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A SEMIOLOGIA SAUSSURIANA E SEU PRINCÍPIO FUNDAMENTAL

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 76-84)

CAPÍTULO 2 SAUSSURE-BENVENISTE: A ABERTURA DA RELAÇÃO

2.3 A SEMIOLOGIA SAUSSURIANA E SEU PRINCÍPIO FUNDAMENTAL

Para ampliarmos nossa visão do prospecto semiológico saussuriano, buscaremos ver o que se apresenta além da passagem que anuncia a semiologia no Curso de Linguística Geral. Por isso, somaremos à leitura do trabalho de Godel (1957) os Escritos de Linguística Geral (ELG, 2004). Pretendemos destacar, ainda, como a escrita se faz presente nesses encaminhamentos saussurianos.

Partimos da afirmação saussuriana de que “A língua nada mais é do que um caso

particular da teoria dos Signos [...] por esse fato apenas, ela já se encontra na impossibilidade

absoluta de ser uma coisa simples.” (ELG, 2004, p. 189, grifo do autor). Essas características que informam a complexidade e a particularidade da língua na teoria geral dos signos também pertencem ao lugar da escrita como indica Saussure: “ainda que, na teoria geral dos signos, o caso particular dos signos vocais não seja mil vezes o mais complexo de todos os casos particulares conhecidos, tais como a escrita, a cifragem.” (ELG, 2004, p. 189, grifo do autor). Essa passagem consta nas Notas para um artigo sobre Whitney, datado de 1894.

55 «Il faut prendre ce qui apparaît essentiel au sentiment, et alors nous pourrons assigner au reste as véritable place

A pesquisa de Arrivé (2010) evidencia que é nesse artigo dedicado a Whitney que Saussure manifesta sua preocupação em relação à semiologia pela primeira vez. De acordo com Arrivé (2010), nesse texto, o termo semiologia “vem com a particularidade de ser tomado não com o sentido de ‘ciência dos signos’, mas com o sentido de ‘linguagem-objeto’.” (p. 98). A percepção de Saussure concentra-se na “especificidade da linguagem entre outros objetos possíveis da semiologia.” (ARRIVÉ, 2010, p. 98). Por isso, no artigo de homenagem, Saussure reconhece o esforço de Whitney em “não tirar conclusões absurdas, sobre a Linguagem, da obra da gramática.” (SAUSSURE, 2004, p. 176). O ponto de vista de Whitney sobre a linguagem interessa a Saussure, uma vez que, ao refletir a caminhada do sanscritista do Yale College, destaca as dificuldades da linguística e o enfrentamento necessário das questões e dos pontos de vista emergentes sobre o estudo das línguas. A semiologia surge, então, refletida na apreensão do significado e da identidade da linguística em si.

Nesse campo de definições e inserções, Saussure declara que “A linguagem é uma instituição SEM ANÁLOGO (juntando-se a ela a escrita).” (ELG, 2004, p. 182, grifo do autor). Esse estatuto da linguagem, enquanto instituição humana, é transposto de Whitney, cuja abordagem, na visão de Saussure, mudou o eixo da linguística. Refletindo sobre a natureza da linguagem, Saussure traça esta advertência: “tal que todas as outras instituições humanas, salvo

a da escrita, podem apenas nos enganar sobre sua verdadeira essência se confiarmos, por

infelicidade, em sua analogia.” (ELG, 2004, p. 181, grifo do autor). Essa nota sobre a língua e a escrita encontra-se seguida do argumento sobre a ausência da relação entre a escrita da palavra e sua designação; trata-se da tentativa saussuriana de demonstrar que “a instituição de um signo qualquer, por exemplo [...] cow ou vacca, para designar a ideia de vaca, é baseada sobre a própria irrazão.” (ELG, 2004, p. 184).

Por esse caminho de razões, Saussure empenha-se em considerar a inutilidade de “refletir antes de entender a natureza do agente escolhido para o gênero de semiologia especial que é a semiologia linguística.” (ELG, 2004, p. 100, grifo do autor). Tomando a linguística pelo que ela tem de próprio, define-se também a sua atuação, ou seja, ela é afastada tanto das ciências naturais quanto das ciências históricas. A linguística pertence “a um compartimento de ciências que, se não existe, deveria existir sob o nome de semiologia, ou seja, ciência dos signos ou estudo do que se produz quando o homem procura exprimir seu pensamento por meio de uma convenção necessária.” (ELG, 2004, p. 223, grifo do autor).

