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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A saúde como direito fundamental

Para Noronha e Pereira (2013), a saúde, no Brasil, é fundamentada nos conceitos de direito e de justiça. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral da ONU, na Resolução 217-A, de 10 de dezembro de 1948, o direito à saúde é reconhecido como resultado do direito ao bem-estar.

Artigo 25 - 1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (ONU, 1948).

No entanto, o direito à saúde torna-se mais explícito no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ─ aprovado pela Assembleia Geral da ONU, por meio da Resolução 2200 A (XXI), de 16 de dezembro de 1966, em vigor, para o Brasil, desde 24 de abril de 1992, na forma de seu art. 27, § 2.º, e promulgado pelo Decreto n.º 591, de 6 de julho de 1992, que assim define:

Artigo 12

1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa ao desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental.

2. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:

a) a diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança;

b) o melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial;

c) a profilaxia, o tratamento e o controle das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras;

d) a criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença (ONU, 1966).

A visão formulada pela Organização Mundial de Saúde, em 1946, evidencia a importância da saúde: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças” (OMS, 1946). A CF/88, em seu art. 196, reafirma essa premissa de modo mais abrangente:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).

Os direitos sociais são definidos e assegurados no artigo 6.º da CF/88, que estabelece que “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, 1988).

A Carta Magna estabeleceu, também, as garantias fundamentais a todo cidadão, ao institucionalizar seus direitos, fornecendo a base do sistema de saúde brasileiro, no Título VIII - da Ordem Social, que a integra, conceitualmente, sob a denominação de seguridade social. Nesse título, está contido o conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme expresso no art. 194 (Brasil, 1988).

É necessário observar, ainda, os pilares ou a base do instituto da seguridade social, que se encontram enunciados no art. 3º, que define os objetivos fundamentais da República:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Além da universalidade do direito à saúde, prevista no art. 196, a CF/88 estabeleceu, entre os princípios e diretrizes do SUS, a integralidade da atenção e a descentralização das ações. Adicionalmente, declarou a saúde como integrante da seguridade social, junto com a previdência e a assistência social (PIOLA et al., 2013).

O artigo 196 da CF/88 considera três aspectos: a relação direito e dever, a saúde como resultante de políticas sociais e econômicas, e o acesso universal e igualitário. É certo que o direito à saúde e à justiça social configura-se como um dos direitos sociais garantidos na Constituição Federal, sendo um direito público e um dever do Estado garanti-lo (NORONHA e PEREIRA, 2013), conforme o mandamento constitucional.

2.1.1 A definição da seguridade social e a regulamentação do Sistema Único de Saúde

A CF/88 reservou um capítulo específico para a seguridade social, do artigo 194 ao artigo 204, o que reforça o compromisso com o princípio da proteção social, indicando também fontes de custeio do sistema. A seguridade social, segundo o art. 194 da Carta Magna, “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988).

Além dos dispositivos constitucionais, há, ainda, um conjunto de leis e normas, como a Lei n.º 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e a Lei n.º 8.142/1990, a Lei n.º 8.212/1991 (Lei Orgânica da Seguridade Social) e a Lei n.º 8.213/1991, a Lei n.º 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social) e a EC n.º 29/2000. Também, existem o Decreto n.º 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei n.º 8.080/1990, a LC n.º 141, de 13 de janeiro de 2012, e o Decreto n.º 7.827, de 16 de outubro de 2012, que tratam de questões relativas ao financiamento do SUS, além da EC n.º 86/2015, que estabeleceu nova regra sobre o valor mínimo a ser aplicado pela União em ações e serviços públicos de saúde no SUS.

O parágrafo único do artigo 194 da CF/88 estabelece que compete ao Poder Público a organização da seguridade social, com base na universalidade da cobertura e do atendimento, na uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, na seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, na irredutibilidade do valor dos benefícios, na equidade na forma de participação no custeio, na diversidade da base de financiamento e no caráter democrático e descentralizado da administração (BRASIL, 1988; BRASIL, 2013c).

Ao criar o conceito de seguridade social (saúde, assistência e previdência), objetivando a garantia dos princípios fundamentais, a Carta da República instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), em seu art. 198, com base em três principais alicerces:

• descentralização com direção única em cada esfera de governo (federal, estadual e municipal);

• atendimento integral com prioridade para as ações preventivas (vacinação, medicamento e saneamento básico), sem prejuízo dos serviços assistenciais (postos de saúde, hospitais e ambulatórios);

• participação da comunidade na definição de prioridades e no controle do uso do dinheiro público (BRASIL, 2013c).

Assim, além do princípio da universalidade na cobertura, a saúde organiza-se, também, pelo princípio da integralidade. Portanto universalidade e integralidade são princípios organizativos fundamentais para compreender o gasto e a necessidade de financiamento do SUS (Brasil, 2013c).

