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Em seus estudos sobre o tema FOUCAULT faz um destaque à era vitoriana, onde a sexualidade é confiscada do campo social para segregar-se à família conjugal, exatamente para dentro do quarto do casal burguês. Momento em que a sociedade passa

a assumir a função reprodutiva do sexo. O casal legítimo e procriador dita a lei. A sociedade ocidental começa então a classificar a sexualidade em legítima e ilegítima. Classificação entendida da seguinte forma: legítima – sexualidade praticada dentro do matrimônio, com finalidade de procriação. Ilegítima – sexualidade dos loucos, das prostitutas, e dos que se aventuram a viver a sexualidade fora do casamento.

Neste período do final do século XVII, chamado era vitoriana, a sexualidade da criança não era reconhecida. Impunha-se a ela toda cegueira, surdez e mutismo próprios da ignorância quanto à sua existência. Somente a sexualidade adulta era considerada. É fácil perceber que, ao longo da história, a repressão sexual tem gerado a alcunha de loucos, lúcidos e muitos lucros. Essa realidade tem colaborado para gerar meios, dos mais variados, para entender o comportamento e as preferências sexuais dos homens e mulheres ocidentais. A esmagadora maioria destes meios busca tal entendimento, visando a dominação do sexo.

Este estudo de FOUCAULT, a história da sexualidade, objetiva abordar alguns pontos historicamente significativos e esboçar certas questões teóricas referentes à sexualidade. Neste espaço teórico de sua obra ele denuncia a hipocrisia ocidental da sexualidade, sobretudo no exercício impositivo da cultura de fazer falar de sexo para dominá-lo. A cultura do discurso, que articula outras práticas incorporadas ao modo de vida das sociedades pós-século XVII representa o que FOUCAULT formulou e chamou de “hipótese repressiva”. Tal hipótese é constituída por três dúvidas formuladas estrategicamente que ele organizou e expressou assim:

1 – “A repressão do sexo seria, mesmo, uma evidência histórica?” - “... seria realmente a acentuação ou talvez a instauração, desde o século XVII, de um regime de repressão ao sexo?”. (1988, p.15)

2 – “A mecânica do poder e, em particular, a que é posta em jogo numa sociedade como a nossa, seria mesmo, essencialmente, de ordem repressiva?“ – “Interdição, censura e negação são mesmo as formas

pelas quais o poder se exerce de maneira geral, talvez em qualquer sociedade e, infinitamente, na nossa?” (1988,p.15)

3 – “O discurso crítico que se dirige à repressão viria cruzar com um mecanismo de poder, que funcionara até então sem contestação, para barrar-lhe a via, ou faria parte da mesma rede histórica daquilo que denuncia (e sem dúvida disfarça) chamando-o ‘repressão’?” (1988, p.15)

Foi intenção do autor confrontar as referidas hipóteses com uma economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das sociedades modernas, a partir do século XVII. FOUCAULT empreendeu seu esforço teórico na direção de investigar se os discursos modernos buscavam a verdade sobre o sexo ou buscavam mentir para ocultá-lo.

Para FOUCAULT a interdição do sexo não é uma ilusão. Ilusão, sim, é fazer desta interdição o elemento fundamental para a história da sexualidade, a partir dos discursos modernos. A produção e o incentivo aos discursos são muito mais do que técnicas de poder e vontade de saber. Ele pesquisou as instâncias da produção do discurso sobre a sexualidade, produção de poder e a produção do saber, registrando a história destas instâncias com suas devidas transformações.

Em meio às dúvidas, uma certeza registrada por FOUCAULT é que a partir do século XVI as sociedades colocaram, paulatinamente, o sexo em discurso. As técnicas de poder sobre o sexo disseminaram a implantação dos discursos e da normatização das sexualidades polimorfas. É certo que para o autor, a vontade de saber foi além dos tabus do sexo.

Esta assertiva de FOUCAULT é ilustrativa de suas considerações fundamentais, construídas a partir de seus estudos: “Século XVII: seria o início de uma época de repressão própria das sociedades chamadas burguesas, e da qual talvez ainda não estivéssemos completamente liberados”.(1988, p.21).

Em seus estudos sobre a história da sexualidade, FOUCAULT aponta dois momentos como sendo os de maior ruptura dos costumes e modos de vida da sociedade ocidental. O século XVII que assinalou o nascimento das grandes proibições e código normativos-moralizadores da sexualidade onde se passou a considerar, como já destacamos, o ideal da sexualidade matrimonial e adulta. A outra ruptura teria acontecido no século XX. Neste momento as sociedades ocidentais experimentaram um afrouxamento dos códigos morais a tolerância com comportamentos comprometedores do sexo matrimonial a relativização dos tabus e a revisão do que se considerava sexo perverso. Agora as práticas, já bastante discursadas e esmiuçadas, alcançaram uma maior tranqüilidade no tocante à interferência social.