Isso posto, Saussure acrescenta: “Entre todos os sistemas semiológicos, o sistema semiológico ‘língua’ é o único (com a escrita, de que falaremos oportunamente) que passou pela prova de se ver em presença do Tempo.” (ELG, 2004, p. 223-224, grifo do autor). Como

podemos notar, Saussure não ignora a escrita em suas reflexões, ou sustenta um posicionamento apenas para subjugá-la. É notável a presença da escrita em seu complexo teórico, como notável também é que Saussure pretendia se ocupar dela oportunamente. Estamos diante de uma atitude “provisória”, haja vista esse colocar em campo todo um quadro de relações e definições; fala- se de semiologia e de sistema de signos ao mesmo tempo em que se fala de língua, linguística, objeto do linguista.

Esse lugar periférico designado à escrita é justificado por uma razão maior, a de ajustar o lugar da língua e dizer o que é a língua. Essa definição basilar de que a língua é um sistema é construída por Saussure com certa tecnicidade, pois o termo sistema apresentado “como

funcionamento ou mecanismo remete a uma característica julgada fundamental das unidades linguísticas: a de que é impossível apreendê-las fora do sistema específico em que elas são

tomadas, pois é nele que está seu modo de realidade.” (NORMAND, 2009b, p. 50, grifo da autora). Sem essas relações, as unidades linguísticas perdem sua significação, perdem, então, seu caráter linguístico.

Nesse contexto, “Dizer sistema é definir um interior, uma ordem própria da língua.” (NORMAND, 2009b, p. 50). Essa determinação está ao lado da compreensão do que venha a ser a semiologia, observemos:

antes de mais nada a língua é um sistema de signos, [...] é preciso recorrer à ciência dos signos, que nos mostra em que podem consistir os signos, suas leis etc. Essa ciência não existe nas disciplinas conhecidas. Isso seria uma semiologia56. (GODEL,

1957, p. 14-15, tradução nossa).

O quadro da explanação saussuriana de uma semiologia reúne uma série de argumentos para a compreensão de suas implicações. Por essa razão, Saussure apresenta a insuficiência de muitas analogias “entre os sistemas de signos diferentes da escrita57.” (GODEL, 1957, p. 18, tradução nossa). O fato de que “a língua não abarca toda espécie de signos58” (GODEL, 1957, p. 15, tradução nossa) aponta que “Deve existir uma ciência dos signos mais ampla do que a linguística. (Sistema de signos marítimos, dos cegos, dos surdos-mudos, e enfim o mais importante: a própria escrita!)59.” (GODEL, 1957, p. 15, tradução nossa). Os apontamentos da apresentação de Saussure vinculam-se ao objetivo de colocar a língua como sistema de signos

56 «N'est-il pas évident qu'avant tout la langue est un système de signes, et qu'il faut recourir à la science des signes,

qui nous fait connaître en quoi peuvent consister les signes, leurs lois, etc. Cette science n'existe pas dans les disciplines connues. Ce serait une sémiologie ». (GODEL, 1957, p. 14-15).

57 «et aussi retrouver des analogies entre les systèmes de signes autres que l'écriture » (GODEL, 1957, p. 18). 58 «la langue n'embrasse pas toute espèce de signes.» (GODEL, 1957, p. 15).

59 «Il doit donc exister une science des signes plus large que la linguistique. (Systèmes de signes: maritimes, des

em estudo, já que a língua “é o exemplo principal de um sistema de signos [...], e é apenas estudando os signos da língua que reconheceremos os seus aspectos essenciais, a vida60.” (GODEL, 1957, p. 20, tradução nossa). Colocando a língua em perspectiva, elabora-se a possibilidade de uma semiologia que olha a linguística como ciência da língua, “em torno da língua, é evidente que temos diante de nós uma ação social do homem muito particular para constituir uma disciplina61.” (GODEL, 1957, p. 18, tradução nossa).

Acrescemos a esse conjunto de formulações o que se diz no CLG: “Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; [...] chamá-la-emos de Semiologia.” (CLG, 2012, p. 47). Sobre essa metáfora da vida, Arrivé (2010) faz esta observação: esta metáfora discreta “visa aqui ao funcionamento dos signos. É isso o que está assegurado pelos esclarecimentos anteriormente feitos ao objeto da linguística: signos, claro, mas nos sistemas que eles constituem e dos quais são inseparáveis.” (p. 48). Notemos, desse modo, a inserção de um campo de atuação no qual “cabe ao linguista constituir a linguística em ciência semiológica ao distingui-la das outras ciências semiológicas62.” (GODEL, 1957, p. 18, tradução nossa). Quando Saussure apresenta o existir de uma semiologia, algo maior se institui, pois, vinculada à semiologia, a língua, “pela primeira vez, não parece caída do céu63” (GODEL, 1957, p. 19, tradução nossa), adquire status de objeto científico, passa a organizar uma ciência e a atribuir o papel do seu pesquisador.

