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A S NOVAS E “ PERIGOSAS ” IDEIAS DO G ENERAL L ABATUT

O V EREADOR F RANCISCO G OMES B RANDÃO

A S NOVAS E “ PERIGOSAS ” IDEIAS DO G ENERAL L ABATUT

Enquanto na Bahia o clima não parava de esquentar, no Rio de Janeiro Francisco Gomes Brandão era recebido por d. Pedro como grande representante das primeiras vitórias obtidas nas lutas pela independência. A viagem havia durado cerca de um mês. E o Secretário conseguiu chegar a tempo de assistir à cerimônia de coroação.

Diferentemente, contudo, de uma aclamação realizada em plena praça pública, a coroação do Imperador ocorrera em moldes quase privados, no interior da capela real, seguindo uma liturgia plasmada na tradição e em toda a pompa característica do Antigo

Regime.384 E, finda a solenidade, o soberano tratou logo de escolher aquele que seria visto como um dos maiores símbolos inaugurais de um novo Império que, com algum custo, se erigia...

381

Ibidem, p. 89. 382

ARAÚJO, Ubiratan de Castro. “A Guerra da Bahia...”, p. 19.

Veja-se, ainda, neste sentido, Carta de Bento a seu pai Luís Paulino. Bahia, 27 de abril de 1822. Apud: FRANÇA, Antonio d’Oliveira Pinto da (org.). Cartas Baianas, 1821-1824: subsídios para o estudo dos problemas da opção na independência brasileira. São Paulo: Editora Nacional, 1980, p. 45- 46.

383

Carta de Maria Bárbara a Luís Paulino. Bahia: 17 de março de 1822. Apud: FRANÇA, Antonio d’Oliveira Pinto da (org.). Cartas Baianas..., p. 27-28.

384

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “A vida política...”, p. 85. A respeito das cerimônias, ver o interessante estudo de SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 259.

104 A Ordem do Cruzeiro surgia, assim, como honraria destinada a expressar o reconhecimento pelos serviços prestados à causa da independência. Era, em outras palavras, uma graça. Mas uma graça por meio da qual o Imperador mantinha um já conhecido sistema de concessão de privilégios – ainda que, a partir de então, basicamente ligados ao mérito.385 De certa maneira, o dia se encerrava sem quebrar o compasso que, momentos antes, havia regido aquela restrita celebração.

Para a satisfação de nosso personagem, sua condecoração com a nova Ordem acabou acontecendo pouco antes de seu retorno à Bahia. Mas também logo depois de sua recusa em ser nomeado Barão da Cachoeira. A situação é curiosa, e também um tanto difícil de explicar.

De um lado, há quem acredite que a rejeição ao baronato tenha sido fruto do receio quanto à série de intrigas e indisposições que a ostentação daquele título poderia suscitar. Na Bahia, afinal de contas, não eram poucos os que, além de igualmente engajados nos confrontos mais recentes, carregavam em seus nomes e origens ótimas credenciais para receber uma graça como aquela.386 E esse, pelo menos ao que tudo indica, não parecia ser o caso de Francisco Gomes Brandão.

Mais ainda, é preciso ressaltar que, sem o apoio desses figurões, dificilmente nosso personagem teria alcançado a posição de que, naquele momento, desfrutava. A política, como se sabia, era cuidadosamente construída a partir de lealdades e interesses. E, por isso mesmo, alguém como Brandão jamais viria a ignorar a importância de manter bem firmes os laços de cumplicidade e solidariedade dos quais dependia o seu

status.

Mas... e se além de tudo isso – e para início de conversa –, Brandão também não dispusesse de fortuna que lhe permitisse sustentar tal honraria? Realmente, as atividades do Conselho eram, àquela altura, as únicas com as quais ele se via envolvido. E, por esse motivo, não é lá muito provável que gozasse de rendimentos expressivos. Nessa

385

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “A vida política...”, p. 99.

Para uma abordagem mais aprofundada da ideia de nobilitação e dos significados das ordens honoríficas no mundo português, veja-se, por exemplo, OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001. Especificamente sobre o papel das condecorações no processo de construção do Império do Brasil, há o interessante estudo de SILVA, Camila Borges da. As ordens honoríficas e a Independência do Brasil: o papel das condecorações na construção do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014. 386

105 direção, fica a pergunta: será que valeria a pena tentar manter uma imagem que, aos olhos de quem, de fato, importava, sabidamente não se podia sustentar?387 No fim das contas, dizem alguns se seus biógrafos, é bem possível que, aí sim, estivesse o maior dos seus problemas.388 Afinal, a dinâmica de um jogo de relações ainda tão fortemente apoiado na questão das aparências também trazia algumas tantas armadilhas. E, a bem da verdade, é difícil imaginar que nosso personagem não as conhecesse...

