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O estado de ânimos em que se encontrava a capital da Bahia era coisa que, provavelmente, nunca se havia visto. A todo momento, notícias sobre residências abandonadas, lojas e casas de comércio mantidas fechadas e gente com medo de sair às ruas inundavam o cotidiano da população. Não que tudo aquilo já não estivesse bem ao alcance dos olhos. No entanto, ainda assim

o jornalista defronte da escrivaninha apontava sua pena de pato e pensava na reação de quem iria ler as linhas que lançaria sobre o papel. Seu objetivo, principalmente naquele momento em que se dividiam tão radicalmente as opiniões, era ganhar para sua causa o público leitor. [Ou ouvinte.].286

Até porque, a própria “periodicidade do jornal permitia que o redator se entregasse a uma relação com o seu público diversa daquela do panfletário”.287

E disto certamente aproveitavam-se Francisco Gomes Brandão e seus parceiros de redação.

Durante aqueles últimos dias de fevereiro, quem se desse ao trabalho de folhear o Diário Constitucional veria expresso grande descontentamento. Descontentamento que nascia em face das notícias sobre os últimos decretos vindos de Lisboa, e que se acentuava em virtude da maneira como eles estavam a repercutir em solo baiano.

Era a província “um céu aberto...”, escreviam os redatores, “... e o sistema constitucional prometia vantagens incalculáveis”. Mas isto somente até o destino da população ver-se entregue a uma Junta de Governo disposta a sufocar qualquer

285

Cf: VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem..., p. 85. 286

LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos..., p. 422. 287

80 veleidade de autonomia política. Ou quem sabe até a nomeação de um Governador das Armas que não hesitava usar da força para fazer valer o poder do qual havia sido investido. Tudo isto, de toda forma, “para desgraça nossa”. Afinal, diziam eles, a partir de então “nada mais se respeitou: aqui a propriedade, ali a segurança; aqui a liberdade civil, ali a (...) honra e a decência pública”. Insultadas. Dia após outro.288

O recado não podia ser mais claro. E, de fato, pareceu balançar a opinião de muita gente. Sobretudo em vista dos eventos mais recentes.

É verdade que, no período reservado à eleição de uma nova Junta de Governo, tal como determinado, ainda no fim do ano anterior, pelas Cortes de Lisboa, as críticas à situação em que então se encontrava a província já haviam ganhado grande fôlego. Àquela altura, os periódicos não se cansavam de conclamar os eleitores de paróquia para que comparecessem à capital na data estabelecida e viessem, assim, a participar de um evento dotado de profundo significado político.289

Contrário à manutenção da antiga Junta, curiosamente (ou talvez nem tanto assim) o Diário Constitucional passara novamente um bom tempo sumido. E isto não apenas durante, mas também vários dias antes do pleito eleitoral. Não demorou muito para que se descobrisse que ele havia sido tirado de circulação A justificativa? Supostos “abusos” da liberdade de imprensa. 290

Existem, no entanto, alguns indícios de que, mesmo proibido, o jornal continuara circulando. Como? Bem, nos dizeres de um contemporâneo, tudo “o que ele”, periódico, havia feito, fora “mudar de forma”, tendo andado “por algum tempo transformado em

morcego”. Morcego? Sim, morcego. Tal como explicado pelo mesmo correspondente,

tratava-se do título dado a “um libelo que ocultamente se espalhara em algumas boticas”

288

Diário Constitucional, nº. 20, terça-feira, 12 de março de 1822. 289

SILVA, Marcelo Renato Siquara. Independência ou morte em Salvador: o cotidiano da capital da Bahia no contexto do processo de independência brasileiro (1821-1823). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia. Salvador: 2012, p. 51.

