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MICHEL FOUCAULT move-se num campo de difícil identificação epistemológica. Sua trajetória como pesquisador da Filosofia e como historiador da sexualidade somente poderá ser interpretada à luz do referencial filosófico que articula e dá sustentação ao seu original pensamento e produção destacados. Para FOUCAULT não pode haver uma simplista diferenciação entre repressão, de base negativa, e liberação sexual, supostamente afirmativa e transformadora. FOUCAULT denuncia que a sociedade moderna, em seu núcleo de reprodução ideológica e institucional, tem na ciência a base legitimadora e articuladora de saberes e poderes. Esta vinculação, base de seu pensamento, ultrapassa qualquer cotejo contrastante meramente comparativo. A formação de saber já está atravessada pelos mecanismos de poder.

Nesta direção, a conformação de saberes científicos e a determinação de identificação da etiologia sexual, bem como os dispositivos de normalidade e anormalidade que acompanham a sanha segregacionista e classificatória da sociedade moderna já organizam os mecanismos de controle e vigilância das práticas sexuais.

Assim, a Sexualidade atual não estaria circunscrita ao discurso moralista dos padres e submetida, representativamente, ao perigo condenatório do inferno, como era na Idade Média. A Sexualidade hoje seria delimitada pelos cânones da Ciência e da Medicina, da Psicologia e da Pedagogia e estaria definidos em contrastes entre o normal e o patológico, o sadio e o doentio, o legal e o criminoso. Estes determinantes médicos, jurídico-estatais e científicos seriam as amarras da sexualidade produtiva, normatizada, encaixada na expectativa dos corpos obedientes e capazes de adequação, fruição e zelo proporcionadas pela sociedade de imagens e compensações.

A Educação sexual para FOUCAULT estaria sempre sendo aquela estabelecida pelas agências ordenadoras da saúde sexual, fisiológica e psíquica, e da produtividade institucional, recolhida aos recônditos espaços do legal e da dessublimação consumista e terapêutica. A Educação Sexual seria sempre um esforço de assujeitamento da pessoa ao mundo estabelecido, uma forma de enquadramento nas formas e dispositivos de normatizar a regra da vida e conduta sexual em função da produção ou do consumo sexual compensatório. Distante do idealismo de FREUD e da militância e empirismo de REICH, FOUCAULT acaba tornando-se um trágico contabilista da miséria sexual enquadrada e higienizada. Assistida e institucionalizada pela ciência, pela Medicina, pelo Estado e pelo mercado. Todos os esforços em depreender-se desta cama de Procusto seriam em vão. Somente haveria possibilidade para uma sexualidade supostamente livre e original na transgressão, no delírio, na marginalização contra- normativa e contra-ideológica.

Tal atitude qualifica a obra de FOUCAULT como original na direção de uma nova compreensão do que seja a historicidade dos fatos humanos e, ainda que não tenha trabalhado teoricamente sobre este campo, uma nova compreensão do que seja a ideologia, o papel da escolha e da objetividade dos estudos e pesquisas históricas. Não capitula frente à uma psicologização do historiador, de modo a cair no mais puro relativismo subjetivista, nem acompanha a plenitude ideológica da objetividade de uma Física Social, que origina-se em COMTE. Ainda é MARIETTI que nos ajuda a

compreender esta recusa da intencionalidade na história, que faz do pensamento de FOUCAULT uma anti-epistemologia:

“A vontade de fazer da análise e da síntese histórica o discurso do contínuo e de fazer da consciência humana o sujeito de toda prática permitiu por muito tempo resistir a todos os descentramentos, tanto ao de MARX como ao de NIETZSCHE. Contra a análise marxista das relações de produção e da luta de classes, essa vontade opôs uma História Global, a concepção de um tipo coerente de civilização. Contra a genealogia nietzschiana, essa vontade opôs o telos da racionalidade da humanidade. Contra as conseqüências evidentes da Psicanálise, da Lingüística, da Etnologia, essa vontade continuísta opôs, inventou a História-devir, uma história que ‘não seria jogo de relações, mas dinamismo interno; que não seria sistema, mas duro trabalho da liberdade; que não seria forma, mas esforço incessante de uma consciência adquirindo domínio de si e tentando assenhorear-se até o mais profundo de suas condições’. Foucault afirma que “A História contínua é o correlato indispensável da função fundadora do sujeito”(...) Se o sujeito era pensado como fundador do pensamento e do objeto pensado, a História será tomada por uma História sem ruptura, uma História em que todos os elementos são introduzidos continuamente no tempo concebido como totalização. Mas as perspectivas modernas colocam em questão esta função fundadora do cogito; pelo contrário, o cogito, o sujeito pensante deve agora procurar em outros lugares seu próprio fundamento, isto é, em qualquer caso, nem em Deus, nem na razão humana, e assim dissolver-se no que a sociedade conta como forças efetivas - culturais e sociais,- suscetíveis de comportar um novo modelo de cogito não mais individual, mas coletivo, não mais espiritual, mas material, não mais separada das realidades, mas enraizando-se nelas.” (FOUCAULT in MARIETTI, 1977, p.27)