De qualquer maneira, vale destacar o fato de que ele próprio também nos deixou sua versão dos fatos. Isso mesmo: numa carta endereçada a Antônio Teles da Silva, futuro marquês de Resende, e redigida décadas após o acontecido, Brandão comenta os motivos que o teriam levado à recusa do título de barão. O trecho é um pouco extenso. Mas bastante interessante.

Chegando ao Rio de Janeiro em 14 de novembro, achei já proclamado Imperador o Senhor D. Pedro I, de gloriosa e saudosíssima memória. Três dias antes da coroação de Sua Majestade Imperial, no dia 1º. de dezembro do mesmo ano, fez-me V. Exa. a honra de ir em pessoa dar-me os parabéns do título de barão da Cachoeira com que S.M.I. me havia agraciado e cujo despacho seria publicado no dia da coroação. Morava eu na rua d’Ajuda, quase defronte do nosso amigo comum, o advogado José Joaquim da Rocha. E recordo-me que V. Exa. me dissera que os parabéns que me dava eram da parte de S.M.I. Logo que V. Exa. saiu, dirigi-me ao Sr. José Bonifácio de Andrada, então ministro do Império, e expus-lhe que um tal despacho me poria em dificuldades (...) na Bahia, fazendo-me perder as afeições do partido liberal (...) e, ao mesmo tempo, [despertando o] (...) ciúme da classe rica e poderosa da província (...). O ministro, não aceitando estas razões, prometeu-me falar ao Imperador. Voltando eu no dia seguinte, disse-me que S.M.I. aceitou graciosamente (...) [o] que expus, louvando muito o meu patriótico desinteresse e que, em consideração desse (...) [meu zelo] pela causa pública, não podia deixar de me nomear dignitário [da ordem do Cruzeiro], visto que me não nomeava barão. Ainda me opus a esta graça, expondo que qualquer remuneração pública só deveria ter lugar

387

A este respeito, veja-se, por exemplo, RAMINELLI, Ronald. “Nobreza e riqueza no Antigo Regime ibérico setecentista”. In: Revista de História. São Paulo, nº. 169, p. 83-110, julho-dezembro de 2013. 388

A questão é colocada por Joaquim Manoel de Macedo, que também ressalta o fato de Brandão não pertencer à “família rica” e “bem prestigiosa” da Bahia. Cf: MACEDO, Joaquim Manoel de. “Francisco Gê Acaiaba de Montezuma...”, p. 165.

106 depois de finda a luta gloriosa em que estávamos. S. Exa., porém, disse- me que nada mais opusesse (...).389

Tarefa árdua a de tentar juntar os pontos da “rede furada da memória”...390 Árdua e, aliás, para lá de arriscada.

Perseguindo com prudência o fio dessa narrativa, fica claro que, mesmo vinculando o baronato a um provável estremecimento de suas relações com os poderosos da Bahia, em nenhum momento Brandão confunde-se com eles. É verdade que também não dá detalhes sobre suas condições de vida. No entanto, é possível que, para ele, isso não fosse muito relevante. Ou mesmo interessante...

Seja como for, podemos perceber que as palavras de Brandão reforçam a primeira série de argumentos que há pouco apresentamos. Ao registrar uma sequência de eventos que seu interlocutor desconhecia,391 nosso personagem dava uma contribuição, possivelmente pouco despretensiosa, para que uma parte supostamente controversa de sua trajetória fosse contada à sua maneira. Se bem sucedido em sua tentativa, cremos que as desconfianças colocadas pelo tempo talvez ajudem a encontrar uma resposta.

Para todos os efeitos, o fato é que, ainda naqueles últimos dias de 1822, a cartada produzir, um resultado favorável. Sem o título de barão, mas de posse de uma comenda que atestava a grande estima adquirida junto aos peixes grandes do momento, enquanto planejava sua viagem de volta, Brandão provavelmente deleitava-se ao sentir em sua bagagem o peso do monte de prestígio que havia conquistado.