Voltemos à direção histórica da sexualidade ainda para o século XVII. Ao falar de repressão sexual é importante ressaltar que os mecanismos de repressão vindos primeiro da Igreja afetaram marcadamente a burguesia, classe social mais próxima desta instituição. O proletariado, segundo aponta FOUCAULT, menos religioso à época, levou quase dois séculos para ser atingido pelos códigos normativos da sexualidade.

De acordo com a concepção de FOUCAULT os três últimos séculos produziram os mais diversos discursos sobre o sexo. Nunca antes o homem ocidental havia falado tanto deste tema. Houve depuração do vocabulário, criação de metáforas, produção de retórica e codificação da questão. Sem dúvidas, criaram-se novas regras de decência e mecanismos para controlar as práticas e os discursos e também redimensioná-los. Ainda destaca o autor que a partir do séc. XVIII tais discursos proliferaram ainda mais.

Nos preceitos religiosos, na confissão dos pecados, que teve início na Idade Média, focaliza-se a prioridade do controle sobre o sexo. Houve um tempo em que o indivíduo era obrigado a contar, em confissão, detalhes de seus desejos e de suas práticas sexuais, incluindo os sonhos que tinha durante o sono. A pastoral cristã criou uma cultura duradoura de passar o sexo pelo crivo da palavra, costume que foi

reforçado pelo puritanismo vitoriano. Afirmando o que se registra, FOUCAULT observa:

“O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre seu sexo; que, a partir da época clássica, tenha havido uma majoração constante e uma valorização cada vez maior do discurso sobre o sexo; e que se tenha esperado desse discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo”.(1988, p.26)

Por volta do séc. XVIII, quando já estava estabelecido o discurso da moral sexual, começa a aparecer aqui e acolá o discurso da racionalidade sexual. A Ciência encampa a preocupação com sexo, começando na forma de higienização e controle de doenças, até chegar no final do século XIX, na forma do tratamento da psiquê afetada pelas coisas sexuais, em termos da época. O sentimento que impulsionava a Ciência, representada pela medicina, para o campo da sexualidade, pode ser encontrado no texto História da Sexualidade I: a vontade de saber, na seguinte formulação:

“... cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ético. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos.” (1988, p.27)

Ainda na linguagem de FOUCAULT e na abordagem histórica que faz da sexualidade humana, trata da análise de que no séc. XVIII o sexo vira caso de polícia. Isso no sentido da necessidade de regular o sexo utilizando as informações contidas nos discursos cada vez mais públicos e reveladores da intimidade. Agora o controle assumia um rigor disfarçado. O controle que deixa falar para extrair do discurso a direção reguladora. Assim, entende-se “caso de polícia”, no sentido de repressão e

controle das práticas. O enfoque do controle pela força severa do Estado. Esta força repressora constituiu mecanismos para vigiar as práticas que se expunham ao social e também fazer falar, entenda-se, obrigar a falar, das intenções ou tentativas de atentado contra a moral e a integridade física.

Sabe-se que ainda hoje estas questões policiais ligadas à sexualidade, não são bem trabalhadas pela força policial, sobretudo quando se trata de violência contra a mulher. A idéia aqui é apontar o início de uma estruturação policial, que também faria falar de sexo para dominá-lo. A realidade da polícia e, conseqüentemente, da justiça, tratando de assuntos sexuais, organizou o pacote das condenações legais das irregularidades ocorridas no campo sexual, atentando à doença mental e a todos os outros desvios possíveis da conduta humana. Em última instância, o que se deseja com tais atitudes é promover uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora das benesses do lucro para poucos e da miséria física e material para a maioria.

Este estado de coisas resultou da ação conjunta dos códigos que até o final do século XVIII regiam explicitamente as práticas sexuais. Estes foram classificados por FOUCAULT como “o direito canônico”, “a pastoral cristã” e “a lei civil”. Centrados na lei matrimonial, estes códigos determinavam o lícito e o ilícito do sexo. Da freqüência à fecundidade, passavam por eles as normas e as finalidades que deveriam ter tais práticas. Qualquer deslize ou má interpretação deveria passar pela fala, na forma de relatório – confissão, e certamente acarretaria sanções. Afinal, encarados como pecado ou delito, mereciam retificação.

