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Falar da língua e pensar a escrita: uma face da reflexão saussuriana

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 72-76)

CAPÍTULO 2 SAUSSURE-BENVENISTE: A ABERTURA DA RELAÇÃO

2.2 O MOVIMENTO POSTERIOR AO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL:

2.2.1 Falar da língua e pensar a escrita: uma face da reflexão saussuriana

Testenoire (2016), em trabalho realizado sobre o conceito de língua escrita na teorização linguística, atenta que a única ocorrência da locução língua escrita no CLG encontra-se no capítulo I sobre a Visão geral da história da linguística, quando determina que “a crítica filológica é falha num particular: apega-se muito servilmente à língua escrita e esquece a língua falada.” (CLG, 2012, p. 32). Isso confirma que o aspecto retido da exposição saussuriana, na edição do CLG, é o da escrita segundo um olhar histórico. Considerando a ausência dessa locução e o que se evidencia no capítulo VI, Testenoire trabalha com a hipótese de que a escrita em Saussure se desenvolve duplamente, em um processo de velamento e desvelamento da língua.

A partir da perspectiva presente em Testenoire (2016), como também em Chiss e Puech (1996), podemos construir um diálogo que não esteja centrado no que muitos pesquisadores consideram ser o fonologismo de Saussure. Esse outro ponto de vista também importa para que não cometamos o erro de uma leitura reduzida, conservada apenas na palavra do CLG; devemos admitir que “É um estranho fonologismo que, para argumentar sobre a especificidade da língua, toma o exemplo da escrita, e [...] para explicar o que significa o arbitrário, [...] o diferencial.” (CHISS; PUECH, 1996, p. 52, grifo dos autores). Esse estranhamento sinalizado pelos autores nos é provocador. Essa outra face saussuriana é examinada por Testenoire (2016), ao atentar

para que sejam observados tanto as notas preparatórias dos cursos, entre 1907 e 1911, quanto os cadernos dos estudantes.

Nesse conjunto de textos, há subsídios constantes de que a língua escrita é objeto que também figura o pensamento saussuriano. No entanto, a tradição da leitura do CLG, sem considerar o seu modo de composição, não evidencia apenas o desconhecimento da organização reflexiva na exposição de Saussure, interfere, pois, na gênese de sua linguística. Assim, parte do estudo de Testenoire (2016) pode nos auxiliar na compreensão desse suposto distanciamento da escrita no quadro reflexivo saussuriano.

Antes de iniciarmos essas considerações, queremos ressaltar o posicionamento de Cruz (2016), ao destacar que “Saussure teria fundado a linguística, certamente, mas ao preço da exclusão de elementos fundamentais da comunicação humana.” (p. 36). Esse pesquisador retoma a percepção de Calvet, no posfácio da edição do CLG, elaborada por Tullio De Mauro. Nesse texto, Calvet observa, a respeito do CLG, que “o livro que o leitor tem em mãos não foi lido senão de maneira seletiva. São sempre as mesmas passagens citadas, relativas às célebres dicotomias, o signo linguístico e o valor.” (CALVET apud CRUZ, 2016, p. 36). Diante disso, é oportuno apresentarmos perspectivas que reintegrem à discussão de Saussure um elemento como a escrita, compreendendo quais reflexões se conectam a essa questão.

Assim, comecemos por observar que a exclusão do fenômeno da escrita, mediante um campo linguístico em constituição, é uma decisão acordada entre o mestre e seus alunos no curso de Saussure. Isso é perceptível na expressão saussuriana, contida em uma versão crítica do CLG, sobre a qual podemos ver a seguinte assertiva: “Nós nos limitaremos, portanto, resolutamente à língua falada [...] a língua (da qual nós eliminaremos a escrita!42).” (SAUSSURE apud TESTENOIRE43, 2016, p. 37, tradução nossa).

Com isso, percebemos a supressão, no CLG, de uma decisão tomada por Saussure que conduz o seu caminho reflexivo proposto aos estudantes. O que consta por trás disso, e quase não evidenciado, consoante a pesquisa de Testenoire (2016), é que Saussure propõe, nesse primeiro curso, separar a linguística em duas ciências distintas, considerando, para isso, o critério da escrita. A materialidade dessa observação está no caderno de Albert Riedlinger:

42 «Nous nous confinerons donc résolument dans la langue parlée42 [...] la langue (dont nous avons éliminé

l’écriture !». (SAUSSURE apud TESTENOIRE, 2016, p. 37).

