias”, importante para a construção do acontecimento como um escândalo financeiro.

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Conforme assegura Rajagopalan (2003, p.82), o processo de nomeação é um ato eminentemente político muito utilizado pela mídia para influenciar a opinião pública a favor ou contra personalidades e acontecimentos noticiados. Por imprimir certas interpretações ao objeto designado, a nomeação não é uma mera etiqueta identificadora de objetos do mundo. Nessa perspectiva, vejamos como o jornalista representa o escândalo no recorte (165) abaixo.

(165) Soube-se [Processo Mental Cognitivo] que a bandalha [Característica] envolvia [Processo Relacional Identificativo] milhares de funcionários [Valor], incluindo os que servem à Presidência da República [Circunstância aditiva].

Ao nomear o acontecimento como “a bandalha”, segundo uma suposta característica

do evento, o jornalista atribui outro significado ao escândalo – de safadeza – ressaltado a desfaçatez de funcionários do governo para com a real função dos cartões corportativos. Além

disso, a esse nome é conferida uma identificação: “milhares de funcionários”. Isso significa dizer que “a bandalha” serve para definir “milhares de funcionários”. Pode-se notar também

que a escolha lexical da circunstância aditiva reafirma a crítica construída à Presidência da República, já que esse elemento circunstancial representa os funcionários da Presidência

como integrantes dos “milhares de funcionários” envolvidos na “bandalha”.

Conforme se percebe, o próprio ato de nomeação se encarrega de conferir ao acontecimento um atributo. Se tomarmos os recortes abaixo, veremos que cada forma de designar o escândalo acrescenta um novo significado a ele, dotando-o de novos rótulos e, por isso, de realidades de mundo específicas.

(166) Não há [Processo Existencial] limite para gastos nem para saques em espécie [Existente] (por lei [Circunstância de fonte], o teto das despesas [Meta] deveria ser definido [Processo

Material] em cada repartição pública [Ator], mas uma série de truques contábeis [Ator]

permite driblá [Processo Material] -lo [Meta] sem maiores problemas [Circunstância de

meio]).

(167) Mas está [Processo Relacional Atributivo] evidente [Atributo] que, na prática [Circunstância de lugar], eles [Ator] se tornaram [Processo Material] passaportes para uma verdadeira esbórnia com o dinheiro público [Circunstância de produto].

(168) De lá para cá [Circunstância de tempo], o órgão [Ator] já realizou [Processo Material] três auditorias sobre o caso [Meta], mas curiosamente nunca [Circunstância de frequência] encontrou [Processo Material] nada parecido com as maracutaias que vieram a público nas últimas semanas [Meta].

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No recorte (166), “uma série de truques contábeis” reforça o discurso de VEJA acerca

da realidade de irregularidades cometidas com os cartões corporativos. Tal designação ilustra um modo de agir dos usuários dos cartões, revelando um tipo de ação voltada para enganar as fiscalizações das faturas dos cartões. Ademais, essa escolha lexical funciona como ator da

ação de “driblar” o limite máximo permitido para despesas com esse instrumento. Chama atenção o elemento circunstancial de meio “sem maiores problemas” escolhido para codificar o contexto em que se desenrola esse processo de “driblar”: ele revela que os portadores do

cartão não encontram dificuldades em burlar aquele limite imposto para gastos. Isso nos permite entender que as normas para o uso adequado dos cartões são facilmente transgredidas. A oração material no recorte (167) apresenta a escolha lexical “passaportes para uma

verdadeira esbórnia com o dinheiro público” enquanto elemento circunstancial para significar

aquilo que se tornaram os cartões corporativos. Outra vez, a realidade de mundo do escândalo é construída com um atributo que confere um significado de divertimento para os usuários do cartão. A designação acima é mais uma alternativa encontrada pelos jornalistas para rotular o acontecimento, disponibilizando, assim, outra forma linguística de se construir a realidade dos fatos. Ainda nesse recorte (167), percebe-se que o atributo “evidente”, na oração relacional,

busca certificar o significado da nomeação em destaque. No recorte (168), a designação “as maracutaias” confere um significado de roubalheira para as ações dos usuários dos cartões, similar à representação de “uma série de truques contábeis”, no recorte (166). Chama atenção

a escolha lexical “nada parecido”, com a qual o jornalista torna patente a peculiaridade do

modo de agir desses usuários quando comprovam seus gastos com o cartão.

Essas representações nos recortes acima constroem um mundo de transgressões de normas e códigos políticos que contribuem a seu modo para que possamos construir, paralelamente, nossa experiência sobre os acontecimentos constitutivos do escândalo. São essas nomeações, juntamente com as experiências representadas, que descrevem as atividades realizadas no escândalo e seus participantes, e que classificam esses participantes de uma determinada forma, e não de outra. Analisar como os jornalistas percebem e constroem o escândalo em termos de nomes nos permite mapear quais escolhas são importantes para que uma realidade de crise e de corrupção seja construída conforme uma dada visão de mundo.

