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Forma e sentido: a significância bidimensional da língua

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 86-90)

CAPÍTULO 2 SAUSSURE-BENVENISTE: A ABERTURA DA RELAÇÃO

2.4 O CAMINHO DE ABERTURA A UMA SEMIOLOGIA

2.4.1 Forma e sentido: a significância bidimensional da língua

Para esclarecermos a preeminência da língua como sistema significante, abordaremos sua especificidade fundamental de ser investida de uma dupla significância. Os dois modos de significância da língua são o objeto de discussão de Benveniste nos encaminhamentos finais de

Semiologia da língua, e a menção, em nota, à proposição da distinção dos dois domínios da

língua remete à conferência A forma e o sentido na linguagem. Por isso, neste momento, procuramos verificar o que Benveniste apresenta “na sessão inaugural do XIII Congresso das Sociedades de Filosofia da Língua Francesa que se realizou em Genebra em 3 de setembro de 1966.” (PLG II, 2006, p. 64).

A forma e o sentido na linguagem é um texto de interlocução com a filosofia. Nesse seu

conhecido encontro com filósofos, Benveniste submete, ao seu ponto de vista de linguista, a linguagem em sua forma e em seu sentido, tal qual indica a natureza de sua conferência. Isso, sem dúvida, é um ponto vigoroso e desconcertante não só para a filosofia, mas, sobretudo, para a linguística de seu tempo, como é possível notarmos nesta declaração: “Não só não há entre os linguistas uma doutrina reconhecida nesta matéria, mas constata-se entre muitos deles uma aversão a tais problemas e uma tendência a deixá-los fora da linguística.” (PLG II, 2006, p. 221). Diante da recusa de muitos linguistas para estudar o sentido, tais quais os seguidores da escola de Bloomfield, e o interesse dos filósofos em debater questões de linguagem, Benveniste reconhece o “esforço para situar e organizar estas noções gêmeas de sentido e de forma” (PLG II, 2006, p. 221) e apresenta uma primeira perspectiva sobre essas mesmas noções.

Para fins de aproximação, determina que “o sentido é a noção implicada pelo termo mesmo da língua como conjunto de procedimentos de comunicação identicamente compreendidos por um conjunto de locutores.” (PLG II, 2006, p. 222). Em relação à forma, diz que é “ou a matéria dos elementos linguísticos quando o sentido é excluído ou o arranjo formal

destes elementos ao nível linguístico relevante67. (PLG II, 2006, p. 222). Dadas as noções, Benveniste distancia-se desse paradigma simplista de oposição, a fim de reinterpretar forma e sentido sob a ótica do funcionamento da língua, já que “de um só golpe ela nos coloca no centro do problema mais importante, o problema da significação.” (PLG II, 2006, p. 222).

Chegamos ao ponto da afirmação de Benveniste de que “a linguagem significa, tal é o seu caráter primordial.” (PLG II, 2006, p. 222). Com isso, o linguista faz com que o espaço das considerações filosóficas seja invadido e transbordado pelo exercício do discurso. Para isso, faz questão de esclarecer que “bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver.” (PLG II, 2006, p. 222, grifo do autor). Por assim ser, tudo o que entendemos por sociedade, humanidade, está inscrito na existência da própria linguagem, que é a sua significação.

Para fazer seus ouvintes compreenderem sua proposta, Benveniste realiza como inclinação inicial o contato com Saussure. Em remissão ao mestre genebrino, aponta que, inicialmente, “Diremos, com Saussure, a título de primeira aproximação, que a língua é um sistema de signos.” (PLG II, 2006, p. 224). Embora a noção de signo designe uma noção geral de significação, não há completude em sua definição. Por isso, subsequentemente, “Quando Saussure introduziu a ideia de signo linguístico, ele pensava ter dito tudo sobre a natureza da língua; não parece ter visto que ela podia ser outra coisa ao mesmo tempo.” (PLG II, 2006, p. 224). Logo, é preciso “tentar ir além do ponto a que Saussure chegou na análise da língua como sistema significante.” (PLG II, 2006, p. 224). Afiado na crítica e na língua, presenciamos Benveniste falar da manipulação inocente do termo signo. Notamos, aí, a destreza da afirmação envergada no texto de 1939, Natureza do signo linguístico (PLG I, 2005), e que irrompe no texto de 1966, para ampliar os limites da herança saussuriana, ao passo que afirma o terreno e as suas posições linguísticas. Vejamos:

Dizer que a língua é feita de signos é dizer antes de tudo que o signo é a unidade

semiótica. Esta proposição, sublinhamo-la, não está em Saussure, talvez porque ele a

consideraria como uma evidente decorrência, e nós a formulamos aqui no início do exame que estamos fazendo; ela contém uma dupla relação que é necessário explicitar: a noção de signo enquanto unidade e a noção de signo como dependente da ordem semiótica. (PLG II, 2006, p. 224, grifo do autor).