E se apresentamos como técnica a noção de sistema, é porque estruturar a arquitetura de uma semiologia, segundo os fundamentos saussurianos, significa trabalhar a partir do princípio do valor, pois ele é “a essência da língua, [...] uma forma não significa, mas vale: esse é o ponto cardeal. Ela vale, por conseguinte ela implica a existência de outros valores.” (ELG, 2004, p. 30, grifo do autor). O princípio fundamental da semiologia é, assim, descrito em nota por Saussure:

Não há, na língua, nem signos nem significações, mas DIFERENÇAS de signos e DIFERENÇAS de significação; as quais 1º só existem, absolutamente, umas através das outras (nos dois sentidos) sendo, portanto, inseparáveis e solidárias; mas 2º não chegam jamais a se corresponder diretamente. (ELG, 2004, p. 65, grifo do autor).

60 «C'est que l'exemple principal d'un système de signes [...], et ce n'est qu'en étudiant les signes dans la langue

qu'on en connaîtra les côtés essentiels, la vie». (GODEL, 1957, p. 20).

61 «autour de la langue, il est évident que nous avons là devant nous une action sociale de l'homme assez

particulière pour constituer une discipline». (GODEL, 1957, p. 18).

62 «mais c'est au linguiste à constituer la linguistique en science sémiologique en la distinguant des autres sciences

sémiologiques». (GODEL, 1957, p. 18).

Nesse princípio fundamental da semiologia, a língua deve ser considerada como sistema, sem que seus estados anteriores interfiram nessa consideração. Dessa maneira, “podemos afirmar que a língua não é a única de sua espécie, mas que ela está envolvida pelo círculo do que denominamos com um nome mais amplo: instituições sociais, por um certo número de coisas que é preciso estudar ao lado dela64.” (GODEL, 1957, p. 25, tradução nossa). A semiologia tem, desse modo, seu funcionamento inscrito na língua em sociedade. A língua, pertencendo à coletividade, “é então um navio no mar, não mais no estaleiro: não podemos determinar sua rota a priori, pela forma de seu casco, etc.65” (GODEL, 1957, p. 25, tradução nossa). É preciso “considerar a língua como algo de coletivo, de social: não é somente o navio sobre o mar que deve ser um objeto a ser estudado dentro da espécie navio66.” (GODEL, 1957, p. 26, tradução nossa). A metáfora saussuriana dá à língua a ilustração de sua dinâmica, e, ao linguista, a consideração de parte do seu funcionamento.

Essa imagem do navio invoca o senso de coletividade pertencente à língua, uma vez que “um sistema de signos é feito para a coletividade como o barco para o mar.” (ELG, 2004, p. 249). A inter-relação entre a língua e a sociedade é, portanto, necessária para que se advogue a existência do fenômeno semiológico, “porque, em nenhum momento, contrariamente à aparência, o fenômeno semiológico, qualquer que ele seja, deixa fora de si mesmo o elemento da coletividade social.” (ELG, 2004, p. 249). Assim, “a coletividade, com suas leis, é um de seus elementos internos e não externos, esse é o nosso ponto de vista.” (ELG, 2004, p. 249, grifo do autor). Acerca disso, Normand faz a seguinte inscrição:

Com efeito o traço social é fundamental, mas diferente do sistema, ele não determina, em Saussure, um ponto de vista e um método próprio; poderíamos até mesmo dizer que é ao contrário que ocorre: Saussure não nega que a língua seja social (nem, aliás que a língua seja comunicação), ele afirma, como todos seus contemporâneos, que se trata de fato social [...] mas não que considera essa característica a mais esclarecedora para definir sua natureza específica, pois a língua partilha dessa propriedade com todas as outras instituições; o que interessa propriamente ao linguista é que ela seja um sistema de signos, uma instituição que ele chama semiológica. Somente esse traço permite definir um objeto próprio à linguística, uma ordem interna; história e sociedade são remetidas ao externo, que não se nega que possuam seus efeitos sobre a língua, mas cujo estudo é reservado a outras disciplinas e a um outro setor da linguística, aquele que é dito “externo”. (NORMAND, 2009b, p. 52, grifo da autora).