Enquanto isso, mesmo que chegado à Bahia havia cerca de apenas uns dois meses, o polêmico Pedro Labatut não escondia sua preocupação quanto ao “estado crítico em que se achava a Província”.392

É verdade que, com o passar do tempo, o esvaziamento de algumas regiões, a exemplo da própria capital, somado aos inúmeros bloqueios a certas vias de acesso, comunicação e abastecimento, por vezes faziam com que a fome, as doenças e privações de ordens diversas causassem muito mais mortes do

389

Correspondência do Marquês de Resende, 03 de outubro de 1854. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 80. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1916, p. 495-496.

390

A expressão é de CALVINO, Ítalo. O caminho de San Giovanni. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 72.

391

Correspondência do Marquês de Resende, 03 de outubro de 1854... .

Na carta, Francisco Gomes Brandão afirma que os fatos por ele relatados não haviam sido “presenciados” por “V. Exa.”.

392

107 que os tiros, as balas de canhão, ou mesmo os eventuais confrontos mais diretos entre as tropas.393

Mas embora em muitos momentos a realidade apontasse para uma guerra entrincheirada e praticamente imóvel, é difícil imaginar que a atmosfera já bastante carregada não deixasse em aberto a possibilidade de explosão de um enfrentamento verdadeiramente decisivo. Assim, e sobretudo diante de um exército deficitário e já carente “até de coisas que, insignificantes em sua essência, eram da maior importância”394

, Labatut insistia na importância de se tentar remediar, o quanto antes, questões como a “grande falta” de fardas, mantimentos, armas, munições e “outros socorros necessários para a Guerra”.395

Pelo andar da carruagem, sua sensação era de que o fim dos conflitos ainda estava distante. E ele estava certo.

Mas ainda havia um problema. Embora, para o General, não houvesse tempo a perder, cada vez mais muitos contemporâneos, entre os quais o próprio Francisco Brandão, insistiam no fato de que “é um Brasileiro quem deve salvar a Bahia, e não um Estrangeiro sem Pátria”, que “desconhece os usos do País”396

e “sem outro laço social que não o interesse”.397

Desengajado do exército de Napoleão e experimentado nas guerras de independência da América espanhola, como outros naquele tempo Labatut era visto como apenas mais um mercenário sem raízes locais.398 Sobretudo após episódios feito aquele terminado num grande número de escravos fuzilados, desconfiava-se, com alguma razão, de que o General fazia uma leitura muito própria (e estranha a muita gente) de aspectos vários que constituíam o novo cenário no qual se via lançado.

393

GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O Povo e a Guerra: Participação Popular na Guerra de Independência na Bahia (1822-1823). Dissertação (Mestrado em História). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2004, p. 11.

394

Declaração franca que faz o General Labatut..., p. 38. 395

Ibidem, p. 42. 396

Ibidem, p. 38. 397

Carta do Conselho Interino de Governo da Bahia ao Ministro José Bonifácio. Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial-Provincial, maço 637-2.

Em Ofício remetido ao Imperador, Brandão refere-se a Labatut como “um Tirano sem Lei e sem Pátria”. Cf: Requerimento de Francisco Gomes Brandão Montezuma, secretário do Conselho Interino de Governo da província da Bahia, encaminhado ao Ministério do Império, solicitando providencias contra as acusações que sofre. Biblioteca Nacional (RJ), Divisão de Manuscritos. Documentos Biográficos, C-0522,002.

398

ARAÚJO, Ubiratan de Castro. “A Guerra da Bahia...”, p. 23; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil..., p. 98.

108 Nesse sentido, é interessante observar que, já por aquela época, as reclamações quanto à conduta de “um General desacreditado em extremo naquela Província”399

, conforme denunciavam os membros do Conselho Interino de Governo, só faziam se multiplicar. Senhores e governantes cada vez mais desgostosos com relação à tamanha insubordinação chegavam ao ponto de solicitar a sua “imediata remoção”400

do posto de comandante das chamadas “forças patriotas”.401

No fundo, os protestos contra a execução dos escravos rebelados davam apenas uma pequena prévia da tensão que, nos próximos meses, viria a se instaurar entre Pedro Labatut e grande parte da elite baiana.

Tomemos como exemplo um Ofício do Conselho encaminhado ao coronel de milícia e senhor de engenho Simão Gomes Ferreira Veloso, e também a ninguém menos que Francisco Gomes Brandão. Redigido em fins daquele tumultuado mês de dezembro de 1822, o documento, como tantos outros do mesmo feitio, deveria atualizar o Imperador acerca dos rumos assumidos pelos combates ainda em curso contra os portugueses. Segundo os redatores, naquelas páginas seriam tratados “negócios graves e da maior transcendência”, que deveriam ser levados de pronto ao “Alto Conhecimento de Sua Majestade”.402

Para a surpresa de poucos, entre os assuntos mais urgentes despontavam os ditos “desmandos”403

do General.

