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Da escritura ao rastro: a definição derridiana

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 58-61)

CAPÍTULO 1 UM BREVE ITINERÁRIO: DA INVENÇÃO DA ESCRITA

1.5 A GRAMATOLOGIA: UMA PROPOSTA DESCONSTRUCIONISTA

1.5.2 Da escritura ao rastro: a definição derridiana

Esse entendimento de Derrida acerca do sistema de diferenças é elementar à proposição da noção de rastro, objetivando, com ela, tratar da significação. O filósofo acredita que, incorporando a noção de rastro à escritura, pode-se ultrapassar a própria extensão da linguagem. Ademais, para ele, a diferença “não é pensada sem o rastro.” (DERRIDA, 1973, p. 69, grifo do autor). Em sua definição, “O rastro não é somente o desaparecimento da origem, [...] a origem não desapareceu sequer, o rastro que torna, assim, a origem da origem”. (DERRIDA, 1973, p. 75). Desse modo, cada signo, na condição de significante do significante, funciona como o rastro do rastro, numa cadeia incontável de referências e significados. Consoante o autor: “O rastro é verdadeiramente a origem absoluta do sentido em geral. O que

vem a afirmar mais uma vez, que não há origem absoluta do sentido em geral. O rastro é a diferência34 que abre o aparecer e a significação.” (DERRIDA, 1973, p. 79-80, grifo do autor). Com isso, o filósofo consegue reverter a posição da escritura em seu quadro teórico, impedindo, inclusive, que a metafísica conceitue ou descreva sobre a mesma. Ainda que esperássemos de Derrida o empréstimo didático e conceitual do que é a escritura, isso não se concretiza. Limita-se, assim, a reconhecer que um percurso fecundo sobre a investigação do estrato puramente gráfico do texto e anuncia que “A constituição de uma ciência ou de uma filosofia da escritura é uma tarefa necessária e difícil.” (DERRIDA, 1973, p. 118). Diante disso, lemos, não de modo prescritivo, mas preenchendo os sulcos deixados nesse discurso filosófico, que no prenúncio da arquiescritura é que se pode pensar em uma escritura primeira, anterior ao conceito vulgarizado de escritura. Nesse domínio, Derrida alega que o caráter derivante da escritura se deve a esta condição: “que a linguagem ‘original’, ‘natural’, [...] nunca tivesse existido, nunca tivesse sido intacta, intocada pela escritura, que sempre tivesse sido ela mesma uma escritura.” (DERRIDA, 1973, p. 69). Explica-nos, ainda, que a arquiescritura “nunca poderá ser reconhecida como objeto de uma ciência. Ela é aquilo mesmo que não se pode deixar reduzir à forma da presença.” (DERRIDA, 1973, p. 69, grifo do autor). Dessa maneira, a arquiescritura se relaciona com o movimento da diferência, pois

sem uma retenção na unidade minimal da experiência temporal, sem um rastro retendo o outro como outro no mesmo, nenhuma diferença faria sua obra e nenhum sentido apareceria. Portanto, não se trata aqui de uma diferença constituída, mas antes de toda determinação de conteúdo, do movimento puro que produz a diferença35. O rastro

(puro) é a diferência. Ela não depende de nenhuma plenitude sensível, audível ou

visível, fônica ou gráfica. É, ao contrário, a condição destas [...] Esta diferência, portanto, não é mais sensível que inteligível, e ela permite a articulação dos signos entre si no interior de uma mesma ordem abstrata – de um texto fônico ou gráfico, por exemplo – ou entre duas ordens de expressão. (DERRIDA, 1973, p. 76-77, grifo do autor).

34 De acordo com Santiago (1976, p. 22), esse neo-grafismo de Derrida é originalmente “produzido a partir da

introdução da letra a na escrita da palavra différence.” (p. 22). Em língua portuguesa, os tradutores da obra

optaram pela inscrição diferência. O autor descreve que “Esta ‘discreta intervenção gráfica’ (a em lugar de e) será significativa no decorrer de um questionamento da tradição fonocêntrica, dominante desde épocas anteriores a Platão até os estudos linguísticos de Saussure; o a de différance propõe-se como uma ‘marca muda’, se escreve ou se lê mas não se ouve. Este silêncio, funcionando unicamente no interior do sistema da escritura fonética, ‘vem assinalar de maneira muito oportuna que não existe escritura puramente e rigorosamente fonética’.”

35 Santiago (1976) trabalha a definição do termo diferença (différence) da seguinte maneira: “A palavra escrita é

‘diferença’ na medida em que se oferece diferida (temporal e espacialmente) do que representa, reservada a uma decodificação contextual, inscrita numa cadeia de significantes. É a palavra que não se apresenta em ‘pureza’, oferecendo sua ‘verdade’ mas pelo desvio de um significante, que é estranho à sua própria realidade (grammata). Portanto, diferentemente da palavra falada, que é um discurso apresentado em presença, a palavra escrita não é uma palavra viva mas em ‘diferença’. [..] A ‘diferença’ é o significado gerado pela instância de articulação. O termo caracteriza a escritura em oposição à phoné platônica, em cuja prática se dá a busca da verdade. A escritura, sendo um recurso de ‘expressão’, transporta, em sua cadeia espacial, um significado dado pelo ‘diferir’; é a diferença linguística que transporta e substitui a verdade.” (p. 25).