64 «On peut donc affirmer que la langue n'est pas seule de son espèce, mais qu'elle est entourée dans le cercle de

ce qu'on appelle d'un nom un peu large : institutions sociales - 'd'un certain nombre de choses qu'il faut étudier à, côté d'elle». (GODEL, 1957, p. 25).

65 «est alors le vaisseau à la mer, non plus en chantier: on ne peut déterminer sa course a priori, par la forme de sa

coque, etc». (GODEL, 1957, p. 25).

66 «considérer la langue comme quelque chose de collectif, de social: il n'y a que le vaisseau sur mer qui soit un

Devemos dizer, então, que a visão de um quadro semiológico que se fundamenta em Saussure estrutura-se paralelamente a um aparelho de noções que envolve e alcança a natureza da língua enquanto sistema. Junto de sistema, Saussure trabalha a noção de signo. No entanto, conforme o desenvolvimento de sua argumentação, presenciamos o mestre intercambiar essa noção por relações, valores, diferenças. E o princípio do valor passa a ser, assim, derivado do princípio semiológico. Ainda que esse intercâmbio seja uma constante, para Saussure, não há “nenhuma diferença séria entre os termos valor, sentido, significação, função ou emprego de uma forma [...], esses termos são sinônimos.” (ELG, 2004, p. 30). Todavia, por uma preferência, “é preciso reconhecer que valor exprime, melhor do que qualquer outra palavra, a essência do fato, que é também a essência da língua, a saber, que uma forma não significa, mas vale.” (ELG, 2004, p. 30, grifo do autor). Esse embricamento de noções, organizado por Saussure, converge, como veremos adiante, para a amplitude dos termos em Benveniste.

Indubitavelmente, o trabalho de Saussure é de uma arquitetônica que exige conexões ainda mais avançadas do que as que propusemos aqui. Seu raciocínio, tomado nas notas manuscritas próprias ou de seus alunos, transborda ideias muito distantes de seu tempo e que ainda precisamos explorar neste tempo presente. Ocupando um lugar de escuta das explanações do mestre genebrino, pudemos “ver” o seu esforço ao fazer seus alunos acessarem essa modelagem de definições conceituais complexas e abstratas que conhecemos pelo Curso de

Linguística Geral, nascida no seio de um conjunto de exposições pedagógicas.

E a escrita, que tanto procuramos em Saussure? A respeito dela, podemos dizer que o mestre genebrino esboça suas considerações, margeando um rio teórico mais profundo do que aparenta. Lembremo-nos desta passagem: “o sistema semiológico ‘língua’ é o único (com a escrita de que falaremos oportunamente) que passou pela prova de se ver em presença do

Tempo.” (ELG, 2004, p. 233-234, grifo do autor). Nela, há um estudo em suspenso. Entretanto,

se nos é permitida a interpretação dos fatos, essa declaração, somada às demais referências sobre a escrita que percorrem seu discurso, permite-nos pensar que Saussure projetava argumentos para sistematizar a escrita, colocando-a na veia linguística, assim como faz com a língua. É indiscutível que a escrita tem sua face externa, social e histórica, mas há um devir na constituição semiológica da língua e que diz respeito à escrita. Isso é indicado nas notas seguintes:

Eu penso que o duplo estudo, semiológico e histórico, da escrita (sendo que o último se torna equivalente à fonética no estudo da linguagem) constitui, graças à natureza da escrita, uma ordem de pesquisas quase tão digna de atenção quanto [...] Até o presente, a paleografia parece estar totalmente inconsciente desse objetivo. (ELG, 2004, p. 48).

A primeira escola de linguística não considerou a língua em sua característica de fenômeno. É preciso dizer mais. Ela ignorou o fato da linguagem, atirou-se diretamente à língua, ou seja, ao idioma (conjunto de manifestações da linguagem de um povo numa época), e só viu o idioma através do véu da escritura. Não há fala, há apenas conjuntos de letras [...]

