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Ainda naquele início de década, a Bahia mantinha comunicação direta com Lisboa. Inclusive, para alguns contemporâneos, o fato de a capitania possuir sólidos

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Mas quase sempre com suas famílias gozando de uma boa situação econômica e social. 214

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais..., p. 102. 215

Ibidem, p. 48-49. 216

Ibidem. 217

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos..., p. 714. 218

NEVES, Guilherme Pereira das. “Sociabilidades modernas e poderes tradicionais no Rio de Janeiro de 1794”. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades. Lisboa: Biblioteca Digital Camões, 2008, p. 1-16, p. 1.

64 laços comerciais com as praças do Porto e da própria capital portuguesa em muito teria favorecido a rápida divulgação das novas notícias. E eles não estavam errados.

Logo após os primeiros rumores sobre a grande rebelião alcançarem terra firme, os burburinhos começaram a ganhar as ruas da capital baiana e a transbordar para além dos seus limites, chegando também aos ouvidos dos habitantes dispersos pelas vilas do interior. Em poucos meses, as novidades partidas do porto de Salvador certamente já haviam se espalhado, feito rastilho de pólvora, por todo o território.

Pois no início da madrugada do dia 10 de fevereiro de 1821, um grupo de oficiais de artilharia liderados pelo prestigiado Tenente Coronel Manoel Pedro de Freitas Guimarães saiu de suas casas com o intuito de convencer a outros “camaradas” a aderirem ao movimento então organizado em apoio à chamada revolução liberal.219 Sem dúvida tocados pelo ideário de reformas que, acompanhando o balanço das ondas, passava a circular de um e de outro lado do Atlântico, os insurgentes enxergavam no governo constitucional um remédio para os males que então assolavam a sua terra. Entre eles, “a corrupção dos magistrados”, a “pobreza dos povos” e a “miséria dos soldados” ganhavam maior destaque.220

Para surpresa de muitos, mesmo que se deparando com alguma resistência, os articuladores acabaram por sair vitoriosos. E em meio a um clima de muita expectativa, ainda ao final daquele mesmo dia eles aproveitavam para oficializar a adesão da Bahia ao movimento liberal português. Nesse sentido, seu primeiro passo foi nomear uma Junta Provisória de Governo que fosse capaz de manter as coisas em seus devidos eixos até que d. João jurasse à nova Constituição, cuja feitura estava nas mãos das Cortes recentemente convocadas. Freitas Guimarães, enquanto oficial superior mais antigo, era conduzido ao comando das Armas, sendo assim revestido de grande autoridade.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, os rumores sobre o avanço constitucionalista e sobre a possível resposta da Coroa à agenda por ele colocada também já eram motivo de

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Cf: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Regeneração Política no Brasil: os movimentos de 1821/1822 na Bahia e os primórdios da edificação do Império do Brasil”. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História /ANPUH - ANPUH: 50 anos. São Paulo: Universidade de São Paulo, julho de 2011, p. 1.

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Proclamação do tenente-coronel Manuel Pedro de Freitas Guimarães. Bahia: 10 de fevereiro de 1821.

Apud: TAVARES, Luís Henrique Dias. “O pronunciamento de fevereiro 10, 1821, na Bahia”. In: Universitas: Revista de Cultura da Universidade Federal da Bahia, nº. 16. Salvador: Centro Editorial da UFBA, 1973, p. 55-61.

65 grande agitação, não tendo demorado a provocar uma “falaria mui grande” 221

entre boa parte população. Aliás, ainda na condição de grande centro político do império luso- brasileiro, era para lá que passavam a ser remetidos os diversos informes a respeito das maneiras como o movimento iniciado na cidade do Porto estava sendo recebido alhures. Pois não por acaso, e ainda em dezembro de 1820, um informante do Intendente Geral de Polícia já havia lhe passado algumas notícias bem frescas acerca do “estado da opinião pública” no norte do Brasil. Segunda cidade da América portuguesa em importância econômica, não há dúvidas de que a capital da Bahia estava sempre a despertar grande interesse. E numa carta enviada diretamente de lá, assim ele descrevia a situação que na época já se apresentava diante dos seus olhos:

A fermentação dos espíritos aqui vai sempre crescendo. Só se fala de Constituição. O entusiasmo chegou a um ponto mais alto do que antes (...). Circulam os folhetos públicos e as canções patrióticas. Estas são cantadas em alta voz; aqueles são lidos publicamente nas ruas e travessas, no meio de grupos de 30 a 40 pessoas e com os aplausos dos ouvintes (...).222

As palavras do autor daquela missiva iam ao encontro daquilo que uma série de escritos já deixava entrever: em meio a um clima de grande efervescência, as notícias mais recentes começavam a se afastar da condição de meras novidades do âmbito privado para serem encaradas como parte de um espaço comum.223 E era assim, sem muita cerimônia, que, numa sociedade ainda fundamentalmente regida pela oralidade, um público bastante variado passava a acompanhar as discussões iniciadas a partir da prática da leitura coletiva, e que se desenrolavam nas tabernas, casas de pasto, e em outros tantos daqueles novos espaços de sociabilidade aos quais nos referíamos há pouco. Segundo um grande número de ofícios, processos e informes do período, os papeis distribuídos e até mesmo comentados em lojas e boticas espalhadas pelo território começavam a servir como motores do debate entre aqueles que enxergavam na

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Arêas a Souza Coutinho, em 17 de março de 1821. In: Documentos para a História da Independência, vol. 1. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p. 238-239.

