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2 EDUCAÇÃO EM SEXUALIDADE: CONCEITOS E

2.5 A sexualidade em Michel Foucault

Na história recente dos estudos sobre sexualidade, há um autor que se destacou e que é impossível não abordar: o filósofo francês Michel Foucault. Embora esta pesquisa não esteja baseada na obra foucaultiana e não possa ser caracterizada como um estudo foucaultiano, a discussão sobre sexualidade presente na obra História da Sexualidade: a vontade de saber (vol.1) é imprescindível para uma problematização sobre esse conceito. Nela, Foucault (1988) desconstrói o que chama de “hipótese repressiva” segundo a qual a sexualidade seria algo constantemente reprimido socialmente.

Segundo o autor, a sexualidade precisa ser colocada em uma economia dos discursos, entendendo como é falada, a partir de quem, direcionada a quem. Nesse sentido, Foucault (1998) questiona uma percepção de que falar de sexo seria algo transgressor em uma sociedade em que esse tema é habitualmente reprimido. Para o autor, isto não significa que não há repressão, mas que essa repressão e outras formas de discurso sobre a sexualidade coexistem devendo ser entendidas dentro de uma variedade discursiva que produz a realidade. Nessa perspectiva, é possível perceber a incitação a discursos sobre o sexo que sejam passíveis de gerenciamento e controle. As técnicas de confissão da Igreja, exemplificadas pelo autor, são incitações ao discurso sobre a sexualidade que pretendem governar os desejos e os impulsos:

Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. (FOUCAULT, 1988, p. 30-31).

Essa administração do sexo e da sexualidade por meio da incitação à fala, com delimitação das palavras é, muitas vezes, a ação da educação sexual. Incita-se a fala sobre a sexualidade, mas não qualquer sexualidade. Incita-se a fala sobre a sexualidade responsável, compromissada, saudável, heterossexual, não reprodutiva. Cria-se uma série de artimanhas para se incitar o discurso sobre a sexualidade, delimitando-se qual sexualidade legítima merece ser falada. Novamente, nas palavras de Foucault (1988, p. 33), “não se fala menos do sexo, pelo contrário. Fala-se dele de outra maneira; são outras pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos”.

Especialmente no ambiente escolar, Foucault (1988) discute como, por um lado, os colégios aparentemente silenciam sobre sexo e sexualidade, mas, por outro lado, estão falando o tempo todo do sexo, seja na arquitetura que visa ao controle, seja nas propostas de educação sexual que incitam a fala sobre o sexo baseada em informações e conhecimentos ditos científicos para melhor controlar os jovens:

Seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs um silencio geral ao sexo das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século XVIII ela concentrou as formas do discurso neste tema; estabeleceu pontos de implantação diferentes; codificou os conteúdos e qualificou os locutores. Falar do sexo das crianças, fazer com que falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais. Ou então, falar de sexo com as crianças, fazer falarem elas mesmas, encerrá-las numa teia de discurso que ora se dirige a elas, ora fala delas, impondo-lhes conhecimentos canônicos ou formando, a partir delas, um saber que lhes escapa – tudo isso permite vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso. (FOUCAULT, 1988, p. 36).

Além dos colégios, outras instâncias são produtoras de discursos sobre o sexo como a medicina, a psiquiatria e a justiça penal. Cada uma delas se investe de verdade para produzir discursos sobre o sexo normal ou patológico, natural ou antinatural, produzindo verdades discursivas articuladas com relações de poder. Dessa forma, para o autor, saber e poder estão relacionados em uma teia de discursos na qual o sexo se tornou um objeto de verdade:

O importante nessa história não está no fato de terem tapado os próprios olhos ou os ouvidos ou enganados a si mesmos; é, primeiro, que tenha sido construído em torno do sexo e a propósito dele, um imenso aparelho para produzir a verdade, mesmo que para mascará-la no último momento. O importante é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensação e de prazer, de lei ou de interdição, mas também de verdade e falsidade, que a verdade do sexo tenha-se tornado coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida; em suma, que o sexo tenha sido constituído em objeto de verdade. (FOUCAULT, 1988, p. 64-65).

A produção dessa verdade do sexo foi feita historicamente por meio de dois procedimentos: a ars erótica e a scientia sexualis. Na ars erótica, “a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência” (FOUCAULT, 1988, p. 65). Não há uma série de prescrições e normas externas à experiência que regulam a ars erótica. Segundo o autor, a civilização ocidental não possui uma ars

erótica. Nossa cultura produz a verdade sobre o sexo por intermédio da scientia sexualis; já a civilização oriental seria produtora da ars erótica. É preciso, no entanto,

de forma estanque, como detentores da scientia sexualis e da ars erótica, respectivamente:

São muitos os exemplos e denúncias históricas dos códigos de repressão e violência sexual presentes nas tradições japonesa, chinesa ou vietnamita. O mundo árabe também reserva sombrias significações sobre a sexualidade feminina. Deste modo, não podemos desconsiderar as contradições que a própria concepção dialética nos reserva, ao comparar as sexualidades ocidentais com o Oriente. (NUNES, 1996, p. 8-9).

A scientia sexualis “atribui-se a tarefa de produzir discursos verdadeiros sobre o sexo, e isto tentando ajustar, não sem dificuldade, o antigo procedimento da confissão às regras do discurso científico” (FOUCAULT, 1988, p. 77). Ao instituir a confissão e produzir categorizações e julgamentos sobre o que foi confessado, ao hierarquizar práticas e ao caracterizar como normalidade ou aberração, a scientia sexualis normatiza a experiência com o sexo. Os ritos e estratégias de confissão são aperfeiçoados e adquirem centralidade: inicialmente vinculados aos procedimentos religiosos, se expandem para a pedagogia, para as famílias, para a medicina e a psiquiatria. Nas palavras do autor,

[...] há quase cento e cinquenta anos, um complexo dispositivo foi instaurado para produzir discursos verdadeiros sobre o sexo: um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da confissão aos métodos de escuta clínica. E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo

como a “sexualidade” enquanto verdade do sexo e de seus prazeres. A “sexualidade” é o correlato dessa prática discursiva desenvolvida lentamente,

que é a scientia sexualis. (FOUCAULT, 1988, p. 77-78).

Desse modo, é preciso entender qual a teia discursiva que compõe as questões da sexualidade e como ela incita a produção de uma única verdade sobre o sexo e mesmo sobre o sujeito.