A conquista destes últimos anos é ter, enfim, colocado não apenas tudo o que é a linguagem e a língua em seu verdadeiro nicho exclusivamente no sujeito falante seja como ser humano seja como ser social. (ELG, 2004, p. 115-116, grifo nosso). Dessa argumentação saussuriana, alguns pontos chamam nossa atenção como o alertar de uma linguística que se pretende, desconsiderando da língua suas características de

fenômeno. Também a consideração de uma escritura como conjunto de letras, que não se faz

fala; trata-se do véu da escrita. Ignorar o fato da linguagem aponta à crítica sobre o que se considera como manifestação da língua. E se o fato de a linguagem não constituir apenas um

conjunto de letras, a escritura que se propõe como fato também não pode ser olhada dessa

maneira, mas, sim, pelo que possa caracterizá-la nas características de fala. Por fim, não podemos deixar de comentar o reconhecimento da presença de um sujeito falante que, a nosso ver, toma esse conjunto de letras, tornando-o “fala”, propondo, assim, o fato de linguagem. A vulgata de que a reflexão de Saussure é isenta do uso da língua se desfaz, uma vez que essa isenção é inviável a quem defende a língua em suas características de fenômeno.

De tudo o que expusemos até o presente momento, o aparente abandono da escrita, no curso da reflexão saussuriana, não significa, como aponta Normand (2009a), “perder o pé; para nós, é começar a tomar pé.” (p. 94). O tom saussuriano é o de quem alerta para o “suporte da escrita e a falsidade do sentido imediato” (NORMAND, 2009a, p. 94), um tom que também “deixa intacto o desejo de um outro sensível, de uma apreensão possível da língua em sua nudez.” (NORMAND, 2009a, p. 94). A metáfora saussuriana do véu da escrita deixa entrever um caminho de relações com a língua e com a semiologia. A aspiração de um projeto semiológico está alinhavado na elaboração científica do lugar e da natureza da língua, e isso deve ser considerado. Saussure anuncia uma semiologia geral como uma tarefa a cumprir, porém lembra que “É completamente inútil refletir antes de entender a natureza do agente escolhido para o gênero de semiologia especial que é a semiologia linguística.” (ELG, 2004, p. 100).

Dos movimentos de abordagem sobre o objeto de trabalho, vemos Saussure principiar, apresentando os motivos históricos; depois, estabelecer as comparações disciplinares; por fim, instituir o lugar a ser considerado na perspectiva, por ele, elaborada. Parece-nos, desse modo, que, no CLG, encontramos os motivos históricos, ao passo que, nas notas manuscritas e naquelas dos estudantes, isso se soma, introdutoriamente, à inserção da escrita nas diferentes

frentes disciplinares, faltando formular a sua visão teórica da escrita, ou então, o sistema semiológico da língua escrita como encontramos em nota.

É perceptível, assim, que o contexto de acolhida da explanação saussuriana sobre a escrita não é fácil e tampouco dotado de didatismo e logicidade. Lembremo-nos de que o linguista genebrino enfrenta a tarefa de instituir uma ciência. Por isso, pensar nos arranjos, estabelecer as refutas e incorporar construtos teóricos são atividades que devem ser consideradas na leitura desse conjunto textual tão singular. Nessa tarefa de aprender a apreender essa “massa amorfa”, é inegável o confronto saussuriano com a escrita, em sua tradição externa à língua, como inegável também é que o CLG configura um recorte da grandeza intelectual desse linguista. Desse modo, nas contradições, nas ausências, ou mesmo nas palavras deslocadas e reencontradas entre um texto e outro, podemos, sem grandes pretensões, detectar outro olhar para a forma da língua.

Retomando nossas questões de capítulo, permitimo-nos dizer que a edição do CLG suprime a clareza do percurso de reflexões que Saussure estabelece. Desconsiderar que essas declarações, endereçadas ao capítulo da escrita, advêm de um cenário constitutivo de justificativas para conceber uma ciência entoa o caráter negativo da escrita. O caminho se ressignifica à medida que a escrita surge nos encaminhamentos da língua e da semiologia. E se a língua tem um lado natural e um lado social, como ensinou Saussure, encontramos razão suficiente para não ignorar o estudo linguístico da escrita, uma vez que ela pertence ao lado social da língua; torna-se, assim, uma das maneiras de o homem entrar na língua.

Precisamos tratar, ainda, do que consideramos ser um impacto provocado pelo rechaço construído no CLG acerca da escrita. Em 1968-1969, no Collège de France, Émile Benveniste se pronuncia, propondo a sua interpretação sobre a exposição do CLG. Na base da discussão,

semiologia, língua e escrita recebem atenção de estudo. Interessa-nos entender, deste ponto em

diante, qual é a leitura de Benveniste sobre a escrita. Sobretudo, como ela se coloca na

posição de um problema em relação à língua. Antes, contudo, é necessário pontuarmos a

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