222

Cartas de C. de Geine ao Intendente da Polícia, em 02 de janeiro de 1821. Biblioteca Nacional (RJ), Divisão de Manuscritos, Missiva II-33, 22, 74.

223

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Os panfletos políticos e o esboço de uma esfera pública de poder no Brasil”. In: ABREU, Marcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (org.). Cultura Letrada no Brasil. Objetos e práticas. Campinas: Fapesp/Mercado de Letras/ABL, 2005, p. 399-412, p. 401.

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palavra uma bela ferramenta de poder e de persuasão.224 Aos poucos, era ela que se transformava naquela voz geral, capaz não só de formar opinião, mas também de refletir, de quando em quando, um novo tipo de preocupação, agora coletiva, em relação ao político.225

Não que os autores de grande parte dessas obras visassem, necessariamente, a um público mais amplo do que a pequena “ilha de letrados”226

que eles próprios integravam.227 No entanto, era nítido o quanto as ideias ventiladas por cada uma delas começavam a extrapolar os limites da pequena órbita em que haviam sido produzidas.

“Mais ágeis e mais baratos” que os periódicos, esclarece-nos Lúcia Bastos, folhetos e panfletos circulavam como “pequenos livretos”. Algumas vezes, não eram encadernados. Seu tamanho variava conforme seu formato. “Podiam publicar páginas e réplicas rápidas”, mas também “abrigar escritos mais longos e reflexivos”. Eram redigidos e estruturados de maneiras diversas, quem sabe no intuito de chegarem, pelo “falar de boca”, aos ouvidos de muitos dentre aqueles que não eram capazes de lê-los por si próprios.228

Mas apesar das diferenças, em todos esses gêneros de escrito “os autores apresentavam suas ideias de forma bastante organizada”, por vezes se valendo de “frases simples e diretas, destinadas a causar impacto sobre o receptor e a facilitar a compreensão da mensagem”. Geralmente, explicavam seu posicionamento sobre o assunto de que tratavam. Procuravam fornecer “opiniões e ensinamentos que pudessem influenciar o público leitor”.229

Era assim que, muitas vezes, começavam a fazer seu nome.

Pois em meio àquele clima de constantes novidades, Francisco Gomes Brandão deixava Coimbra não apenas com o cobiçado diploma de bacharel em Leis, mas

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Cf: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Os panfletos políticos e o esboço de uma esfera pública de poder...”; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais..., especialmente o Capítulo 1; e CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Bastos; BASILE, Marcello. Às armas, cidadãos! – Panfletos manuscritos da independência do Brasil (1820-1823). São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

225

NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. “Os panfletos políticos e o esboço de uma esfera pública de poder...”, p. 410.

226

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem..., p. 65. 227

NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais..., p. 102. 228

NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. “Os panfletos políticos e o esboço de uma esfera pública de poder...”, p. 402.

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67 também com a fama de “estudante inteligente e mal comportado”.230

E não sem motivo: em “mérito literário”, avaliado como “muito bom”, por um, e considerado “bom” por sete de seus professores. Em “probidade, prudência e desinteresse”, aprovado por quatro e reprovado por quatro. Já em “procedimento e costumes”, aprovado por dois e reprovado por seis.231

Então com seus 27 anos – e certamente já cheio de ideias na cabeça... –, ao mesmo tempo em que ele voltava a caminhar pelas ruas estreitas e sempre muito movimentadas de Salvador, um conhecido periódico também já estava a circular por muitas delas. Era o já razoavelmente badalado Diário Constitucional, impresso pela Tipografia da Viúva Serva & Carvalho e saído sob os cuidados de Francisco José Corte Real.

Naquele momento, tanto na Bahia quanto na maior parte do norte do Brasil, o que mais se via eram escritos voltados à defesa de uma postura de obediência e total fidelidade às determinações do parlamento português. No entanto, e para a maior surpresa de grande parte do público leitor, nas páginas daquela nova folha era possível deparar-se com um outro tipo de atitude. E assim porque, além das diversas críticas à recém-empossada Junta Provisória de Governo, nelas também havia espaço para uma defesa bastante firme da ideia de liberdade, que ali se traduzia em desejo pela preservação da autonomia, agora estabelecida dentro de uma estrutura constitucional mais ampla.232

Em notório contraste com a linha assumida por outros jornais que também circulavam naquele momento, o Diário não escondia sua preocupação quanto aos novos laços que, a partir de então, passavam a ligar a Bahia a Lisboa. Nesse sentido, expressava suas reservas ao afirmar que apenas a existência de um centro de poder entre os trópicos poderia garantir a conservação de um império composto de dois reinos distintos, dotados de direitos e deveres recíprocos.233 Por tudo isso, a folha se tornava

230

VIANNA, Hélio. “Francisco Gê Acaiaba de Montezuma...”, p. 105. 231

FONSECA, Luiza da. “Bacharéis brasileiros. Elementos biográficos (1635-1830)”. In: Anais do IV Congresso de História Nacional, vol. XI. Rio de Janeiro: IHGB, 1951, p. 109-405, p. 393.

232

Cf: Hendrik Kraay. Política racial, Estado e forças armadas..., p. 179. 233

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “A vida política”. In: SILVA, Alberto da Costa e (org.). Crise Colonial e Independência, 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva/Fundación Mapfre, 2011, p. 95.

68 uma voz bastante incômoda, já que dissonante, em meio a um grande coro apologético às Cortes lusitanas.234