Ainda considerando as previsões constitucionais referentes à seguridade social e, portanto, à saúde, em especial, ressalte-se que os serviços são, por vezes, inacessíveis ou muito caros para os mais necessitados e, quando acessados, sua qualidade é ruim para melhorar a situação daqueles que mais precisam (WORLD BANK, 2004). Esse problema não pode ser resolvido, simplesmente, com o ajuste das alocações de subsídios. De acordo com Ibrahim (2017), certas medidas foram tomadas para garantir a prestação de serviços de qualidade e sua acessibilidade aos pobres nos países menos desenvolvidos, como a descentralização e a cobertura universal, que são apontadas como importantes soluções.

A descentralização pode aumentar o poder dos clientes e a participação dos pobres na produção de bens e serviços básicos, melhorar o monitoramento e reduzir a corrupção, além de quebrar o monopólio do poder federal em nível nacional, aproximando a tomada de decisões do povo. Isso fortalece a responsabilidade do governo perante os cidadãos, envolvendo-os no monitoramento do desempenho do governo (SHAH, 2006), o que pode ajudar a melhorar a prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde.

A vantagem da descentralização é que a melhor informação local (de que os níveis superiores carecem) pode ser usada na seleção e no direcionamento de programas governamentais e pode gerar a redução da autoridade dos burocratas centrais, que não enfrentam pressões de responsabilidade diretamente dos cidadãos. Ainda, deixa a tomada de decisões nas mãos daqueles que não apenas possuem informações locais, mas que também podem aumentar a flexibilidade dos programas públicos em resposta às condições locais (MEHROTRA, 2006).

A descentralização bem-sucedida requer a combinação de três elementos, que garantirão a prestação eficaz de serviços: (i) governo central em funcionamento, (ii) autoridade local fortalecida e (iii) participação dos atores e usuários. Sem autoridade estatal efetiva, o governo central não pode devolver o poder à autoridade local. Portanto a descentralização pressupõe a coordenação entre os três níveis de governo e exige maior regulamentação, para garantir transparência, responsabilidade e representação. Finalmente, ao criar as autoridades locais, o governo central, também, deve criar mecanismos institucionais para assegurar que a participação dos cidadãos possa ser ouvida por meio de mecanismos formais (MEHROTRA, 2006).

A descentralização do orçamento e das responsabilidades pela prestação de serviços básicos colocam a tomada de decisão mais próxima das pessoas e reforçam a implementação dos serviços. No entanto, a descentralização não é uma solução única para tudo (ajuste de tamanho único). Para que seja bem-sucedida, de acordo com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, 2003), a descentralização necessita de uma autoridade central capaz, autoridades locais empenhadas e financeiramente capacitadas e cidadãos engajados em uma sociedade civil bem organizada.

Outro fator apontado para que os serviços públicos alcancem os pobres é que esses serviços precisam estar disponíveis universalmente, ou seja, a cobertura universal dos serviços sociais básicos é uma das poucas maneiras de se fornecer à maioria das pessoas pobres os fundamentos para um padrão de vida decente (UNICEF, 1996). A cobertura parcial raramente ajuda os pobres, pois os não pobres capturam os benefícios (UNICEF, 1996). À medida que se aumenta a cobertura de programas amplamente direcionados, os pobres também começam a compartilhar os benefícios.

Assim, cobrir toda a população seria uma estratégia-chave para garantir o acesso de pessoas pobres a serviços básicos, como os de saúde. Conforme Ibrahim (2017), os mais ricos possuem meios políticos para usufruir serviços cuja acessibilidade é difícil e, frequentemente, estão cientes dos serviços disponíveis, ao passo que os mais pobres normalmente possuem dificuldades de acesso a informações, o que faz com que sejam os últimos a se beneficiarem dos serviços públicos quando esses não são universais. Segundo o autor, caso os serviços sociais básicos fossem universais, todos os indivíduos teriam acesso a serviços de saúde preventivos e básicos (IBRAHIM, 2017).

De acordo com o UNDP (2003), mesmo nos países desenvolvidos, a intervenção do governo na cobertura universal foi uma estratégia fundamental para a prestação de serviços sociais básicos. Somente quando os governos intervieram, os serviços públicos, como a saúde, tornaram-se universais no Canadá e em países da Europa.

Observa se, assim, que há um conjunto normativo que fornece as garantias para as políticas de saúde. No entanto, uma questão muito importante, que merece reflexão e debate, é o embate entre a eficiência e a equidade, ambos princípios constitucionais. A eficiência está ligada ao melhor aproveitamento dos recursos, ao passo que a equidade está relacionada aos objetivos do próprio Estado.