43 Testonoire cita SAUSSURE, Ferdinand de (1968). Cours de linguistique générale. Tome 1, édition critique de

O erro sugerido pela escrita sendo geral, podemos dizer que as leis fonéticas são transformadas quando a língua falada se une a um sistema de signos escritos. Temos então na língua dois eixos semiológicos; mesmo se considerarmos esses fenômenos de falseamento como regulares e não como patológicos, temos duas ciências linguísticas e devemos considerar a língua falada abslotumante separada da língua escrita44. (SAUSSURE apud TESTENOIRE45, 2016, p. 37-39, tradução nossa).

Da anotação de Riedlinger, surgem duas hipóteses para justificar o caminho escolhido por Saussure durante sua exposição. A primeira, de acordo com Testenoire (2016), é de caráter pedagógico. Se usada nesse sentido, propor duas ciências linguísticas serve como recurso persuasivo para que os estudantes compreendam que língua e escrita formam sistemas semiológicos distintos. A segunda direciona essa divisão para uma proposição epistemológica. Dessa maneira, a nota de Riedlinger não sugere uma semiologia da escrita externa. A divisão da linguística, organizada pelo critério da escrita, pode, mais uma vez, ser atestada, segundo Testenoire (2016), recorrendo-se às notas dos cadernos de Léopold Gautier e Albert Riedlinger:

Gautier: Nós nos encontramos novamente diante de um duplo aspecto. Há uma nova

correspondência entre dois sistemas e essa correspondência varia com as escritas.

Riedlinger: A língua escrita e a língua falada, ˂aqui novamente˃ uma das

correspondências da língua, um dos dois lados: temos a dualidade dos sistemas de signos em correspondência46. (SAUSSURE apud TESTENOIRE47, 2016, p. 38,

tradução nossa).

A abordagem que encaminha a duplicidade da língua, constituindo disciplinas diferentes, pertence, novamente, à proposição de um ponto de vista didático. Ou seja, Saussure manifesta a necessidade de estudar na língua o que é da ordem da fala e o que é da ordem da escrita. Em sua conferência, ele institui o estudo da língua como objeto da linguística, e, ao estudar a língua, reconhece o estudo de uma linguística da língua falada, deixando à parte a escrita.

44 «L’erreur suggérée par l’écriture étant générale, on peut dire que les lois phonétiques se transfoment quand la

langue parlée s’adjoint um système de signes écrits. On a alors dans la langue deux axes sémiologiques ; même si l’on considère ces phénomènes de falsification comme réguliers et non pas comme pathologiques, on a deux sciences linguistiques et il faut considèrer la langue parlée tout à fait séparément de la langue écrite». (SAUSSURE apud TESTENOIRE, 2016, p. 37-39).

45 Testonoire cita SAUSSURE, Ferdinand de (1996). Premier cours de linguistique générale (1908-1909).

D’après les chaiers d’Albert Riedlinger et Charles Patois, édition d’Eisuke Komatsu et George Wolf,

Amsterdam, Elsevier. p. 10.

46 Gautier: Nous nous trouvons de nouveau devant un aspect double. Il y a là une nouvelle correspondance entre

deux systèmes et cette correspondance varie avec les écritures.

Riedlinger: La langue écrite et la langue parlée, ˂voilà encore˃ une des correspondances de la langue, un des doublé côtes: on a dualité des systèmes de signes dans la correspondance. (SAUSSURE apud TESTENOIRE, 2016, p. 38).

47 Testonoire cita SAUSSURE, Ferdinand de (1968). Cours de linguistique générale. Tome 1, édition critique de

Acompanhemos o desenvolver dessa questão, partindo do registro de Riedlinger: “Não há outros fatos que nos permitam situar, classificar a língua?48” (GODEL, 1957, p. 12, tradução nossa). Isso se completa com a palavra de Gautier, segundo o qual “Língua e escrita. Isso parece solidário, e, no entanto, é preciso distinguir radicalmente entre elas49.” (GODEL, 1957, p. 12, tradução nossa). A distinção a qual se refere Saussure é a de considerar que “A palavra falada sozinha é o objeto da linguística50.” (GODEL, 1957, p. 12, tradução nossa). Essa reflexão está situada paralelamente ao raciocínio saussuriano sobre a classificação da língua no tempo, como assegura a nota de Riedlinger: “A classificação da língua no tempo somente é possível porque se escreve a língua. Não podemos, portanto, recusar toda importância à escrita51.” (GODEL, 1957, p. 12, tradução nossa). A nota de Gautier acresce a explicação: “De fato, além de marcar um estágio da civilização e de aperfeiçoamento no emprego da linguagem, a língua escrita e a escrita não permanecem sem reagir sobre a língua falada52.” (GODEL, 1957, p. 12, tradução nossa). Na medida em que nos apropriamos das notas que perfazem as aulas de Saussure, torna- se visível a intenção desse professor em elaborar um cenário cujos argumentos permitam que os alunos construam e acompanhem a visão teórica do mestre.