Assim como Veloso, naquela época Brandão já ocupava o posto de representante do Conselho junto ao Imperador. E, como tal, era-lhe fácil perceber que as atitudes do General já há algum tempo vinham despertando a ira dos poderosos locais, sobretudo em virtude da “maior displicência”404

com que lhes vinha tratando. Figurando entre aqueles homens aos quais “se reconhecia voz e iniciativa na condução da vida pública”405

, Francisco não podia calar-se diante de uma situação considerada

399

Ofícios de Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque e Miguel Calmon du Pin e Almeida sobre as acusações que Francisco Gomes Brandão Montezuma formulara contra o General Labatut e sobre as que se lhe faziam também. Vila da Cachoeira, 8 de janeiro de 1823. Biblioteca Nacional (RJ), Divisão de Manuscritos, Bahia, II-33,36,042.

400

Ofício do Conselho Interino de Governo da Bahia dirigido a Francisco Gomes Brandão Montezuma e Simão Gomes Ferreira Veloso, deputados pelo mesmo Conselho ante S.M.I., levando ao conhecimento do Imperador notícias referentes à luta contra os portugueses e solicitando providências contra os desmandos do General Labatut. Cachoeira, 16 de dezembro de 1822. Biblioteca Nacional (RJ), Divisão de Manuscritos, Bahia, II-34,10,035.

401

O termo é utilizado por KRAAY, Hendrik. Política racial, Estado e forças armadas... 402

Ofício do Conselho Interino de Governo da Bahia dirigido a Francisco Gomes Brandão Montezuma e Simão Gomes Ferreira Veloso... .

403 Idem. 404

Ibidem. 405

109 simplesmente inaceitável por aqueles que não apenas o haviam conduzido uma posição de tamanho prestígio, mas que também garantiam que nela se mantivesse. Pois tal como esperado, a cumplicidade não demorou a se manifestar em diversos escritos nos quais sobravam queixas à postura assumida pelo General. Tinham, todos eles, as mãos de D. Pedro I como destino.

Em linhas gerais, o teor dos argumentos de Brandão não diferia muito do daqueles contidos no Ofício a ele outrora remetido. E também não destoava do de outros escritos encaminhados ao Rio de Janeiro pelos demais membros do Conselho. Em cada um daqueles documentos, eram inúmeras as denúncias compiladas com o objetivo de evidenciar “o caráter e procedimentos despóticos” do General, “que se acha agora bonançoso (...), independente e absoluto”.406

Segundo seus opositores, Labatut vinha tomando para si atribuições que iam muito além do comando do “Exército ora reunido na Província”.407

Às vistas do Conselho, seu “mal procedimento” era fruto de um “já conhecido plano”: o de “atribuir a si, e somente a si (ridícula ambição!), tudo o que se há feito a bem da salvação da Bahia”.408

Mas em meio a diversas acusações contra a figura do General, saltava aos olhos uma notícia acerca da execução sumária de um escravo “preso desde Maio nas cadeias da Vila de Santo Amaro por haver raptado uma Mulatinha e ter feito uma morte”.409

A ordem, segundo um Despacho que vinha em anexo, teria partido do próprio Labatut. O episódio, brevemente narrado nas últimas linhas daquele mesmo Ofício há pouco referido, seria apontado como mais um “ato tão arbitrário como escandaloso do General”. Somava-se, assim, a uma longa lista de fatos que depunham contra o seu comportamento. Decididamente, para muitos tornava-se cada vez mais difícil não encarar a presença de Labatut como uma força desorganizadora da sociedade e da economia açucareira, que àquela altura já não andava mais tão bem das pernas.410 Ao fim do documento, os remetentes apostavam na retórica para expressar seu profundo

406

Ofícios de Francisco Elesbão Pires de Carvalho..., em 21 de fevereiro de 1823. 407

Ofícios de Francisco Elesbão Pires de Carvalho..., em 8 de janeiro de 1823. 408

Ofício do Conselho Interino de Governo da Bahia dirigido a Francisco Gomes Brandão Montezuma e Simão Gomes Ferreira Veloso... .

409 Idem. 410

110 descontentamento: “Onde irá isto parar?...”, perguntavam em tom inflamado.411 O clima estava mesmo esquentando; e a resposta não tardaria a chegar.