Assim como Rajagopalan (2003), entendemos que as nomeações são escolhas que respondem aos interesses políticos que norteiam a representação do evento. Tomemos os dois recortes abaixo.

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(169) Quanto às eventuais malversações ou "equívocos" cometidos no uso dos cartões [Circunstância de assunto], isso é o de menos [Processo Relacional Atributivo].

(170) Uma análise superficial de um pacote de notas fiscais emitidas em nome da Presidência da República [Característica] mostra [Processo Relacional Identificativo] a existência de fraudes primárias [Valor].

As designações acima são exemplos claros de que as escolhas de representação são motivadas pelos objetivos comunicativos que os jornalistas pretendem alcançar discursivamente. Perceber a realidade do escândalo como fruto de uma má administração ou de mal-entendidos cometidos com os cartões não é a mesma coisa que vê-la como resultado

de “fraudes primárias”. Nota-se que cada escolha confere uma identificação e uma classificação ao acontecimento e a seus envolvidos. Quando os gastos com os cartões são

tomados como “equívocos” ou como resultado de um desgoverno, isso não traz uma

implicação negativa direta para os envolvidos, eles não são diretamente responsabilizados,

visto que se houve abuso, isso foi um engano. Por outro lado, “fraudes primárias” é um modo

de perceber o escândalo como atividades ilícitas conscientemente praticadas. Com esta escolha, o jornalista atribui responsabilidade pelo escândalo aos usuários dos cartões.

Outro modo particular de construir as realidades de mundo do escândalo são as designações escolhidas para representar os envolvidos. Visto que suas ações estão no centro do escândalo, esses envolvidos são rotulados com diferentes nomes que ajudam a conferir um caráter de corrupção e de irregularidades ao acontecimento. Segundo Rajagopalan (2003, p.87), o ato de designação pode significar um processo de julgamento de valores disfarçado

de um ato de referência neutra. O autor entende que é “justamente por estar camuflado como

um simples ato referencial que tais descrições acabam exercendo tamanha influência sobre o

leitor”. Dentre as várias opções de representar os envolvidos, o termo abaixo confere um

caráter negativo aos ministros, identificando-os como gastadores.

(171) Depois que a farra veio à tona [Circunstância de tempo], o Palácio do Planalto [Ator] adotou [Processo Material] um discurso moralizador [Meta] e mandou investigar [Processo

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Embora realize o papel de meta de um processo material, essa designação implica considerar os ministros como atores do processo de gastar. As construções experienciais abaixo mostram não só novos rótulos para esses ministros, mas, também, os coloca como atores de processos materiais que sinalizam essa identificação de gastadores.

(172) Segundo colocado na lista dos que mais esbanjaram no cartão oficial, Altemir Gregolin, da Pesca [Ator], se esbaldou [Processo Material] durante o Carnaval de 2007 [Circunstância

de duração].

(173) Medalha de bronze entre os perdulários, o ministro dos Esportes, Orlando Silva [Meta], também pode ser investigado [Processo Material] por cobrir despesas indevidas com o dinheiro público [Circunstância de razão].

(174) Quem tratou de desmentir essa versão [Valor] foi [Processo Relacional Identificativo] a própria perdulária Matilde [Característica], que [Ator], no ano passado [Circunstância de

tempo], torrou [Processo Material], em média, 14.300 reais [Escopo] por mês [Circunstância de frequência].

No recorte (172), a própria designação atribuída ao ministro Altemir Gregolin remete a uma ação material de gastar: esbanjar no cartão significa gastar em grande quantidade. Além disso, a organização da experiência também coloca o ministro como ator do processo de

“esbaldou”, sustentando, assim, essa realidade de ações materiais envolvendo gastos copiosos

com os cartões. Embora pareça um simples ato de referência, essa designação constroi uma avaliação negativa para as ações do ministro com o cartão. No recorte (173), tanto o rótulo atribuído ao ministro Orlando Silva quanto o elemento circunstancial de razão sinaliza a participação do ministro no processo material de gastar abundantemente com o cartão. Representação similar encontramos no recorte (174), onde a ministra Matilde Ribeiro também

recebe o rótulo de “perdulária”, atuando como ator do processo de torrar.

Ao mesmo tempo em que são nomeados como “perdulários” esses ministros também são “os portadores de cartões” e “felizardos agraciados”, no recorte (175) abaixo.