Apresentada a dependência semiótica da língua, Benveniste menciona a apresentação saussuriana da língua como uma ramificação de uma semiologia geral. Reconhecidamente, para

67 Flores propõe outra tradução para substituir o termo relevante. O autor, a partir da edição francesa do PLG II,

realiza a seguinte interpretação: “ou a matéria dos elementos linguísticos quando o sentido é excluído ou o arranjo formal destes elementos no nível linguístico ao qual ele tange.” (FLORES, 2013, p. 137). Seguiremos a noção de dependência construída na tradução de Flores.

Benveniste, “Isto foi o infortúnio e isto será a glória de Saussure, ter descoberto o princípio da semiologia meio século antes de seu tempo.” (PLG II, 2006, p. 225). Dito isso, a questão é ver o que há além do domínio semiótico da língua, uma vez que, neste além, inscreve-se a possibilidade de outro olhar para a propriedade semiológica fundada em Saussure. Por essa razão, a passagem do domínio semiótico ao semântico de Benveniste implica retornar a todas as noções até então empreendidas. Todavia, de outro modo e se integrando em novas relações, já que o semiótico é próprio da língua, enquanto que o semântico depende de um locutor, colocando a língua em ação, para que se realize. Podemos dizer, então, que não basta ter a língua, é preciso ser a língua. Essa noção de ser está contida no exercício da língua e do homem, ou seja, nessa ação de colocar em funcionamento uma língua, cuja força motriz é engendrada pela própria estrutura da língua que “funciona como uma máquina de produzir sentido.” (PLG II, 2006, p. 99).

Dessa nova ordem, prescindem dois movimentos. O primeiro considera a forma sintagmática realizadora do semântico, ao passo que o semiótico se mantém na relação paradigmática. Logo, substituição e conexão consolidam-se “operações típicas e complementares.” (PLG II, 2006, p. 230). O segundo movimento deve determinar a unidade formal que constitui o semântico. Desse modo, se o signo serve como unidade semiótica, a palavra se estabelece como unidade semântica. Segundo Benveniste, “a palavra reencontra assim sua função natural, como unidade necessária da codificação do pensamento.” (PLG II, 2006, p. 230). Por essa via, é no plano sintagmático que ocorre o agenciamento da língua, sua organização necessária para formalizar a expressão da ideia.

Os momentos finais da conferência A forma e o sentido na linguagem são dedicados a ratificar a experiência da articulação do sentido. Para tanto, Benveniste despende especificações que acompanham a natureza da forma e do sentido com vistas a delinear seu ponto de vista sobre o tema. Assim, o linguista concentra-se na análise da tradução, isto é, na capacidade de transpor o semântico e o semiótico de uma língua a outra. Para Benveniste, o semantismo de uma língua é transponível, fato que permite a sua tradução, porém há impossibilidade de transpor o seu semioticismo. Logo, também é inviável a sua tradução. Conforme Benveniste,

Atinge-se aqui a diferença entre o semiótico e o semântico.

No entanto, que a tradução se torne possível como processo global é também uma constatação essencial. Este fato revela a possibilidade que temos de nos elevarmos além da língua, de abstraí-la, de contemplá-la, ainda que utilizando-a em nossos raciocínios e em nossas observações. (PLG II, 2006, p. 233).

Com isso, Benveniste traz à luz da questão a faculdade metalinguística da língua no exercício de sua expressão semântica. Semiótico e semântico são sistemas inerentes à língua. O primeiro desempenha uma função organizacional, amparada no signo e na sua significação. O segundo permite firmar um novo fundamento, a língua-discurso, a qual “constrói uma semântica própria, uma significação intencionada, produzida pela sintagmatização das palavras em que cada palavra não retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto signo.” (PLG II, 2006, p. 233-234). Esse processo de sintagmatização considera a ação de colocar a língua organizada na via do sintagma, e isso pertence à operação de agenciamento da língua, a qual o locutor realiza. Assim, essa indissociabilidade entre semiótico e semântico surpreende não só a elaboração do conceito língua-discurso, mas o todo operacional que nela se postula.