Nesse sentido, entendemos que Saussure posiciona a escrita em segmentos que o ajudam a contrapor o que se concebe acerca da escrita, para, posteriormente, reconduzi-la a outros caminhos, o linguístico, o semiológico. No viés da refuta, Saussure avança a reflexão, estabelecendo que “Apenas as línguas escritas tornaram-se literárias. A importância da escrita para a língua é tal que nos perguntamos se a linguística não é uma ciência filológica53.” (GODEL, 1957, p. 13-14, tradução nossa). Levantando essa questão, Saussure consegue posicionar os argumentos de distinção entre Filologia e Linguística. Para isso, retoma, em sua classe, a reflexão do seu professor em Paris, Louis Havet: “M. L. Havet diz que vimos a linguística caminhar constantemente na direção da filologia e se confundir com ela54.” (GODEL, 1957, p. 14, tradução nossa). Assegurando não compartilhar dessa opinião, Saussure preenche os motivos do desacordo, ao configurar o lugar da linguística. Assim, nega a ideia de tomar a língua de todos os lados, pois “É preciso tomar o que parece essencial ao sentimento, e

48 «N’y a-t-il pas d’autres faits qui nous permettent de situer, de classer la langue?». (GODEL, 1957, p. 12). 49 «Il semble que ce soit solidaire, et cependant il faut distinguer radicalement entre elles». (GODEL, 1957, p. 12). 50 «Le mot parle seul est l’objet de la linguistique». (GODEL, 1957, p. 12).

51 «Le classement de la langue dans le temps n’est possible que parce que que la langue s’écrit. On ne peut donc

refuser tout le importance à l’écriture». (GODEL, 1957, p. 12).

52 «En effet, outre qu’elles marquent un stade de la civilization et de perfectionnement dans l’emploi du langage,

la langue écrit et l’écriture ne restent pas sans réagir sur la langue parlée». (GODEL, 1957, p. 12).

53 «Ce ne sont que les langues écrites que sont devenues littéraires. L’importance de l’écriture pour la langue est

telle qu’on s’est demandé si la linguistique n’est pas une science philologique». (GODEL, 1957, p. 13-14).

54 «M. L. Havet dit qu’on aurait vu la linguistique marcher constamment dans la direction de la philologie et se

então podemos atribuir ao resto o seu verdadeiro lugar na língua55.” (GODEL, 1957, p. 14, tradução nossa).

Nesse percurso, Saussure anuncia que a língua é um sistema de signos e que se deve desenvolver esta ciência dos signos, elaborando, então, uma semiologia, voltada para o princípio do signo. A semiologia saussuriana é, no tocante a isso, sígnica. Em virtude disso, propomos, em seguida, estabelecer, com mais detalhe, esse lugar da semiologia nas reflexões de Saussure, pois o percurso estabelecido na obra Últimas aulas no Collège de France, apresentado posteriormente, parte do olhar de Benveniste sobre a semiologia na perspectiva saussuriana e se encaminha para a proposição de uma semiologia benvenistiana. Isto é, a semiologia que propõe Benveniste, reconhecida como Semiologia da língua, assume o princípio semiótico, pautado no princípio do signo saussuriano, portanto, uma língua que se faz semiótica, mas, simultaneamente, desenvolve outro princípio da língua, o semântico. Este em que a língua surge dotada da capacidade de produzir sentidos. Essa engrenagem entre semiótico e semântico é constitutiva da maneira de Benveniste ver a língua em discurso e de propor o objeto da semiologia, este de examinar as relações entre os sistemas e de definir o estatuto da

língua em meio aos sistemas de signos. Isso posto, passemos ao conjunto dessas considerações.

No documento 2019AlineWieczikovskiRocha (páginas 72-76)