Tanto na originalidade metodológica de erigir novos campos de investigação das Ciências Humanas quanto na ousadia em denunciar o dirigismo da História na concepção estruturalista, onde a ordem dos fatos é constituída pela estrutura e pelo seu lugar no campo relacional da estrutura padrão, já apontamos que FOUCAULT aproxima-se da terceira geração da Escola dos Annales, pela grade conceitual e

determinação historiográfica. Recusa a construção de um devir indefinido e de um panfletarismo romântico. François CHÂTELET afirma que FOUCAULT, preocupado

“(...) em demolir a história das idéias, essa que nos legou a Filosofia da História do século XIX, última palavra da metafísica; revelar assim novos campos cujo estudo não resultaria nem do imperialismo lógico nem da invasão lingüística; apresentar os procedimentos arqueológicos em que o objeto, nisso que se chama cultura, é o monumento, arquitetura de poderes como de palavras, que funcionou, na qual os homens moravam, diante da qual eles se prosternaram, que muitas vezes incendiaram...E isso para romper a vaga pungente dos pensamentos humanistas, subjetivistas, empiristas que atravancam, com toda boa vontade, o caminho que leva à destruição da ideologia especulativa.” (FOUCAULT in CHÂTELET, F. in 1969, p. 3-4)

Concluímos que FOUCAULT recusa tanto a antropologização abusiva do pensamento marxista quanto a objetividade mecanicista do processo dialético e metafísico da idéia, presente nos derivados historiográficos positivistas e estruturalistas. Mais que isso, ao demonstrar a arbitrariedade da oposição entre ambas não se prende ao transcendentalismo nihilista de NIETZSCHE, o que redundaria numa negação de qualquer razão e de condições materiais de uma antifilosofia, no que acaba configurando seu pensamento: a antipsiquiatria, a antimedicalização da vida e a anti- epistemologia ativa.

Por fim, ao buscar demonstrar a historicidade da Sexualidade, campo privilegiado de sua investigação, onde materializam-se suas observações sobre a norma jurídica, o poder médico, os dispositivos de saber e a construção da “scientia sexualis”, na sociedade moderna, FOUCAULT desafia e realiza novos campos de saber, que mantém a tradição clássica e inovadora da reflexão filosófica. Em sua obra inicial sobre este propósito afirma:

“Meu propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas, sua evolução e

difusão. Também não era minha intenção analisar as idéias ‘científicas, religiosas ou filosóficas’, através das quais foram representados estes comportamentos.(...) Em suma, tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas, constitui-se uma ‘experiência’ tal, que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma ‘sexualidade’ que abre campos de conhecimento bastante diversos, e que se articula num sistema de regras e coerções. O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência - se entendermos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade.”(1985: p.49)

Assim, tanto quanto se pode afirmar a originalidade filosófica de um pensamento, a concepção de história de FOUCAULT não se alinha ao lado das concepções estruturalistas nem toma uma posição a priori, contrária aos pressupostos do materialismo marxista. FOUCAULT não pode ser acusado levianamente de estruturalista, ainda mais, ser usado como corolário da subjetividade perdida ou paladino dos futuros emancipatórios e realizadores. Sua obra, consubstanciada na trágica herança do pós-guerra, ainda lança desafiadoras questões para a compreensão deste nosso tempo e suas construções teóricas e práticas. A Sexualidade, erigida como tema de investigações históricas, é retirada do campo da Biologia e apresentada como construção normatizadora de saberes e disciplinas de corpos. Todavia, a despeito da acusação de despolitização de seu pensamento, tal como querem os que preconizam a derrocada da razão política, FOUCAULT afirma: “A transformação da penalidade não depende apenas de uma história dos corpos, porém mais precisamente, de uma história das relações entre o poder político e os corpos.”(1985, p.187)

Ao buscarmos a interlocução com o pensamento de M. FOUCAULT pretendemos encontrar novos campos de ação científica e política, em nossa trajetória de emancipação criadora da razão e da ação humana. Para nossa perspectiva de investigação, esta tensão é o marcapasso da História.

Enfim, nos estudos que empreendemos, partindo de FREUD, passando por REICH e finalizando na dura crítica de FOUCAULT, fica nítida a distância que separa

as precárias motivações de educadores e instituições sociais em açambarcar a questão da Sexualidade Humana e da Educação Sexual. Seria temeroso afirmar que a nossa época carece de uma ética sexual emancipatória e humanista, restando-lhe a colcha histórica da repressão e da dessublimação repressiva e mercantilizadora da sexualidade?

Não teríamos outra alternativa a não ser aceitar esta hipótese e capitular frente aos disparates e apropriações subjetivistas e sincréticas que justapõem dogmatismos estereotipados com o voluntarismo estreito e sem conteúdo reformador ou revolucionário, para a educação e para a escola. Fica o apelo para que todos busquemos, pela via da ciência crítica e transformadora, a ética sexual para a liberdade, a autonomia e a emancipação afetiva e estética.