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2 PARIS: A CIDADE LUZ, ESPAÇO DA MODERNIDADE

2.2 A REVOLUÇÃO NA RENOVAÇÃO URBANA: A AVENIDA E O SANEAMENTO

A evolução das cidades resulta da experiência humana sobre este espaço de consolidação das práticas sociais, econômicas e políticas. A cidade reflete, enquanto construção humana, o acumulo de vivências e a satisfação de necessidades, à medida que se consolidam as relações entre os distintos setores sociais envolvidos. Desta forma, objetivando superar as dificuldades advindas da complexidade de situações originadas no agrupamento humano com o desenvolvimento das relações capitalistas, as intervenções sobre a cidade, cumprindo objetivos pré-determinados, estabeleceriam transformações que, em maior ou menor grau, tornaram as cidades mais adequadas às funções exigidas.

Na construção da cidade moderna, objetivando identificar as causas que deram impulso às transformações urbanas, pode-se balizar o século XIV como o momento em que a transformação do espaço urbano se mostrava mais premente. A Europa vivenciou neste período a desagradável e devastadora experiência da Peste Negra que, segundo Mumford (2008, p. 413), “varreu entre um terço e metade da população, segundo estimativas mais conservadoras”.

Fruto das más condições de salubridade das cidades, aliada a inexistência de equipamentos sanitários adequados e aos péssimos hábitos de higiene da população, tal experiência refletiria, durante os séculos consecutivos, sobre a necessidade de uma nova dimensão aos espaços urbanos, amplos, abertos e saneados. Todavia, mesmo com as catastróficas experiências adquiridas em função das grandes epidemias, somente a partir de 1740, “os grandes centros europeus começaram a cuidar da limpeza urbana, drenando buracos e depressões alagadas, cheias de urina e fezes, promovendo sua canalização para esgotos subterrâneos.” (SENNETT, 2008, p. 220).

Melhores condições de arejamento das cidades surgiriam como consequência do movimento artístico denominado Renascença. Sob este impulso conceber-se-ia o espaço urbano fundamentado em princípios estéticos, obras de arte expressando espaços abertos, amplos à contemplação da paisagem. Diante das transformações urbanas ocorridas, corroborando com a ideia de construção da cidade moderna a partir de princípios estéticos e da necessidade de circulação, “a rua renascentista e as suas variações mais elaboradas, como a avenida, são retilíneas por razões estéticas e de perspectiva, e também para resolver problemas viários.” (LAMAS, 2004, p. 172).

No período do Renascimento conhecido como Barroco, as principais cidades da Europa ocidental intervêm criando espaços monumentais, ambientes urbanos onde os princípios da estética e da circulação se manifestam através da monumental avenida. Entre as monumentais construções deste período, destaca-se a Avenida Champs

Elisées, construída em 1670, onde, a partir de 1806, Napoleão ergueria o

Arco do Triunfo. No entanto, Versalhes9 “com sua imponente avenida que leva a Paris, constitui o grande espaço de tais criações.” (GIEDION, 2004, p. 134).

A imponente avenida do Período Barroco merece destaque, pelo fato de que “através de eixos, simetrias e perspectivas criava efeitos e sensações que mudavam o real e valorizava o espaço ou as edificações através de princípios de projeto e construção.” (SOUZA, 1997, p. 121). Cabe reforçar, então, que “foi por meio das novas estruturas estéticas que a cidade definiu a nova personalidade coletiva que havia emergido e encarou com renovado orgulho a sua própria face.” (MUMFORD, 2008, p. 81).

Referindo-se aos princípios estéticos como propulsores da ideia do espaço amplo, aberto à contemplação, sobretudo, Mumford (2008, p. 435) ressalta que “a perspectiva longa e a vista para dentro do espaço- aquelas características típicas do planejamento barroco- foram descobertas inicialmente pelo pintor”. No entanto, de acordo com Choay (1979, p. 51), “nenhuma prática das artes plásticas, nenhum conhecimento da geometria pode conduzir à concepção de um projeto legível; só pode fazê-lo a experiência da cidade”.