290

O decreto real que tratava da liberdade de imprensa datava de 2 de março de 1821. Por meio dele, os escritos deixavam de ser submetidos à censura prévia, o que garantia aos autores certa autonomia para se expressarem sobre os assuntos de sua preferência. Ainda assim, a validade da medida estava condicionada a uma regra: a de que não se atentasse contra a religião, a moral, os bons costumes e à tranquilidade pública, sem falar na Constituição e, é claro, na figura do soberano. Conforme nos lembra Maria Beatriz Nizza da Silva, embora a referida lei só tenha chegado à Bahia em novembro daquele mesmo ano, no mês de setembro o jornal Correio Brasiliense já a comentava. (Cf: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Diário Constitucional: um periódico baiano..., p. 18).

81 em formato manuscrito, ou sob a “forma de gazeta”.291

Tendo o Diário sido ou não realmente lido e comentado na clandestinidade, o silêncio forçado não deixa de ser um bom indicativo do crescente poder da palavra impressa e da grande projeção que ela passava a proporcionar àqueles que dela se valiam.

Não por outro motivo, mal o periódico voltara à ativa, já era ameaçado de ser tirado das ruas. Obviamente, os redatores resistiram, e as forças de Madeira de Melo não tardaram a impor sua condição. Categórico, o novo Governador das Armas queria que Francisco Brandão e seus companheiros lhe dessem a garantia de que não mais publicariam comentários ou discursos em seu jornal. Segundo ele, nas páginas do Diário

Constitucional deveriam constar “somente notícias (...) sem reflexão alguma”.292

O aviso estava dado. Fora ouvido, mas não seguido. Rapidamente, Francisco tratou de encaminhar a Lisboa uma queixa contra a perseguição a que sua folha estava sendo sujeita.293 Sua intenção era dar provas dos inúmeros excessos que estavam sendo praticados pelas principais autoridades da província. Por dias a fio, fora, então, sob o olhar atento da antiga Junta, e também dos membros da Comissão de Censura294, que o

Diário mantivera suas atividades, inclusive diante das crescentes dificuldades financeiras

que então lhe afligiam. A cada edição, o que não faltavam eram críticas aos “despotismos e absurdos” das Cortes e de seu maior representante naquele momento, também constantemente referido como o “infame” Brigadeiro Madeira.295

Devemos frisar que, ao percorrer as páginas do Diário Constitucional, muito, muito dificilmente alguém seria capaz de apontar quais palavras e expressões haviam saído direto da pena de Francisco Gomes Brandão. Curiosamente, contudo, ainda assim os contemporâneos não pareciam ter maiores dúvidas sobre quem estabelecia o tom de muitos dos artigos ali publicados.296 Fosse como fosse, não há como negar que, entre os textos mais comentados do momento, despontavam aqueles relativos aos crescentes obstáculos à inegável autonomia de que os baianos há algum tempo desfrutavam no que

291

Semanário Cívico, nº. 55, 1822, p. 9-10. 292

Diário Constitucional, nº. 07, 15 de fevereiro de 1822. 293

Há uma cópia do documento na edição nº. 7 (sexta-feira, 15 de fevereiro de 1822) do Diário. 294

A Comissão fora instalada pela primeira Junta de Governo, para a qual “quaisquer gazetas, periódicos, livros e mais papéis” só poderiam ser impressos a partir da concessão de uma licença, que ficava dependente de um parecer. Cf: SILVA, Marcelo Renato Siquara. Independência ou morte em Salvador..., p. 31.

295

Diário Constitucional, nº. 4, terça-feira, 12 de fevereiro de 1822 296

Cf: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Bahia, a Corte da América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010, p. 659.

82 se referia às formas de organização e gerenciamento dos negócios internos. E, quanto mais uma boa parte dos homens influentes e bem posicionados sentia seus interesses feridos ou contrariados, mais o nome de Brandão ganhava destaque em seus meios.

Não que nosso personagem fosse, então, um completo desconhecido. Aliás, muito pelo contrário. No entanto, diferente de antes, quando o “sim” ao movimento constitucionalista ainda parecia trazer muito mais perguntas que respostas, para muita gente, sobretudo desde a posse de Madeira de Melo, os questionamentos repetidamente lançados por aquele periódico começavam a soar bastante contundentes. Também para os “grandes” da província, já era tempo de transformar palavras em ações. E Francisco Gomes Brandão parecia bem disposto a isso.