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3.3 Procedimentos e metodologia de análise

4.1.4 Escolhas de atributos e valores: o que o escândalo significa?

Em nossos dados de análise, podemos observar que as escolhas de atributos e de valores marcam, consideravelmente, a representação linguística e discursiva do escândalo. Enquanto os processos materiais, conforme vimos no item 4.1.2, representam a realidade material do escândalo (o que aconteceu), as escolhas no domínio relacional parecem fornecer subsídios informativos sobre o que o escândalo significa, isso porque processos relacionais estabelecem relações entre duas entidades, identificando ou atribuindo características a algo ou alguém.

Vejamos alguns recortes de processos relacionais atributivos e identificativos que retratam atributos e valores construídos para a configuração significativa do evento e de seus participantes.

(36) Agora [Circunstância de tempo], porém, a natureza ética da crise [Portador] torna [Processo

Relacional Atributivo] as coisas ainda mais confusas e imprevisíveis [Atributo].

(37) A crise [Portador], no entanto, não está [Processo Relacional Atributivo] apenas no PT [Circunstância de lugar].

(38) O mensalão [Portador] é [Processo Relacional Atributivo] um enorme desastre [Atributo] para o PT [Circunstância de benefício].

(39) A mesada [Portador] (...) é [Processo Relacional Atributivo] um segredo de polichinelo [Atributo] no Congresso [Circunstância de lugar].

Os recortes acima trazem escolhas de processos relacionais atributivos com os verbos

“tornar” e “ser”. Em (36), o processo “tornar” significa que a natureza ética da crise

transforma as coisas (leia-se o desdobramento do escândalo) deixando-as ainda mais confusas e imprevisíveis do que já são. Em outras palavras, após a revelação de que havia praticamente unanimidade na bancada do PT sobre os casos de corrupção instaurados no governo, o jornalista evidencia ao leitor que a crise política, agora, provocará um estado de mudança na situação que já era confusa e imprevisível. No recorte (37), o jornalista estabelece uma relação de identificação entre a crise política e o PT. Chama atenção a escolha do advérbio

“apenas”, o qual pressupõe que essa crise política também está presente no governo e em

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entre crise política e governo/partidos é claramente informada ao leitor, identificando aqueles que seriam os responsáveis pelo momento difícil vivido na política brasileira.

Se observarmos a configuração sintática e semântica do recorte (38), veremos que a relação entre o mensalão e o PT se faz notar de forma explícita no modo como a informação é distribuída nos componentes experienciais da oração. Neste recorte, ao mensalão é conferido

o atributo “um enorme desastre”, em que o PT é posto como beneficiário dessa avaliação.

Logo, todos os efeitos negativos trazidos pela revelação do escândalo (como, por exemplo, crise e pressão política, demissões) são sentidos pelo PT. Já no recorte (39), vemos uma configuração semântica capaz de sintetizar a opinião construída pela revista ao longo das duas reportagens. Neste recorte, o jornalista constroi uma relação entre o mensalão e sua condição de existência, atribuindo ao mensalão um significado particular: “um segredo de polichinelo”. Por meio dessa escolha, o jornalista deixa clara sua opinião sobre a existência do esquema: além de todos no Congresso saberem do mensalão, essa questão não era discutida por lá. E é em vista disso que organiza uma configuração discursiva ao longo das reportagens de modo a orientar o leitor em uma leitura única sobre a realidade do escândalo. Nesse processo de negociação do real, Motta (2002b, p.315) observa que o real é apenas um vago referente que reacontece com riqueza no discurso jornalístico, o qual usa e abusa dos recursos simbólicos

para articular e construir uma representação particular da notícia. Logo, “o que passa a existir

é o enunciado do fato tal como narrado, não o fato real”.

As escolhas de transitividade no domínio relacional revelam ainda que processos de classificar e definir são subsídios argumentativos imprescindíveis para a representação de entidades no escândalo. Isso mostra que a recorrência desse uso de experiência é um recurso discursivo valioso para a conformação da realidade representada. A esse respeito, vejamos os recortes abaixo.

(40) (José Dirceu) Foi [Processo Relacional Identificativo] ele [Característica] quem levou para o regaço do governo legendas como PTB, PL e PP - [Valor] (...).

(41) De todas as negativas e explicações, a mais impressionante [Valor] veio [Processo Relacional

Identificativo] do tesoureiro Delúbio Soares [Característica].

(42) O que o PT não entendeu é que será [Processo Relacional Atributivo] impossível e inútil

[Atributo] tentar espantar a crise atual com palavreado vazio [Portador], como se a plateia fosse formada por uma massa de imbecis [Circunstância de comparação].

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Se examinarmos as escolhas do verbo “ser” nos recortes experienciais acima, veremos

que a relação estabelecida para os participantes José Dirceu, Delúbio Soares e PT, busca ratificar uma representação em torno da realidade de cada um deles, construída ao longo das reportagens. Em outras palavras, veremos que as escolhas de valor e atributo servem como traços essenciais desses participantes.

Com essa perspectiva de enquadramento, os recortes acima expõem um modo de perceber a realidade que se espera ser compartilhada pelos leitores. Entendemos que essa forma de representação confere a responsabilidade da crise às entidades representadas. Construções discursivas como essas, feitas para a representação da realidade do escândalo, acabam por revelar uma representação sistematicamente organizada da realidade de corrupção e de crise que o mensalão deu ao governo. Isso vai de encontro ao conceito de ideologia em Hodge e Kress (1993, p.15): uma apresentação sistematicamente organizada da realidade.

Diante desses aspectos relacionais da construção discursiva do escândalo, vejamos como isso se dá em relação à representação do presidente Lula.