Aprimorando-se a aplicação dos princípios estéticos, conciliados a emergência de questões relativas à higiene e circulação viária, consolida-se a evolução da cidade. Fundada no atendimento a estas demandas, surge a avenida, incorporada à expressão arquitetônica, constituindo parte essencial desta, constituída por elementos que se expressam nos aspectos visuais, que são mais legíveis nas áreas amplas, em oposição a “uma cidade concentrada em termos de fechamento e sobreposições. Tais elementos se tornarão a base do vocabulário formal de Haussmann, onde apenas certos valores preestabelecidos se tornam visíveis.” (PANERAI, 2013, p. 14). No entanto, em sua origem, a cidade barroca alicerçada em princípios estéticos, quanto a salubridade, segundo Mumford (2008, p. 459), “com toda a sua luxuriante exibição,

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Versalhes liga-se a Paris por meio de uma avenida. Esta se inicia entre dois edifícios separados por um grande pátio e termina em Paris, no Champs-Elisées e no Louvre (GIEDION, 2004, p. 162).

não suportará uma inspeção rigorosa em matéria de padrões higiênicos e sanitários: a cidade medieval típica era mais salubre”.

Os princípios da higiene e aeração, somados a estética, consolidar-se-iam dentro do ideário iluminista, mesmo que tardiamente aplicados aos centros urbanos10. Em fins do século XVIII, construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase, segundo Sennett (2008, p. 215), “a tudo que facilitasse a liberdade do trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, através das quais os habitantes pudessem se transportar”. Desta forma, o florescimento do iluminismo caracteriza um período efervescente que repercutira nas intervenções sobre o espaço da cidade. Pesavento (1999, p. 33) reforça que “na passagem do século XVIII para o XIX, surgiu uma nova concepção de cidade, o que veio a expressar que ocorriam mudanças nas ideias e imagens que os indivíduos tinham do seu espaço e do mundo em geral”.

Em decorrência dos estudos sobre a circulação sanguínea realizados por William Harvey, cujos princípios seriam aplicados à cidade na perspectiva iluminista do século XVIII, as condições de salubridade dos espaços urbanos centrais melhorariam. Richard Sennett (2008, p. 214) afirma que, “tais descobertas sobre a circulação do sangue e a respiração levaram a novas ideias a respeito da saúde pública, elas começaram a ser aplicadas aos centros urbanos”. Portanto, podemos afirmar que o urbanismo, enquanto resultado das intervenções habilmente planejadas e aprimoradas com o desenvolvimento das técnicas aplicadas sobre o espaço urbano, “tem seus fundamentos firmados em seus predecessores iluministas, que concebiam as cidades como artérias e veias, os urbanistas modernos colocaram esse imaginário a serviço de novos usos.” (SENNETT, 2008, p. 265).

Dentro desta visão da cidade enquanto organismo vivo e diante da difusão da necessidade de asseio e higiene, emergiria sobre o espaço urbano, a partir de preceitos médicos, os princípios do higienismo11. Movidos no apelo à modernidade com a transformação, a modernização dos espaços, os higienistas entendiam que os setores populares estavam, segundo Ortiz (1991, p. 82), “aprisionados a costumes “atrasados” e “anacrônicos”, deslocando o problema das epidemias desta cultura

10Em 1750, a municipalidade obrigou o povo parisiense a lavar o estrume e o entulho

acumulado defronte às residências. Em 1780, foi proibido esvaziar os penicos nas ruas (SENNETT, 2008, p. 220).

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O higienismo é uma teoria que apreende a realidade endêmica das doenças e uma ideologia que permite ao corpo medical elaborar uma política de saúde (melhorias dos hospitais, encanamentos de água, abertura de esgotos, etc.) (ORTIZ, 1991, p. 82).