A esse desdobramento filosófico, Derrida acrescenta o fato de que se “a língua já não fosse, neste sentido, uma escritura, nenhuma ‘notação’ derivada seria possível; e o problema clássico das relações entre fala e escritura não poderiam surgir.” (DERRIDA, 1973, p. 77). Pensando que a diferência é a formação da forma, o filósofo vê, no rastro, a condição da existência da diferência em todo seu potencial. O rastro é também o caminho para encontrar a exterioridade, o fora de que Derrida se ocupou, advertindo e problematizando o rechaço da tradição da metafísica, diante do entendimento de que era necessário impor-se à tarefa de uma

desconstrução do logocentrismo dominante no fazer das ciências.

A discussão de Derrida tem seu lugar e valor respeitados. Na tentativa de se opor às convicções de uma época, o trabalho de Derrida desperta a atenção de Benveniste. Isso é o que percebe Fenoglio (2016), ao estudar o manuscrito36 em que Benveniste cita o nome de Derrida. Para a pesquisadora, possivelmente, Benveniste envia a seguinte crítica a Derrida: “se tudo é escrita, nada é37.” (FENOGLIO, 2016, p. 167). Aos olhos de Fenoglio, Benveniste torna pública a sua reflexão a respeito da escrita, em seu curso no Collège de France, em 1968, para se colocar no mesmo espaço de reflexão. Ao fazer isso, Benveniste retoma a reflexão derridiana, contudo, faz sua apresentação em uma perspectiva linguística.

A solução encontrada pelo filósofo da desconstrução é restrita ao seu campo de atuação, já que é endereçada à concepção de que a escrita é um rastro. Essa proposição, todavia, não dá conta de estabelecer o lugar da escrita em relação à língua; relação esta que pauta uma visão de princípios linguísticos. Esse é o ponto que diverge o fazer de Derrida e o fazer de Benveniste. Fenoglio (2016) apresenta essa distinção da seguinte maneira:

Derrida quer definir a escrita a partir de um ponto de vista metafísico. Então, mesmo que ele se proponha a desconstruir a metafísica em si, imprimindo uma repetição- ocultação até o infinito sem possibilidade de começo nem de origem, ele busca saber que ela está no seu ser. Benveniste quer compreender o surgimento da escrita e seu funcionamento em relação à língua porque ele considera que o sistema – descoberto, exposto por Saussure – é uma realidade, fundamento de nossa humanidade porque funda nossa sociabilidade38. (FENOGLIO, 2016, p. 222, tradução nossa).

36 Fenoglio (2016) faz referência ao manuscrito que está nos Fundos de Benveniste da Biblioteca Nacional da

França (PAP.OR, caixa 40, env. 80, fºs152 e 153).

37 «si tout est écriture, plus rien ne l’est». (FENOGLIO, 2016, p. 167).

38 Derrida veut definir l’écriture à partir d’un point de vue métaphysique. Alors même qu’il se propose de

déconstruire la métaphysique que en lui imprimant une répétition-occultation à l’infini sans possibilité de commencement ni d’origine, il cherche à savoir ce que’elle est dans son être. Benveniste veut comprendre l’apparition de l’écriture et son fonctionnement par rapport à la langue dont il considère que le système – découvert, mis au jour par Saussure – est une réalité, fondement de notre humanité parce que fondement de notre socialité. (FENOGLIO, 2016, p. 222).

Seguindo as observações de Fenoglio (2016), o uso da palavra escritura/écriture já é indiciador de uma distinção entre Benveniste e Derrida. Este prefere as noções de traço, arquitraço, arquiescritura. Aquele, por sua vez, usa o termo deliberadamente, a fim de designar “toda vez uma invenção, uma prática humana, um domínio no qual ele busca compreender os funcionamentos em relação à língua39.” (FENOGLIO, 2016, p. 172, tradução nossa). Isto é, Benveniste assegura que há, aí, “uma dimensão intrínseca à linguagem humana40.” (FENOGLIO, 2016, p. 172, tradução nossa). O pensamento de Derrida se opõe, então, ao de Benveniste, porque o filósofo não trabalha para reunir, em seu complexo teórico e crítico, as questões da língua e da linguagem. Daí podermos pensar que Benveniste vê a noção de rastro com certa superficialidade e generalidade.

É compreensível, assim, a busca de Benveniste em encontrar o caminho linguístico para analisar o problema da escrita, para vê-la desempenhar papel mais vigoroso na língua, bem como analisar e descrever as características que podem conduzi-la a uma posição distinta no meio científico.

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 58-61)