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A TIRANIA DA LETRA: A PERSPECTIVA SAUSSURIANA DA

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 66-70)

CAPÍTULO 2 SAUSSURE-BENVENISTE: A ABERTURA DA RELAÇÃO

2.1 A TIRANIA DA LETRA: A PERSPECTIVA SAUSSURIANA DA

DA LÍNGUA PELA ESCRITA

Para darmos início à construção desta seção, recorremos à interpretação do pensamento saussuriano impresso pelos editores do Curso de Linguística Geral (CLG, 2012). O desafio que ora se impõe é o de traçar sobre essa abordagem a visão do linguista genebrino, para que, posteriormente, possamos instituir a interlocução com os pressupostos teóricos de Émile Benveniste. Para tanto, deter-nos-emos, especialmente, aos capítulos VI e VII da Introdução do CLG. Nossa escolha em apresentá-los justifica-se pelo alcance do conteúdo explícito acerca de Representação da língua pela escrita, além do fato de Benveniste se valer disso no conjunto teórico de suas últimas lições. Assim, intencionamos compreender esse controverso lugar que

a escrita ocupa no estudo científico da língua, promovido em torno do que Saussure, na visão do CLG, aponta como a “tirania da letra”.

É reafirmando a língua como objeto concreto de estudo que o CLG abre o capítulo VI e observa a intervenção do documento escrito no conhecimento de uma língua. Desse modo, o testemunho escrito, embora pareça natural, reserva para o CLG, pelo menos nesse momento do texto, mais inconvenientes do que utilidade. Isso porque a visão saussuriana encontra dificuldade em estabelecer a abstração, uma vez que a língua é sempre convocada à sua representação escrita.

A questão que se impõe no CLG é a de que “Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro.” (CLG, 2012, p. 58). Por assim se constituir, a palavra falada é o objeto linguístico por excelência, restando à palavra escrita ser a imagem desse objeto. Lança-se, com isso, a crítica contumaz de que a palavra escrita é usurpadora do papel principal. Ou seja, reserva-se “maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo” (CLG, 2012, p. 58), o que configura incômoda ilusão para o desenvolvimento do objeto, referida no CLG, na versão metafórica da contemplação da fotografia em detrimento do conhecimento real da pessoa.

Nesse sentido, estabelece-se que a língua tem sua primazia, visto que “a língua tem, pois, uma tradição oral independente da escrita bem diversamente fixa; todavia, o prestígio da forma escrita nos impede de vê-lo.” (CLG, 2012, p. 59). Para explicar esse prestígio desdenhoso, o CLG aponta quatro razões, descritas a seguir.

1º – Primeiramente, a imagem gráfica das palavras nos impressiona como um objeto permanente e sólido, mais adequado do que o som para constituir a unidade da língua através dos tempos. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma unidade puramente factícia: é muito mais fácil de apreender que o liame natural, o único verdadeiro, o do som.

2º – Na maioria dos indivíduos, as impressões visuais são mais nítidas e mais

duradouras que as impressões acústicas; dessarte, eles se apegam, de preferência, às

primeiras. A imagem gráfica acaba por impor-se à custa do som.

3º – A língua literária aumenta ainda mais a importância imerecida da escrita. Possui seus dicionários, suas gramáticas; é conforme o livro e pelo livro que se ensina na escola; a língua regulamentada por um código; ora, tal código é ele próprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia, e eis o que confere à escrita uma importância primordial. Acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a escrever e inverte-se a relação natural.

4º – Por fim, quando existe desacordo entre a língua e a ortografia, o debate é sempre difícil de resolver por alguém que não seja o linguista; mas como este não tem voz em capítulo, a forma escrita tem, quase fatalmente, superioridade; a escrita se arroga, nesse ponto uma importância que não tem direito. (CLG, 2012, p. 59-60, grifo nosso).

Em relação ao primeiro ponto da abordagem de Saussure, a ideia de uma escrita artificial, contrapondo ao caráter natural da fala, é compreensível, uma vez que considera a invenção da escrita. Além disso, a defesa de um vínculo natural, realizado pelo som, advoga uma perspectiva inata da linguagem, na qual o homem está para a fala, mas não para a escrita; nasceu para falar, não para escrever. O segundo ponto trabalha a ideia de imposição do gráfico sobre o som, com a justificativa de durabilidade e nitidez. Esse caráter autoritário da escrita é explorado no terceiro argumento saussuriano, com uma crítica que invade os bancos escolares. Nessa percepção, diante da lógica natural de que o homem fala primeiramente e, depois, escreve, juntamente com a língua literária, verificamos uma supervalorização da escrita e o escamoteamento da fala. Como argumento final, o inglório papel do linguista diante das questões da língua favorece o status da escrita.

Dito isso, os sistemas ideográfico e fonético são apresentados à discussão. Do ideográfico, o CLG reserva o exemplo do funcionamento da escrita chinesa. Releva, assim, o fato do ideograma e da palavra falada representarem signos da ideia. A escrita atua, nesse domínio, como segunda língua, “quando duas palavras faladas têm o mesmo som, ele [o chinês] recorre amiúde à palavra escrita para explicar seu pensamento.” (CLG, 2012, p. 60, acréscimo nosso). Na discussão saussuriana, isso não é um problema para esse sistema de escrita, porque as palavras se incorporam ao signo gráfico. Embora estabeleça argumentos sobre a ideografia, Saussure confere especial interesse ao sistema fonético e direciona seu estudo ao alfabeto grego. Diante disso, reveste sua questão com a incoerência da escrita em se impor para realizar a notação da fala.