(175) Pela legislação atual [Circunstância de fonte], os portadores de cartões [Meta] são escolhidos [Processo Material] segundo a "necessidade de cada repartição" [Ator]. Isso [Característica] significa [Processo Relacional Identificativo] que, na prática, cada secretaria, ministério ou fundação decide quem serão os felizardos agraciados com um pedacinho do Tesouro para gastar [Valor].

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Esses dois rótulos revelam como cada escolha de representação implica uma forma

particular de se olhar para os fatos. Embora “os portadores de cartões” sejam os “felizardos agraciados”, cada escolha implica um significado diferente: na oração material, os envolvidos são representados na perspectiva da lei, por isso são “os portadores de cartões”; já na oração relacional, eles são “felizardos agraciados”, porque são representados a partir da realidade

política do escândalo. Visto que a disponibilidade de alternativas e, portanto, de escolhas, é condição indispensável para qualquer representação, o jornalista joga com as possiblidades de construir uma realidade de crise e de corrupção para o escândalo, por isso faz a opção por

“felizardos agraciados”. Tal escolha sugere que vejamos os envolvidos como indivíduos

privilegiados, já que podem gastar à vontade.

Mesmo em orações relacionais, a representação desses envolvidos remete a atividades relacionadas a gastos com os cartões, conforme se verifica abaixo.

(176) O maior gastador do gabinete presidencial no ano passado [Valor] foi [Processo

Relacional Identificativo] João Domingos da Silva Neto [Característica], com 585.900 reais.

(177) O campeão de gastos no acumulado da gestão petista [Valor], no entanto, é [Processo

Relacional Identificativo] Clever Pereira Fialho [Característica].

(178) Juntos, os dez maiores gastões da secretaria da Presidência [Portador] foram [Processo

Relacional Atributivo] responsáveis por despesas de 11,6 milhões de reais [Atributo] desde

2003 [Circunstância de tempo]. (Gastaram) Sem licitação, sem controle, sem medo de ser felizes [Circunstância de meio].

Observa-se, nesses recortes, que “gastador”, “gastos” e “gastões” nada mais são que classificações, descrições e identificações que conferem ao escândalo um campo semântico particular. No recorte (178), chama atenção o elemento circunstancial de meio, através do qual o jornalista revela os meios pelos quais o processo de gastar ocorre. Esta escolha, assim como o elemento circunstancial de meio do recorte (166), reforça a realidade de que o uso dos cartões não recebia qualquer fiscalização por parte do governo.

Para finalizar esta seção, selecionamos o recorte (179) abaixo, onde a organização experiencial reforça a realidade de irregularidades que constitui o escândalo. As escolhas dos processos existencial, material e relacional, mais que apresentam essa realidade, fá-la existir, no sentido de uma construção do motivo pelo qual os gastos com os cartões são copiosos. As

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designações destacadas também são outro recurso experiencial por meio do qual o jornalista organiza discursivamente essa realidade do escândalo.

(179) Há [Processo Existencial] outro mundo [Existente], no entanto, habitado [Processo

Material] por uma casta de funcionários públicos federais [Ator], onde [Circunstância de lugar] tudo [Portador] é [Processo Relacional Atributivo] infinitamente mais [Circunstância de grau] fácil [Atributo]. Nele [Circunstância de lugar], qualquer um [Portador] pode ter

[Processo Relacional Atributivo] um cartão corporativo [Atributo], desde que conte com a simpatia do chefe [Circunstância de condição].

Visto que o escândalo político pode esvaziar o estoque de credibilidade daqueles partidos e atores políticos nele envolvidos, percebe-se que a recorrência de experiências acerca da fragilidade do sistema de fiscalização do governo quanto às normas para o uso do cartão e de rótulos para os acusados não são escolhas aleatórias de representação. Toda representação tem sua configuração própria e faz existir, discursivamente, uma realidade de mundo particular. A necessidade de comunicar o escândalo a partir dessas avaliações negativas implica necessariamente escolhas como as do recorte (179) acima.

No processo existencial, o jornalista introduz o participante “outro mundo”, através do

qual revela ser esse lugar povoado por “uma casta de funcionários públicos federais”. Este

mesmo rótulo também serve para identificar aqueles indivíduos acusados de abusar no cartão.

“Casta”, segundo o dicionário Houaiss (2001), significa classe social distintamente separada

de outras por diferenças de privilégios ou costumes particulares. A intenção de passar esse significado para os acusados é evidente quando consideramos as construções experienciais

analisadas nesta seção. Acerca dos rótulos acima, chama atenção a designação “qualquer um”

e a circunstância de condição que indicam a falta de organização do governo em normatizar regras para quem pode ter um cartão corporativo. Ainda a respeito desse “outro mundo”, na primeira oração relacional, o jornalista revela uma particularidade desse lugar: a circunstância

de grau, “infinitamente mais”, e o atributo, “fácil”, ilustram a realidade de mundo do

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