Cada vez mais a sexualidade legítima era a matrimonial, heterossexual e burguesa. Fora desta esfera eram postas no banco do réu as sexualidades das crianças, dos loucos, criminosos, prostitutas, homossexuais e dos que apresentavam alguma suposta anomalia ou doença física. Conforme mostra a história, as sexualidades “periféricas” eram terrivelmente reprimidas. As minorias eram fontes de grandes raivas e discriminação.

A direção do lícito e do normal marginalizou os prazeres periféricos, produzindo a culpa e o sentimento de patologia que acabou por gerar uma teia social de lucros econômicos sobre o sexo, via medicina, psiquiatria, indústria de medicamentos e produtos sexuais, prostituição e pornografia.

Também no séc. XVIII, a ciência desponta um interesse dirigido sobre o estudo do sexo, sobretudo para especular o controle da natalidade. É a primeira vez na história que se entende que a riqueza de uma nação não está na expansão da população, mas na maneira com que cada qual usa, organiza seu sexo e as práticas sexuais. Assim, a ciência busca talvez, não tão diretamente, formas de melhorar o aproveitamento da energia para o trabalho e a resistência do trabalhador. Isso interferiu com o passar do tempo, na conduta econômica e sexual dos casais. Desde o controle do número de filhos até o controle dos casamentos e separações. Temos então, o escopo do Estado no controle das questões que envolvem o sexo.

Enfim, deixar falar de sexo pelos discursos e pelas artes foi a maneira que a sociedade ocidental moderna encontrou para preparar dinamicamente o controle da sexualidade. Quanto à sexualidade da criança, a sociedade começou a codificar conteúdos e qualificar os locutores: pais, educadores, médicos e administradores. Passou-se a falar do sexo das crianças ainda no século XVIII. Os múltiplos mecanismos de ordem: religião, pedagogia, economia, medicina e justiça, têm tratado do sexo para organizá-lo. A idéia, portanto era assegurar o vigor físico, social e a pureza moral.

Com relação à sexualidade da criança, FOUCAULT aponta o início da moralização do comportamento infantil. Não houve no referido período histórico uma descoberta da sexualidade da criança como uma característica própria deste ser humano em pleno desenvolvimento. Como se sabe, primeiro vivemos a descoberta do sentimento da infância com ROUSSEAU, depois a história assinala a preocupação com a criança no sentido de seu desenvolvimento, espaço social na família e na comunidade e, bem mais tarde, já para o início do século XIX, é que, ousadamente, FREUD e

poucos de seus contemporâneos, aventuraram-se em declarar que a criança era de fato sexuada, e empenharam-se em estudar tal sexualidade e defendê-la como legítima e integradora do processo de desenvolvimento sexual dos adultos.

Quando FOUCAULT destaca que se passou a falar do sexo das crianças, entenda-se: passou-se a disciplinar as crianças para a repressão do sexo e para a inibição de seus comportamentos sociais. O que já expressa uma preocupação com a criança, embora com atitude negativa, mas uma atenção dispensada à ela, o que até o Séc. XVII, como bem registra ARIÈS em “História Social da Criança e da Família”, não acontecia.

O que se fala do sexo, torna-se público. De domínio comum. Mas, o que não se fala, ou fala-se em “voz baixa”, é muito mais atrativo e faz com que se busque incessantemente conhecer. Tornou-se uma marca da sociedade ocidental a compulsão de falar de sexo. Descreve FOUCAULT: “O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”.(1988, p.36)

O Ocidente produziu junto com as regras sexuais uma rede de poder advindo do saber sexual. A decodificação dos prazeres que, sem dúvidas, tornou-se a base para a erigir um tipo de poder que controla e sobrevive do sexo. Para FOUCAULT, “Prazer e poder não se anulam; não se voltam um contra o outro; seguem-se, entrelaçam-se e se relançam. Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação.” (1988, p. 48)

Continuando a análise do desenvolvimento da sexualidade, a primeira marca dos séculos XIX e XX, apontada por FOUCAULT: “O século XIX e o nosso foram, antes de mais nada, a idade da multiplicação: uma dispersão de sexualidades, um reforço de suas formas absurdas, uma implantação múltipla das ‘perversões’. Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades sexuais.” (1988, p.38)

O teórico considera, no período apontado, o surgimento de novas características do comportamento humano e das culturas ocidentais. Mas é necessário estarmos atentos para outras formas de enquadramento dos discursos conforme aponta nas abordagens da ciência e da arte no sentido do controle do objeto em questão, o sexo.