(43) A pergunta inevitável [Valor] é [Processo Reacional Identificativo] se Lula sabia das

traficâncias do tesoureiro do PT [Característica].

(44) O complicado [Valor] é [Processo Relacional Identificativo] que Lula tem sido enfático apenas nas palavras [Característica].

(45) É [Processo Relacional Atributivo] difícil [Atributo] prever como o presidente Lula atravessará as investigações, para o bem de seu governo e de sua biografia [Portador].

(46) Chegou a comentar que (...) seu objetivo [Característica], agora [Circunstância de

tempo], teria passado a ser [Processo Relacional Identificativo] encerrar bem seu mandato

[Valor]eevitar um processo de impeachment [Valor].

(47) Tudo o que Lula dizia querer [Característica], na semana passada [Circunstância de

tempo], era [Processo Relacional Identificativo] lutar [Valor] para preservar sua biografia, marcada por uma honestidade de propósitos e pela defesa da ética [Circunstância de

propósito].

(48) Terá [Processo Relacional Atributivo] sorte [Atributo] se sair dele com a avaliação de que, pelo menos, foi diferente de Fernando Collor [Circunstância de condição].

 José Dirceu levou para o regaço do governo legendas como PTB, PL e PP;

 Delúbio Soares deu a mais impressionante de todas as negativas e explicações sobre o caso;  PT impossível e inútil tentar espantar a crise atual com palavreado vazio;

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As relações construídas em torno do presidente revelam escolhas de atributos e valores imprescindíveis a uma representação de escândalo político. No recorte (43), o jornalista sinaliza ao leitor a inevitabilidade de um questionamento: o presidente sabia do pagamento das mesadas? Visto que os escândalos podem esvaziar a cota de credibilidade dos políticos (THOMPSON, 2002), saber se Lula tinha conhecimento ou não do esquema de suborno interessa de perto à imprensa. Como agente construtor da realidade social (FOWLER, 1991; FAUSTO NETO, 1999), a imprensa participa diretamente da formação do consenso político de uma sociedade, tendo papel preponderante em suscitar o debate público em torno de uma questão social como um escândalo político. Chama atenção o fato de que o jornalista é

confrontado com a escolha de “a pergunta” e “a pergunta inevitável”, o que mostra como as escolhas lexicais são orientadas por propósitos comunicativos particulares. Já que “como

produtores estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra e como expressar um significado por meio de palavras” (FAIRCLOUGH, 2001a, p.230). Ao longo das duas

reportagens analisadas, observamos que “a pergunta inevitável” não é respondida de forma

direta. As construções experienciais dos jornalistas guiam o leitor na direção de uma interpretação que aponta o presidente Lula como cúmplice das ações perpetradas por seu partido.

Em (44), o significado construído pela relação entre valor e característica dialoga com as orações verbais construídas em torno do presidente Lula. Se naquele domínio experiencial as escolhas de processo verbal representam desabafo, promessa, crítica e exigências por mudanças no quadro político, a relação estabelecida no recorte (44) põe em xeque esses dizeres do presidente. Ao conferir um valor negativo a sua postura, o jornalista desaprova a política de confiança do presidente, atingindo a credibilidade de seu poder simbólico. Isso significa dizer que a capacidade de o presidente intervir no curso do escândalo e de influenciar determinadas ações para a solução da crise por meio da transmissão de formas simbólicas fica prejudicada devido ao não cumprimento de compromissos assumidos.

No recorte (45), o jornalista avalia uma apreciação sobre o desdobramento do

escândalo. A escolha do atributo “difícil” para caracterizar uma experiência de mundo interna

sobre as investigações do escândalo parece, num primeiro momento, ser consequência do esvaziamento da política de confiança do presidente. Em outras palavras, é devido ao enfraquecimento da reputação de Lula que fica difícil julgar se ele irá resistir às investigações. Na escolha do portador, fica claro o motivo pelo qual o presidente precisa resistir a essas

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investigações, “para o bem de seu governo e de sua biografia”. Pode-se verificar também que a escolha do atributo “difícil” denota a perspectiva do jornalista sobre um aspecto do

escândalo. Segundo Fairclough (2003), afirmações avaliativas, como a construída no recorte (45), dizem respeito a como o jornalista se compromete com o que representa, o que revela, de maneira significativa, como se identifica com a representação 52. Considerar “difícil” prever como o presidente irá resistir às investigações significa não só evidenciar uma realidade de mundo existente, mas, também, considerar que a reputação do presidente não seja suficiente o bastante para mantê-lo no cargo.

As representações experienciais em (46) e (47) fazem um processo remissivo do que existe no mundo do presidente após a revelação do escândalo, daí a importância das escolhas de valor. Os valores escolhidos no recorte (46) funcionam de forma complementar à experiência representada no recorte (47). Pode-se perceber que “encerrar bem seu mandato” e

“evitar um processo de impeachment” complementa o significado de “lutar”. A escolha da

circunstância de propósito em (47) evidencia o que está por detrás desses valores. Com relação a esse processo remissivo à realidade de mundo do presidente é que faz sentido

conferir o atributo “sorte” caso Lula consiga deixar seu governo com uma avaliação superior

a do ex-presidente Fernando Collor de Melo, como acontece no recorte (48).

Nessa perspectiva, a organização da realidade do escândalo no domínio dos processos relacionais mostra como a representação não é uma interpretação objetiva de fatos sociais, mas sim um processo de construção de significados para a realidade e para os atores sociais nela inseridos. Com relação a esses últimos recortes, os atributos e valores conferidos ao presidente Lula sinalizam uma crise de reputação, onde sua integridade é seriamente ameaçada pelo desdobramento do escândalo.