Nessa perspectiva, o linguista reúne as causas do desacordo entre a grafia e a

pronúncia. A primeira diz respeito à evolução da língua, contrapondo-se à estaticidade da

escrita. Em sua percepção, isso denota a desarmonia da grafia e o que nela está representado. Como segunda causa, o CLG sugere o empréstimo de alfabetos entre os povos. Há, nisso, uma incompletude própria do sistema gráfico em servir plenamente à função. A terceira causa corresponde à desconsideração da etimologia na atividade gráfica. Na análise do CLG, é errôneo, portanto, o princípio da escrita etimológica.

Dadas às causas, o CLG trata de exprimir seus efeitos. Das diversas incoerências da escrita, “Uma das mais deploráveis é a multiplicidade de signos para representar um mesmo som.” (CLG, 2012, p. 62-63). Valendo-se de uma série de exemplos, Saussure determina certa irracionalidade das grafias, cuja significância pode ou não ter alguma correspondência com a língua. É desse modo que se instituem escritas vacilantes, “ortografias flutuantes que representam tentativas feitas em diversas épocas para figurar os sons.” (CLG, 2012, p. 63). A

visão saussuriana determina a incapacidade da escrita em dar conta de muitos elementos fônicos. “Disso resulta a complicação de que, em face de duas grafias para uma mesma forma, não se pode sempre decidir se se trata realmente de duas pronúncias.” (CLG, 2012, p. 63). A questão se refere à impossibilidade de estabelecer o caráter da mudança, isto é, se é de natureza fonética ou gráfica.

Nessa perspectiva, Saussure reprova a escrita, porque ela “obscurece a visão da língua; não é um traje, mas um disfarce.” (CLG, 2012, p. 63). Para avalizar a evidência de sua constatação, ele apresenta como exemplo ortográfico a “palavra francesa oiseau, em que nenhum dos sons da palavra falada (wazo) é representado pelo seu signo próprio; nada resta da imagem da língua.” (CLG, 2012, p. 63). Na percepção saussuriana, essa não correspondência entre a escrita e sua representação fônica é o que oferta ilegitimidade à escrita. Assim, o gráfico apresenta-se como normatizador do conteúdo fônico, colocando a língua em posição de dependência da forma escrita, relação que contraria o princípio saussuriano de que a única razão da existência da escrita é a de representar a língua, a qual detém sua autonomia.

O ponto fulcral desse embate entre a grafia e a pronúncia estabelece a história evolutiva da palavra como determinante de sua pronúncia, reintegrando-se, dessa forma, sua ascensão etimológica. A tirania da letra justifica-se, nesses rompantes da escrita e em sua postura impositiva, devido a fatores que, para Saussure, influenciam a língua modificando-a. O linguista genebrino trata o caso das pronúncias viciosas, oriundas da imagem visual, como patologia. É nesse sentido que a escrita se torna estranha à língua.

Para abrir o capítulo VII, sobre A fonologia, Saussure convoca a seguinte metáfora: “Quando se substitui a escrita pelo pensamento, aqueles que são privados dessa imagem sensível correm o risco de não perceber mais que uma massa informe com a qual não sabem o que fazer. É como se tirassem os flutuadores de cortiça ao aprendiz de natação.” (CLG, 2012, p. 66). Lançando mão dessa metáfora, Saussure avança sua reflexão sobre a necessidade de o linguista se desprender do apoio enganoso da escrita, dada sua grafia imperfeita dos sons, a fim de estudar os sons em si e por si.

Nesse viés de interesse da realidade do sistema fonológico, principalmente de uma língua viva, o método não consiste em “dizer como se pronuncia cada letra na língua em que querem descrever”, mas “estabelecer o sistema de sons tal como é reconhecido pela observação direta; observar o sistema de signos que servem para representar – imperfeitamente – os sons.” (CLG, 2012, p. 71). É a partir desse movimento que se pode apresentar um sistema fonológico.

Da exposição saussuriana impressa no CLG, depreendemos as suas considerações da prioridade da fala na manifestação da língua, bem como sua reivindicação pelas unidades e

relações abstratas e a abdicação da manifestação gráfica na atividade do linguista. Compreendemos, assim, o conjunto argumentativo saussuriano. Indubitavelmente, é substancial e cumpre com os objetivos dos seus fundamentos, no entanto, desperta nossa atenção o aparente gesto de Saussure de excluir a escrita do estudo do linguista, uma vez que há momentos em que o CLG constrói referências valendo-se da escrita. Isso nos faz pensar nas seguintes questões: há algo suprimido, pelos editores, nesse discurso de Saussure? A visada de Saussure, encaminhando a ciência no campo da semiologia, tem algo mais a dizer, já que fala da escrita? Podemos dizer que esse rechaço, instituído e derivador de reflexões posteriores, tece a possibilidade da leitura de Benveniste, em suas interseções em torno da escrita? Questões que precisamos analisar. Por isso, encaminhamos, na seção seguinte, a perspectiva de estudiosos de Saussure, especialmente, as reflexões que destinam um olhar para o nosso objeto de estudo.

2.2 O MOVIMENTO POSTERIOR AO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL: NOVAS

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