“bárbara” para um diagnóstico que “medicaliza” a sociedade, o que lhes permite agir sobre ela”. Mesmo assim, apesar de algumas concepções equivocadas, foram os filósofos infeccionistas, “na verdade que produziram o arcabouço ideológico básico às reformas urbanas realizadas em várias cidades ocidentais na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.” (CHALHOUB, p. 65).

Uma demonstração das vias urbanas, herdadas da idade média, comprimidas entre muralhas, podem ser observadas nas imagens a seguir:

Figura 04: Rua estreita e sinuosa Figura 05: A via e a sarjeta central, (C. 1865)

Fonte: Pesavento (1999, p. 143- 145)

A drenagem pelo centro da via, o alinhamento irregular e a largura ínfima das ruas da cidade medieval, apresentavam-se inadequadas às demandas da circulação do ar, mercadorias e pessoas, além do aspecto militar, dificultando o deslocamento dos pelotões. A umidade advinda da drenagem das águas na superfície da via, servindo também aos despejos noturnos das águas servidas, associada a pouca circulação do ar e baixíssima insolação, tornavam-se favoráveis à disseminação de mosquitos, proliferação de doenças e propagação de ondas epidêmicas.

Diante destas condições de insalubridade das vias urbanas, aliada ao grande adensamento populacional em habitações sem as mínimas

instalações sanitárias adequadas, os homens se deterioravam “nesses bairros ruins de Paris, sofrendo mesmo, no entender dos contemporâneos, um processo de degeneração biológica que atinge sua população no intervalo de duas ou três gerações.” (BRESCIANI, 2004, p. 76).

Desta forma, objetivando tornar a cidade apta à aplicação dos princípios da estética, higiene e circulação e ao desenvolvimento das forças do capital, após “ter sido isolado o vibrião do cólera e ter individuado a causa de difusão na eliminação das fezes, os cientistas deixam o campo aos engenheiros sanitários e aos seus projetos de condutores sanitários.” (ZUCCONI, 2009, p. 106).

Neste contexto urbano, aqueles que tinham recursos para residir em espaços menos adensados, propiciando um afastamento dos espaços insalubres e com propensão ao contágio nas grandes ondas epidêmicas, assim o faziam, pois a cidade deve ser a imagem “que cada homem fazia de uma vida a ser evitada: multidões de pessoas desamparadas, desenraizadas e ameaçadoras, sendo a manutenção de uma vida decente uma questão de sorte mais do que de vontade.” (SENNETT, 1988, p. 178). Logicamente, neste sentido, entre as transformações, “consideramos ser o esgoto uma imagem simbólica da “outra Paris”.” (PESAVENTO, 1999, p. 78).

Paris apresentaria resultados magníficos nesta união de ciência e técnica sobre o espaço urbano. Decorre que, somente a França possuía uma instituição que conjugaria técnica e ciência à sociedade industrial, a Escola politécnica, que estava “sistematicamente formando engenheiros com uma bagagem teórica insuperável. A primeira transformação de uma cidade para ajustá-la às modificações causadas pela indústria foi realizada por engenheiros.” (GIEDION, 2004, p. 786).

Para entender esta construção da cidade moderna, a partir de Paris, pautada numa nova forma de pensar o urbano sob os pilares da ciência e da técnica, revalorizando o espaço a adequando-o às novas exigências, fruto da Revolução Industrial. Convém estudar, aprofundar conhecimento sobre o contexto histórico da formação de seus construtores, o surgimento das instituições que os formaram, o desenvolvimento da estrutura de ferro e da técnica construtiva com este material, forjando as grandes obras, símbolos da modernidade. Procede, também, um breve estudo dos princípios ideológicos impulsionadores e norteadores do progresso cientifico preconizado, seu reflexo nas formas de pensar a cidade.

2.3 A ESCOLA POLITÉCNICA- A TÉCNICA E A CIÊNCIA