Desse modo, signo e palavra, além de formas distintas, também apresentam funções diferenciadas porque pertencem a domínios diversos. Isso oportuniza a Benveniste propor uma distinção de caráter metodológico. Vejamos:

é necessário traçar uma distinção no interior do domínio semântico entre a multiplicidade indefinida das frases possíveis quer por sua diversidade, quer por sua possibilidade de se determinarem umas pelas outras, e o número sempre limitado, não só de lexemas utilizados como palavras, mas também dos tipos de esquemas sintáticos a que necessariamente a linguagem recorre. Este é o duplo sistema, constantemente em ação na língua, e que funciona tão velozmente, de um modo tão sutil, que exige um longo esforço de análise e um longo esforço para dele se desprender, se se quer separar o que é do domínio de um e do outro. (PLG II, 2006, p. 234).

A abordagem de Benveniste expande os limites conceituais da forma e do sentido, visto que, em sua proposição, o sistema linguístico é constituído de significação. Trata-se de trazer, para o centro da discussão, o “poder significante da língua.” (PLG II, 2006, p. 234). Logo, o discurso teórico do linguista anuncia que a análise das formas só é possível se elas estiverem submetidas em uma relação de dependência com o semântico. Sobre a noção de significação é que Benveniste investe sua força persuasiva e intelectual para nos ensinar que, “a partir do momento em que a língua é considerada como ação, como realização, ela supõe necessariamente um locutor e ela supõe a situação deste locutor no mundo.” (PLG II, 2006, p. 239). É, portanto, nessa conjuntura, que se define a semântica.

Valendo-se das palavras de Heráclito, Benveniste imprime o fascínio e o mistério da língua: “Ela não diz nem oculta, mas ela significa.” (PLG II, 2006, p. 234). Com essa construção enigmática da língua, Benveniste cessa sua conferência, mas conduz seus ouvintes à ciência de que é preciso desafiar a interpretação do oráculo, assim como o faz Heráclito. Nesse sentido, é

preciso desvelar a língua para exprimir seu poder de significação. O desenlace disso é a significância também do homem, da cultura e da sociedade.

Dito isso, encaminhamo-nos, na próxima seção, aos fundamentos do quadro teórico construído no texto Semiologia da língua, bem como ao que se apresenta no conjunto das lições benvenistianas sobre o tema da semiologia. Não é nossa intenção reivindicar a validade de um conhecimento elaborado nestes dois cenários: o das aulas ou o do artigo publicado no PLG II. Queremos nos aproximar de uma discussão encontrada no pensamento inteiramente complexo e reticular de Benveniste e que nos direciona para o modo de olhar a língua. Nossa visão deve ser a de que “temos a língua como fundamento de toda vida de relação” (PLG II, 2006, p. 26), porque “bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver.” (PLG II, 2006, p. 222, grifo do autor).

A dimensão de nosso estudo atém-se ao fato de que vemos, com esse linguista, “todo o conjunto das ciências humanas se desenvolver, formar-se toda uma grande antropologia (no sentido de ‘ciência geral do homem’)” (PLG II, 2006, p. 38), e, assim, “começar a entrever os desenvolvimentos de que o homem é sede.” (PLG II, 2006, p. 38). Da tomada de consciência, como sugere Benveniste, a qual assume a perspectiva da língua, surgem mudanças profundas “de onde nascerão talvez novas ciências.” (PLG II, 2006, p. 40). Ao que nos parece, trata-se da semiologia e o que dela pode surgir. A Semiologia da língua pode conduzir-nos o caminho da questão central que esta tese se coloca: a escrita em uma dimensão semiológica. Passemos ao desenvolvimento das reflexões para o contexto pretendido na Semiologia.

2.5 A LÍNGUA COMO INTERPRETANTE SEMIOLÓGICO

Em 02 de dezembro de 1968, Benveniste profere sua aula cujo tema de abertura é “continuar falando de problemas de ‘linguística geral’.” (UA, 2014, p. 90). Sua proposta é dizer de qual lugar fala e como concebe essa linguística. Então, “Tal como eu a compreendo, a linguística geral é a linguística que se interroga sobre si mesma, sobre sua definição, sobre seu objeto, sobre seu estatuto e sobre seus métodos.” (UA, 2014, p. 90). Submetendo essa interpretação, Benveniste enfatiza a arte de interrogar como um dispositivo de conhecimento, “Trata-se, portanto, de uma interrogação incessante, que se desenvolve, que se renova na medida em que a experiência do linguista se aprofunda e seu olhar se amplia. Falar de ‘linguística’ é falar da língua.” (UA, 2014, p. 90). É na língua e sobre a língua que as questões linguísticas benvenistianas estão alicerçadas. Construir, assim, a referida experiência do

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